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Em Pauta
Respeitável Público
Quais as estratégias para a descoberta e a conquista de outros públicos? Como os produtores culturais podem garantir a fidelidade das platéias consolidadas e a adesão das novas? Especialistas tentam responder essas questões recorrentes no universo cultural
Ivaldo Bertazzo
Hoje, não conseguimos falar de formação e ampliação de platéias culturais sem falarmos do Sesc São Paulo. A instituição abriu um canal para muitos criadores intervirem. Vejo muitos artistas trabalhando nesse sentido. Ampliar platéias é o nosso maior esforço. Há muitos artistas que saem das estruturas convencionais e abrem a visão do público. O meu último espetáculo, Tupi Tu És, adaptou-se ao projeto pocket opera do Sesc Ipiranga: uma ópera encenada numa dimensão menor. Existe um público. É um equívoco pensar que não. O problema somos nós, artistas, conseguirmos quebrar uma convenção de linguagem e mostrar uma arte mais ousada. Isso é com o artista. O que eu sinto, trabalhando com o Sesc, é que se propõe para o artista um espaço muito democrático. Ou seja, a entidade não manipula o artista criador. Ao contrário, deseja que ele esteja bem coerente com a época e as necessidades de um público que tem aumentado muito e que possui interesses diversos. Eu, talvez, nem possa dissertar muito sobre isso, porque minhas experiências são as de abordar vários interesses num mesmo espetáculo. Mas não me sinto sozinho e vejo um caminho muito fértil. Sobretudo agora, quando começo a ver coisas como a recente ascendência do cinema brasileiro (o cinema sempre abriu possibilidades para o território do teatro e da dança).
Finalmente, creio que a formação de um novo público depende um pouco dos empresários e dos demais possíveis investidores. Felizmente, eles começam a perceber que é possível dignificar um produto quando se promove a cultura. Na verdade, fazemos uma catequese infindável para aumentar um público que vai, um dia, necessitar da arte como um alimento.
Ivaldo Bertazzo é coreógrafo
Teixeira Coelho
O princípio geral que se aplica à formação de público é o das intervenções mínima e máxima. A intervenção mínima consiste em multiplicar as ocasiões em que pessoas travam contato com a obra considerada, seja ela de arte, cinema ou teatro. Isto é, é preciso tentar multiplicar as condições e as ocasiões de exposição direta do público à linguagem que quer publicar. Isso significa incentivar a formação de público, além de criar condições de desenvolvimento para a distribuição do produto cultural. Pense, por exemplo, no caso do cinema. Não basta realizar o filme, é necessário permitir que ele seja exibido. Em terceiro lugar, é necessário encontrar uma forma de estimular a troca. O que seria a troca? Numa sociedade capitalista como a nossa, para você expor uma obra de arte, é preciso uma troca por dinheiro, transfigurado, nesse caso, no preço do ingresso. No Brasil, para criar público, você tem de pensar também na dimensão econômica do acesso à obra de arte. Isso significa criar estímulos para a compra do ingresso. Por exemplo, o Sesc faz isso quando cobra taxas diferenciadas dos associados ou quando realiza eventos gratuitos. Com isso, você contorna o obstáculo econômico. A quarta operação para estimular a criação de público diz respeito ao uso da obra em questão. Resumindo, a intervenção mínima simplesmente cria condições para que as pessoas se exponham o máximo possível às obras de arte.
Existe uma intervenção maior que consiste na preocupação muito específica com aquela quarta fase a que já me referi. Nesse momento, deve-se alertar as pessoas para que elas entendam perfeitamente bem o que está em jogo. Exemplo: numa exposição de artes plásticas com peças de arte contemporânea, de difícil intelecção para o público, é preciso pensar em etiquetas que indiquem qual o significado da obra. Indicações que forneçam informação para o público, como um catálogo, uma visita guiada, com a presença de monitores, artistas ou críticos. Enfim, deve-se amparar o público para que compreenda a obra. No caso de um filme, por exemplo, pode-se distribuir na entrada da sala de exibição um pequeno folheto contendo informações técnicas, pois não são todos que sabem como um filme é tecnicamente realizado; não é toda platéia que sabe como são geradas as imagens e que conhece os códigos da linguagem cinematográfica. Portanto, é importante contextualizar a experiência estética através de uma informação, prévia ou posterior (um convite para um bate-papo depois da exibição).
Formação de público é algo que só existe enquanto política intencional. A rigor, ela tem mais condições de ser exercida quando se realiza uma prevenção mais acentuada como a que eu mencionei. Numa cidade como a que vivemos, simplesmente agir por meio da multiplicidade de ocasiões não garante a formação de público cultural. Eu acho importante ter claro em mente o que significa público em cultura. O que é público? É um conjunto de pessoas que possui determinados hábitos que se repetem. Hoje em dia, usa-se muito essa palavra em vão, de maneira pouco precisa. Público de artes plásticas, por exemplo, é aquele que, com alguma periodicidade, freqüenta os eventos fundamentais. Seja a Bienal ou uma galeria, exposições etc. Não se pode, por exemplo, considerar como público pessoas que estão indo pela primeira vez à Bienal. Quem vai pela primeira vez a um evento como esse é, na verdade, um visitante. Se essa pessoa não voltar à edição seguinte, ou não tiver ido à anterior, não é público. É uma atividade ocasional: ela foi à Bienal como poderia ter ido a uma feira de plantas ou de gado. A palavra público como sinônimo de visitante ou é má-fé, ou seja, uma forma de engrossar suas estatísticas, ou é desconhecimento.
Formar público significa formar um grupo de pessoas, relativamente homogêneas em termos de gosto, de hábitos, de formação e de capital cultural, com uma periodicidade de alta exposição àquela linguagem.
Tendo esse quadro em vista, é complicado dizer se os nossos museus possuem ou não um público na acepção da palavra. Há três anos, na Bienal de 1996, fizemos uma pesquisa entre os estudantes da USP, para saber quais eram os seus hábitos em relação às artes plásticas. No caso, elas apareceram como a última opção. Eles declararam que preferiam ler, ir ao cinema, a shows de música etc., e, em décimo sexto lugar, ir a uma exposição de artes plásticas. Em termos gerais, isso significa que o estudante da USP não faz parte do público dessa linguagem. Cerca de 80% deles, inclusive, não tinham ido à Bienal daquele ano. Mas não podemos tirar conclusões apressadas desse índice, pois há duas explicações possíveis para esse resultado. Primeiro: eles são mesmo apáticos em relação às artes plásticas, realmente não gostam. Segundo: a Bienal não está dizendo nada para eles. Se for esse o motivo, surge mais uma questão: a falta de um público em uma linguagem nem sempre é culpa das pessoas. É culpa de quem propõe algo a elas. Culpa, talvez, da obra que está sendo exposta e que não diz nada. A Bienal precisa ter um sistema de amparo e explicação, que no caso das artes plásticas é bem complicado porque não basta a informação. É preciso que a pessoa fique imersa em um caldo cultural que aos poucos faça com que ela entenda o que está em jogo na arte contemporânea. Dizer que os visitantes da Bienal não estão preparados para apreender o que lhes é mostrado é uma afirmação simplista, porque o visitante nunca teve de pensar a esse respeito.
Teixeira Coelho é diretor do Museu de Arte Contemporânea (MAC/USP)
Marcos Mendonça
Pensei em começar este artigo lembrando a vocação de São Paulo como o maior pólo cultural da América. Mas percebi que estaria sendo simplesmente repetitivo, pois a posição de destaque da nossa cidade no cenário cultural do continente é clara e prova disto está na programação de nossos teatros, museus, salas de concertos e espetáculos. Aqui acontecem as melhores exposições internacionais, apresentam-se as mais importantes orquestras, as peças e shows de maior destaque.
Neste quase "renascimento da cultura", a ação de entidades como o Sesc e a atuação do Governo do estado, através da Secretaria da Cultura, têm permitido a implantação de novos espaços - seja nas artes plásticas, como a Pinacoteca; seja na música, como a Orquestra Sinfônica, o Theatro São Pedro, o complexo Cultural Júlio Prestes; seja nas artes cênicas ou na preservação da nossa memória, e aí está o Memorial do Imigrante como prova.
A aposta no novo e a coragem do desafio, por um lado, a recuperação de nossa memória, por outro, permitem afirmar que hoje, em São Paulo, atividades culturais se multiplicam e passam a ter importância vital, até mesmo na economia de nosso estado, como geradoras de recursos e, especialmente, de empregos.
E fica cada dia mais claro que junto ao trabalho de incentivo à produção cultural está a necessidade de trabalharmos no sentido de criar novas platéias, levar às nossas crianças e jovens um trabalho de iniciação às artes e à cultura, numa proposta que articule a ação da educação e da cultura.
Por isso, nossa atenção se volta ao fomento de projetos culturais junto às comunidades carentes - agindo principalmente na população dos bairros onde os índices de violência, miséria e desemprego atingem patamares impressionantes, o que vêm permitindo a possibilidade de uma integração ótima entre os diversos segmentos da sociedade, através de espaços e programas que abrigam crianças, jovens e jovens adultos.
Dentre essas propostas, destaca-se o Projeto Guri, orquestras formadas por meninos carentes (das favelas, como Paraisópolis; da Febem; de agrupamentos como filhos de sem-terra do Pontal do Paranapanema ou dos encortiçados do Bixiga).
O Projeto Guri nasceu de uma experiência, muito bem-sucedida, da cidade paulista de Ouro Verde, quando um maestro reuniu um grupo de crianças carentes e começou a lhes ensinar música. Ante ao sucesso dessa proposta, iniciamos em 1995, na oficina Amácio Mazzaropi, no Brás, o primeiro núcleo da capital, com 280 crianças e adolescentes. Em 1996, o trabalho começou com meninos da Febem do Tatuapé e o resultado, mais uma vez, nos surpreendeu: o índice de fugas desses jovens infratores foi reduzido em mais de 40% no grupo que participava do Projeto Guri.
A proposta foi se ampliando e hoje temos 27 pólos com mais de 9.500 crianças e jovens, na capital e no interior.
Ao abrir-lhes novas perspectivas, o Projeto Guri lhes permite, ainda, o aprendizado de uma profissão, a de músico e até mesmo a possibilidade de se tornarem artífices, uma vez que lhes é ensinado também o ofício da fabricação de instrumentos.
No caso de crianças e jovens, a ação através da cultura mostrou-se instrumento eficaz não apenas na abertura de novas perspectivas de vida, mas num aprendizado que, no futuro, os transformará em adultos mais interessados e em potenciais consumidores de produtos culturais.
Outro nicho em que o interesse pelas atividades culturais tem se mostrado muito rico, criando novos hábitos, é o da terceira idade. Um dado importante: conforme pesquisas do professor Domenico de Masi, da Universidade La Sapienza, de Roma, o homem moderno vive 700 mil horas, das quais apenas 70 mil trabalhando, enquanto nos tempos de nossos avós essa proporção era dez vezes menor.
Isto significa que teremos, em nossa sociedade, uma população de idosos cada vez maior e com expectativa de vida muito mais longa.
A cultura apresenta-se, então, como um aliado poderoso na forma que este segmento da população viverá seus anos de velhice. Programas e projetos culturais de qualidade destinados à terceira idade devem, portanto, ser incentivados e recursos para sua realização devem ser atingidos. Afinal, trata-se de uma fração de nossa sociedade ainda subestimada, mas cuja presença nos teatros, exposições e shows a cada dia vem se tornando maior e mais assídua.
Por isso mesmo, consideramos que a implantação de programas específicos em teatros e casas de espetáculos, museus e cinemas que incentivem o hábito de freqüência desse segmento é um dos caminhos a serem trilhados com maior sucesso quando se trata da criação de novas platéias.
Finalmente, seja devido a workshops, universidades ou programas de aprendizado junto à comunidade de idosos, é essencial o desenvolvimento de projetos para essa parcela da população e, especialmente, para aqueles de menor renda, quase sempre abandonados pelas famílias, habitando em instituições e asilos.
Marcos Mendonça é Secretário de Estado da Cultura
Leon Cakoff
Há vinte e três anos sou organizador da Mostra Internacional de Cinema de São Paulo, desde que ela fazia parte da programação do Masp. Eu era programador de cinema e foi lá que a Mostra nasceu. Desde o começo, o Sesc já colaborava conosco.
Formar o público da Mostra foi muito difícil. Costumo dizer que agimos como vigilantes da inteligência e da sensibilidade, assim como os vigilantes do peso. Se você der uma esmorecida, perde terreno. É preciso estar sempre alerta para educar, atender e atualizar o público, senão a barbárie toma conta de tudo. A barbárie da ignorância, da violência e do fim da civilização. Não falo dos filmes desta ou daquela nacionalidade, a ignorância não é privilégio de nenhum país. A cultura é única, embora tenha várias facetas e diversas ações a serem feitas em infinitas áreas. E nós, no cinema, tentamos abranger os diferentes aspectos da nossa cultura e das demais, através de um veículo que, por sua vez, comporta todas as artes.
Ao nosso lado, dentre os agentes culturais do país, eu destaco o Sesc como um grande aliado na promoção da cultura, oferecendo não somente bens culturais, mas também informação e lazer, desde suas atividades até suas piscinas. É disso que precisamos, instituições que garantam os pontos vitais da felicidade humana: lazer, habitação, educação, saúde e trabalho.
Porém, isso não é fácil. Assim como não é simples montar uma mostra de cinema no Brasil. Mesmo vinte e três anos depois, e mesmo tendo um público fiel, a Mostra, todos os anos, enfrenta uma batalha. Sempre repetindo a mesma história, começando do zero, indo atrás de patrocínio. Para quem não sabe, esse é o processo de montagem de uma mostra: todos os anos começar da estaca zero. No Brasil, ninguém planta pensando em colher a longo prazo, os brasileiros são imediatistas e isso dificulta ainda mais o trabalho.
Para atingir um grande público é preciso conquistar os meios certos. Basta ver o sucesso que um filme pode fazer nas salas comerciais. O problema é o tipo de filme que faz sucesso atualmente: uma linha de cinema que vende armas e banaliza a violência, a vida e as relações humanas.
Porém, mesmo não sendo uma mostra de caráter comercial, não pode ser considerada elitista. Um filme iraniano humanista não é elitista. É um trabalho segmentado, de fato. Afinal, não é possível realizar um festival sem um público específico. Ainda mais tratando-se de um produto tão pouco comercial. Qualquer público acaba se tornando restrito.
Mas, mesmo com tudo isso, estou feliz com o resultado do nosso trabalho. Contamos com um público anual de 200 mil espectadores, hoje. E isso só no período da Mostra, sem contar com os títulos que disponibilizamos através de nossa própria distribuidora, que ainda lança uma série de cult movies. A marca da Mostra está realmente muito popular, conseguimos até uma parede de filmes em todas as Blockbusters da cidade. É um projeto vitorioso. Difícil, mas com um resultado muito positivo.
Leon Cakoff é organizador da Mostra Internacional de Cinema de São Paulo
José Saffioti Filho
"Make it good. Make it big. Give it class." Em trinta anos de agitação cultural no Sesc, sempre levei a sério essa máxima de Samuel Goldwyn. Entendo que, ao oferecer um produto cultural, dirigido para muitos ou para poucos, o êxito pressupõe alguns fatores básicos. É essencial que se tenha confiança na qualidade daquilo que está sendo ofertado. Não me impressiono com a estratégia de pesquisar aquilo que o povo quer. Ele nem sempre adivinha o que lhe dará paixão e prazer. Inovar é risco que deve fazer parte do jogo, porque a satisfação do público não é elemento estático. Se há artista que acredita que deve ir ao encontro do povo, o animador cultural sabe que seu papel não é tão simples assim, e que essa ordem precisa ser, quase sempre, invertida.
Um dos desafios do profissional do lazer e da cultura é motivar o cidadão a sair de sua caverna tecnológica, participando ao vivo e com outros do novo e do diferenciado. E aí vale tudo. Se o público está sempre em movimento, devemos trabalhar com discretas ("to be or not to be?") sinalizações, buscando separar, sem preconceitos, o joio do trigo. Mesmo que, vez por outra, comamos gato por lebre. É inevitável. Só acerta quem arrisca.
Hoje o endosso do Sesc significa um padrão de qualidade, mas sem pernosticismo. Na nossa rota de vôo procuramos não nos descuidar da eficiência e dos valores de
Goldwyn, mesmo em períodos de turbulência nos planos da conceituação ou da objetividade.
Nestes tempos pós-modernos, invadimos metrópoles com sedutoras embalagens como Babel, Mundão e Coração dos Outros (que se apresenta, pertinente, como um evento sem nenhum caráter).
Aberta a embalagem, encontramos um instigante shopping cultural, no qual convivem o antigo e o contemporâneo, o conhecido e o inusitado, o consagrado e a contracultura. Que cada um se sirva à vontade com aquilo que lhe der maior prazer.
Caravanas culturais recuperam e reciclam novos valores por dezenas de cidades do interior paulista com propostas de música, dança e teatro. Na cidadezinha acostumada às quermesses da igreja e aos rodeios, de repente há a presença de Lorca ou Brecht fomentando reflexões e inquietações. A Arte, como dizia Goethe, pertence ao mundo e desconhece fronteiras. Depois que a caravana parte, quem abriu a embalagem nunca mais será o mesmo.
Quando a praça é a unidade do Sesc, o público comparece diante de uma programação sistemática e anunciada. É um público interativo, participativo, condutor. E é, igualmente, confiante e curioso. Questiona a qualidade, mas se dá ao luxo de ser cúmplice frente à novidade e ao risco. A sensação da descoberta é um prazer comungado.
Sucesso? Isso não implica acomodação no reconhecimento da mídia e das platéias. Há, na base, trabalhos importantes, personalizados, que quase são despercebidos ou ignorados.
São atividades alternativas, que tanto podem envolver um discreto encontro de ópera comentada; uma sessão de cinema com aquele filme que nenhum outro cinema quis passar; um espetáculo de teatro experimental, com um elenco totalmente desconhecido, que só no Sesc encontrou as portas abertas.
Para mim, continua sendo significativa uma lição do passado. Quando menino, meu professor de geografia chegou com um disco e avisou que iríamos ter uma aula diferente. E a classe, surpresa e encantada, ouviu na íntegra O Moldávia, de Smetana. Era nosso primeiro contato com um novo mundo: o da música clássica. Daí chegamos à Romênia. Alguns dias depois, antes de invadirmos a Itália, já estávamos ouvindo, fascinados, La Traviata.
Uma lição, de um antigo mestre, de como ampliar platéias, formar públicos e mantê-los.
José Saffioti Filho é jornalista, dramaturgo e assistente-técnico do Sesc São Carlos