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Ficção
A relíquia de José Dias
João Inácio PadilhaJosé Dias, trineto de José Dias, bisneto de José Dias Júnior, neto de José Dias Neto e filho de José Peregrino dos Santos Dias, estava a caminho do consulado norte-americano. Ia dirigindo o seu Chevette em fiel observância ao Código Nacional de Trânsito: usava o cinto de segurança e parava em todos os sinais vermelhos. No trajeto desviava-se, quase com nojo, dos buracos das ruas e das partes alagadas. Sempre que o trânsito estava interrompido, folheava o passaporte novo em folha que jazia, expectante, no banco do passageiro. A fotografia de José Dias, colada no documento, trazia um semblante colorido e esperançoso. Ao estacionar o carro no edifício-garagem, antecipou a excitação de ver estampada, enfim, em alguma página da caderneta verde, a etiqueta adesiva do bonito visto norte-americano - com sua fotografia incrustada entre adornos prateados e vistosos.
As cinco gerações de José Dias, do trisavô ao trineto, estão unidas por uma particularidade: o desejo de viajar para o exterior. A âncora desse poderoso atavismo é José Dias, o ancestral, que viveu no Rio de Janeiro durante o Segundo Reinado - como agregado de uma antiga família da rua de Matacavalos, hoje do Livramento. O patriarca dos Dias jamais conseguiu pôr os pés fora do Brasil, embora se esforçasse, com insinuações e artimanhas, em obter esse favor da família que o protegia.
O filho de José Dias, José Dias Júnior, foi o primeiro a herdar a vocação peregrina. Na ânsia de conhecer civilizações estrangeiras, empregou-se na marinha mercante como grumete, mas um acidente o deixou coxo e incapacitado para as fainas náuticas. Passou o resto da vida na mesma Rio de Janeiro de sempre, ocupando um posto subalterno na companhia de navegação.
O filho de José Dias Júnior, José Dias Neto, tampouco teve sorte. Faltou-lhe perseverança e, sobretudo, a malícia do avô. Apesar de ter sido motorista, nunca viajou além de Magé. Em todo caso, de todos os Dias, foi o que mais contato teve com povos estrangeiros, pois serviu, primeiro, a uma família inglesa, depois a um industrial italiano.
De José Peregrino dos Santos Dias, nada se sabe. Terá sido ele o único da família a conhecer terras estrangeiras? Esta é a pergunta - menos que pergunta: devaneio - que sempre visitou a imaginação do moderno José Dias. José Peregrino abandonou a família logo depois do nascimento do filho e perdeu-se no mundo. Estaria vivo ainda? E fora do Brasil? É possível? Só de pensar nesta última hipótese, o nosso José Dias enche-se de um secreto orgulho da figura paterna - orgulho que nunca pôde compartilhar com a mãe magoada.
Ao chegar ao consulado, José Dias ficou contrariado ao descobrir que não era o primeiro na fila de candidatos ao visto: era o terceiro, o que considerou anômalo. Nunca poderia supor que houvesse, na cidade, dois brasileiros mais ansiosos que ele para visitar os Estados Unidos. Depois de recusar as repelentes ofertas de um vendedor de mate gelado, entrou e foi atendido.
Preencheu o formulário de pedido de visto, no qual assinalou, solenemente e com altiva convicção, que não era comunista, terrorista, portador de doença contagiosa e outras hediondas coisas, tão comuns entre os povos que se distribuem entre a fronteira meridional dos Estados Unidos e a Terra do Fogo. Uma funcionária, do outro lado de um guichê blindado, recebeu seu requerimento e deu-lhe uma data para voltar. Dentro de alguns dias, seria entrevistado por alguém, provavelmente um agente consular com muita experiência para eleger quem merece e quem não merece entrar no seu país. José Dias sabia que seriam irrecorríveis as decisões desse homem. Aquela gente, presumia, é adestradíssima. E serão todos diplomados em centros de treinamento invejados no mundo todo; por isso mesmo, dotados de um olho clínico agudo e infalível, não terão dificuldade, pensava José Dias, em separar os safados em geral daqueles raros que possam reunir todas as virtudes necessárias para serem acolhidos pelo povo norte-americano. Ali não tem erro: vagabundo não tem vez, concluiu, enquanto saía do poderoso prédio de vidro blindado. Despediu-se dos marines e deu uma longa olhada, com admiração, para a águia implacável que domina o escudo de armas da república setentrional.
Estava ansioso com a expectativa da entrevista? Pessimista? Nada: estava eufórico. Teria o primeiro gosto real dos Estados Unidos na figura desse tal funcionário. Adivinhava as perguntas do seu inquisidor, sua conduta ascética, impecável, e se sentia honrado por ser objeto de tanto profissionalismo e seriedade.
Procurou pelo centro da cidade um McDonald's onde pudesse aplacar a fome de Nova York, de Hollywood, de Miami Beach. Comeu o melhor Big Mac de sua vida, engolido o qual, passou a compor, mentalmente, o traje com que se apresentaria ao formidável funcionário, na data aprazada. Experimentou ali mesmo, na mesa do McDonald's, fazendo caras e gestos, os diversos matizes de olhares sagazes e as opções de postura civilizada que deveria ostentar na ocasião. Saiu da lanchonete e foi escolher uma gravata em Copacabana. Dirigiu o Chevette com prudência redobrada, desacelerando sempre para ajustar-se aos limites de velocidade indicados nas placas do Aterro (provas de boa conduta no trânsito poderiam ser apreciadas pelos norte-americanos).
No dia da entrevista, saiu de casa com duas horas e meia de antecedência. Temia o trânsito, algum acidente pelo caminho, as obras da prefeitura e outros imprevistos típicos do mundo subdesenvolvido. Portava todos os documentos de sua vida, inclusive carteira de trabalho, certificado de conclusão de curso de computador, extratos bancários e o comprovante do dinheiro que recebera como indenização por sua saída do emprego - o qual lhe permitiria não só a compra da passagem Rio/Nova York/Rio, como também sua sobrevivência nos Estados Unidos, por uma ou duas semanas.
O agente consular não o decepcionou: com pontualidade irreprovável, recebeu-o em sua imaculada camisa branca de mangas curtas, o bolso cheio de canetas (sinal de elevadíssima graduação na hierarquia funcional). A gravata era sobriamente listrada, tão diferente da de José Dias, que estampava motivos vegetais sobre fundo amarelo. Outro infeliz contraste: os robustos sapatos do funcionário eram de amarrar, de verniz e solas grossas; os de José Dias, mocassins, brejeiros de tão leves e flexíveis.
Com um sorriso ensaiado e constante, José Dias insistia em exibir todos os documentos. O corado funcionário, por trás do bigode louro e dos olhos azuis, examinou apenas os extratos bancários e o comprovante da indenização trabalhista. Quis saber se o entrevistado estava empregado. José Dias esclareceu que iria encontrar trabalho fácil-fácil, mas só cuidaria dessa parte depois de voltar dos Estados Unidos. "Só depois dessas merecidas férias", explicou, bochechando autoconfiança.
- Muito bem - disse o alto funcionário (cujo sotaque era música para os ouvidos do interlocutor). - Ficamos por aqui. Obrigado por seu interesse em conhecer meu país. O senhor receberá pelo correio uma carta do consulado, em resposta ao seu pedido de visto. Tenha um bom dia.
"Obrigado por seu interesse em conhecer meu país." Era um sonho. José Dias saiu da sala, mas não queria sair do prédio consular. Circulou um pouco pelo corredor, fingindo que estava buscando a saída, depois pelo hall de entrada, admirando pôsteres patrióticos, até ser abordado por um marine (um rapaz com uniforme impecável, de um azul marinho que não é nosso) que lhe indicou o caminho da rua. Na recepção, recebeu de volta a carteira de identidade em troca do crachá que, todo pimpão, blasonava; e saiu à calçada, de onde avistou o que parecia ser uma espécie de Sol da Liberdade ou coisa assim.
Um dia, chegou em sua casa um envelope adornado com a águia austera. José Dias estremeceu. Estava vivendo intensíssima relação com os Estados Unidos - entrevista para lá, carta para cá. Tentou conter a curiosidade pelo conteúdo da carta. Queria viver, antes de abri-la, toda a emoção do respeitoso tratamento que recebia do governo norte-americano - uma carta, imagine só. Examinava o verso e o reverso do envelope, admirava-lhe a qualidade da impressão, o bom gosto do timbre. Seu nome e seu endereço vinham expostos numa janela transparente do envelope. Já era a carta. Ela se deixava entrever. Ia abrir. E com tesoura. Antes, sentou-se.
Abriu. A águia de novo, no topo, e ao seu lado a inscrição impressa: "The Consulate General of the United States of America". Leu. O ilustre signatário comunicava a denegação do visto, alegando que "Sua Senhoria não apresentara evidências de que não pretende emigrar ilegalmente para os Estados Unidos".
José Dias não pensara em emigrar, muito menos ilegalmente, mas quem era ele para afirmar que no fundo de sua alma não se escondia, no propósito de viajar aos Estados Unidos, uma pontinha de segundas intenções. O agente consular, afinal, era um arguto investigador dos mais recônditos inconscientes alheios. Um perito na alma dos brasileiros.
Com grande apreço, José Dias espremeu a carta contra o peito.
João Inácio Padilha é escritor, autor de Bolha de Luzes