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Exposição
O Guardião das Palavras

O centenário de nascimento de Jorge Luis Borges é motivo para uma exposição multimídia com a vida e a obra do autor argentino que
transformou a literatura do século 20


"Se as páginas deste livro consentem algum verso feliz, perdoe-me o leitor a descortesia de
tê-lo usurpado eu, previamente. Nossos dados pouco diferem; é trivial e fortuita a circunstância de que sejas tu o leitor destes exercícios e eu, seu redator."
(Jorge Luis Borges, no prefácio do livro Fervor de Buenos Aires)

Consta que as letras já existiam. Não algumas, mas todas. Dispostas em combinações infinitas, de cujos arranjos, igualmente infinitos, foram tecidas todas as palavras conhecidas, em qualquer língua, em qualquer tempo. O escritor é apenas um felizardo leitor que descobre, não sem inefável trabalho, a ordem das frases mais certeiras e as redige. E dessa labuta compõem-se parágrafos, páginas e textos. Compõe-se, enfim, ao cabo de alguns anos, uma obra tão vasta e importante que modifica o sentido de absolutamente tudo que ousaram escrever antes.

Inesgotável é Jorge Luis Borges, cujo centenário de nascimento celebra-se este ano. No século 20, foi esse escritor argentino quem estilhaçou a linguagem então vigente e, no lugar, criou um novo código exuberante, repleto de metáforas e descobertas surpreendentes, distribuídas entre centenas de poemas, contos e ensaios, grafados em espanhol por mero deslize geográfico, pois sua obra contempla a linguagem universal da perfeição matemática. Aproveitando-se da efeméride como simples pretexto, o Sesc Vila Mariana realiza até dia 4 a exposição Labirintos de Borges, um evento multidisciplinar que reúne vídeo, música, encontros, oficinas, cursos e instalação na tentativa de mostrar o rico universo literário do autor.

"A idéia do labirinto deve-se ao fato dele ser um tema recorrente na obra de Borges", explica Suzana Garcia, coordenadora de eventos do Sesc Vila Mariana. "A intenção do evento foi despertar no público leigo o interesse pela obra e pensamento de Borges, um dos mais importantes intelectuais deste século, sua inserção e contribuição na literatura, bem como sua vida e visão peculiar sobre o cinema, música, poesia e os ricos desdobramentos nas respectivas áreas."
Pelas paredes espelhadas da instalação, encontram-se gravados trechos da obra de Borges, que se relacionam com a idéia de espelho e labirinto. Nos corredores, a presença do público desperta ruídos, música, vozes e elementos gráficos e visuais (fotos, gravuras, reproduções) que remetem ao universo planejado pelo autor.

Tigres e Labirintos

Muitas metáforas pontuaram a trajetória literária de Jorge Luis Borges. A maioria delas fruto de obsessões da infância, como explicou Maria Esther Vázquez, secretária, companheira e co-autora de dois livros, no encontro Vida e Obra, realizado dia 11 de junho. "Muitas imagens utilizadas por Borges durante sua obra permearam constantemente seus anos mais ternos: o tigre, o espelho, o labirinto e a biblioteca marcaram em definitivo seu futuro."

O labirinto tem habitado o inconsciente de várias culturas ao longo do tempo. Faz parte de um pensamento universal, e, no escritor argentino, extrapola símbolos imediatos para se associar com idéias mais amplas, como a biblioteca e o universo: "O universo (que outros chamam de Biblioteca) compõe-se de um número indefinido, e talvez infinito, de galerias hexagonais, com vastos poços de ventilação no centro, cercado de balaustradas baixíssimas", escreveu Borges no primeiro período do conto "A Biblioteca de Babel", do livro Ficções (texto extraído de Obras Completas I, Editora Globo, 1998). Ao interpretar o raciocínio borgesiano, o crítico literário João Alexandre Barbosa, um dos mais importantes do país, também participante da mesa Vida e Obra, disse: "O labirinto é uma idéia central que denota a dificuldade em encontrar caminhos. Da mesma forma, a biblioteca: um lugar onde se perde, mas, ao mesmo tempo se encontra". No mesmo sentido, o poeta e tradutor Nelson Ascher, que esteve no encontro Borges, Milongas e Poesia, em que foram interpretadas as milongas compostas por Borges e musicadas por Astor Piazzolla (como a Milonga de Jacinto Chiclana, reproduzida ao lado), afirma que "o labirinto traz a idéia de que o pensamento, a literatura e as criações humanas não são feitas apenas para transmitir conhecimento, mas consistem em elementos de complicação. Em Borges, há prazer na complicação".

O autor argentino, de fato, escreveu sobre tudo. Na plêiade da sua obra abarcou assuntos variados, de temas portenhos locais a ensaios sobre a cadência temporal dos fatos. Disfarçados sob a máscara da prosa ficcional ou de versos, ele aboletou problemas filosóficos que perturbam a existência humana há milênios. Mantém, a partir dos textos, diálogo íntimo com pensadores e autores de todas as épocas e de todas as línguas. Como resultado, extraiu uma síntese universal do que foi ruminado anteriormente, com o único despropósito de estar expressa numa linguagem simbólica convencional: o espanhol.

"Borges, assim como Kafka, tornou-se um adjetivo que representa uma situação real. Isso porque ele foi capaz de mudar para o fantástico o foco de uma literatura que se aproximava de detalhes cada vez mais realistas. Para ele, o fator imaginativo é um gênero maior, cujo realismo é apenas um episódio. Ele desconstrói todas as vontades utópicas do ser humano, como a imortalidade (O Imortal), por exemplo, ou a originalidade (Pierre Menard, Autor de Quixote)", explica Nelson Ascher.

Fervor de Buenos Aires

É fácil entender, portanto, o imenso interesse provocado por seus textos e o sucesso que uma exposição sobre um escritor não-brasileiro causou no Brasil. Ajudou, é claro, a multidisciplinaridade evidente na obra do argentino, contribuindo para a montagem do evento. Além dos encontros para debates literários, foram exibidos filmes sobre a vida de Borges e adaptações de algumas de suas histórias, como O Homem da Esquina Rosada (ver box).

Menos citada, mas igualmente importante é a ligação de Borges com a música: o tango e as milongas. Ao lado da instalação em forma de labirinto, é possível ouvir o resultado da parceria entre Borges e Piazzolla, por meio de um fone de ouvido. O público pôde apreender, também, a legítima tradição argentina com o grupo Buenos Aires Tango e o Quinteto Baraj, que se apresentaram na unidade.

Borges tinha uma opinião muito particular quanto ao tango, chegando a discutir suas origens em Evaristo Carriero. Preferia o ritmo original, mais fandango e faceiro do que aquele tocado por Gardel, por exemplo, "muito lamurioso", dizia. Das cordas arranhadas de uma viola, empunhada por um gaúcho ou cutillero, Borges declamava seu amor pela terra natal, pelos bairros das orillas (beiras, periferias, em espanhol) de Buenos Aires, onde o tempo passava ao largo e a tradição se enfronhava nas narinas.

Argentina... ou melhor, Buenos Aires, que havia deixado rumo à Europa em 1914 e redescobrira quatro anos depois, rendeu seu primeiro livro de poesias, Fervor de Buenos Aires, cujos exemplares camuflava sorrateiro nos bolsos dos colegas de redação no jornal onde trabalhava. Os versos vanguardistas guardavam latentes os temores infantis, a influência da avó materna que lhe ensinara o inglês antes do espanhol, e a herança intelectual e genética dos Borges, família patrícia, fincada há séculos em solo argentino, que carregava inerente o gene de uma grave doença oftalmológica, responsável pela cegueira nas cinco gerações pregressas a Jorge Luis. Na vida cotidiana, no trato pessoal, era uma pessoa agradável e cordial, como atesta o médico argentino Gregório Montes, professor do Departamento de Patologia da Faculdade de Medicina da USP. Durante sete anos, ele manteve contato constante com o escritor em encontros dominicais quando era ministrado um curso de literatura inglesa. "Borges era dulcíssimo. Ele próprio atendia o telefone e era muito atencioso com as pessoas. Se, por acaso, conseguisse despertar nos alunos o amor por determinado autor ou livro, dava sua tarefa como bem-sucedida." Gregório, aos 17 anos, venceu um concurso televisivo sobre a vida e a obra de Borges, recebendo um prêmio de 1 milhão de pesos.

Na sua trajetória, Borges causou polêmica, é verdade. Durante certo tempo, foi contestado por muitos por não denunciar as mazelas do povo sofrido da América Latina. Depois, as facções de esquerda e de direita consideraram-no elitista. Mas esses detalhes não vêm ao caso. Borges foi Borges; sua biografia é sua obra e sua biblioteca, seus precursores e descendentes. Nas palavras de Maria Esther Vázquez, com exclusividade à Revista E: "O maior legado de Borges foi ter considerado a literatura de uma nova maneira. Seus textos, de um rigor absoluto, não tinham uma vírgula de mais ou uma palavra de menos. Eram de uma precisão matemática. Na literatura, há um antes e um depois de Borges. Ele foi uma influência para os outros idiomas, pois foi capaz de estabelecer um conceito metafísico e filosófico de prosa. Em última análise, Borges reformulou a estrutura de toda uma linguagem, além de ter otimizado a aplicação da filosofia, com a qual reverenciou seus contos e personagens".

"Este é o labirinto de Creta, cujo centro foi o Minotauro/
que Dante imaginou como um touro com cabeça de homem/
e em cuja rede de pedra se perderam tantas gerações/
como Maria Kodama e eu nos perdemos naquela manhã/
e continuamos perdidos no tempo, esse outro labirinto."

Atlas, 1984

O Escritor e o Cinema

Segundo Carlos Augusto Calil, professor da Escola de Comunicações e Artes da USP; palestrante e programador da mostra de cinema e vídeo do Labirintos de Borges, o escritor argentino teve uma vida intimamente ligada ao cinema: foi crítico; freqüentou sessões mesmo após ficar cego, apenas para ouvir os filmes; serviu de personagem/pretexto para obras autorais (inclua aí de Carlos Saura a Godard), e teve sua obra amplamente adaptada. "A programação tentou dar conta desse universo todo", explica Calil. "Ele pensou cinematograficamente", emenda. "Isso fica claro em suas narrativas". Calil nos lembra do olho clínico que Borges tinha para analisar as películas, como na ocasião em que escreveu um artigo para a revista argentina Sur sobre a obra-prima de Orson Welles, Cidadão Kane. "Na época em que o filme foi lançado, o texto teve um impacto enorme."

Sobre o critério de escolha dos filmes que puderam ser vistos na mostra, Calil explica que não se trata de trabalhos obviamente ligados a Borges. O escritor aparece nas fitas hora assinando o roteiro, hora emprestando o argumento de um de seus contos e até como simples fã, como é o caso de Alphaville, de Jean-Luc Godard. "Segundo Maria Kodama, viúva de Borges, esse era um dos filmes preferidos do escritor", revela Calil. "E, na verdade, a gente percebe que é um filme borgesiano. Além de haver uma citação a ele em certa altura da trama, Borges deve certamente ter se sentido muito atraído pela estrutura, pela lógica e pela ficção de Godard."

Milonga de Jacinto Chiclana

Lembro bem que, em Balvanera,
Certa noite do passado,
O nome de um tal Jacinto
Chiclana foi mencionado.
Falou-se ali de uma esquina,
De uma faca - e eu entrevejo
Através de tantos anos
Um duelo e um lampejo.
Persegue-me ainda o nome
Mas por quê, não sei direito;
Quisera ter uma idéia
De como era o sujeito.
Eis que o vejo alto e bem-feito,
Homem de alma comedida,
Que jamais erguia a voz,
Porém punha em jogo a vida.
Ninguém com passo mais firme
Deve ter pisado a terra
E ninguém deve ter sido
Melhor no amor e na guerra
Sobre a horta e sobre o pátio
As torres de Balvanera
E a morte casual na esquina
Que nem recordo qual era.
Não vejo as feições, mas vejo,
À luz amarela e fraca,
O choque de homens ou sombras
E, feito víbora, a faca
Talvez naquele momento
Em que lhe entrava a ferida
Pensou que a um homem condiz
Não retardar a partida.
Só Deus sabe a laia fiel
Daquele homem, mais ninguém;
Senhores, estou cantando
O quanto um nome contém.
Há certa coisa da qual
Ninguém neste mundo sente
Remorso algum. Essa coisa
É ter sido homem valente.
Sempre é melhor a coragem,
Nunca a esperança engana;
Vá, portanto, esta milonga
Para Jacinto Chiclana
Para as Seis Cordas, 1965

- Em 24 de agosto de 1899, nasce Jorge Luis Borges na casa de Isidoro Acevedo, seu avô materno.
- Aos nove anos, traduz do inglês O Príncipe Feliz, de Oscar Wilde.
- Em 1914, devido à cegueira quase total do seu pai, a família se muda para a Europa e se instala em Genebra.
- Em 1921, os Borges retornam a Buenos Aires. O impacto da redescoberta da cidade natal leva-o a escrever Fervor de Buenos Aires, em 1923, e, no ano seguinte, Lua Defronte e Inquisições.
- Cansado do ultraísmo (escola experimental de poesia que se desenvolveu a partir do cubismo e do futurismo), funda um novo tipo de regionalismo, enraizado em uma perspectiva metafísica da realidade.
- Depois, passa a especular por escrito sobre a narrativa fantástica ou mágica. Produz a História Universal da Infâmia (1935), Ficções (1935-1944) e O Aleph (1949).
- Em 1961, compartilha com Samuel Beckett o Prêmio Formentor, outorgado pelo Congresso Internacional de Editores, que representa o começo de sua reputação mundial.
- Ao longo de sua vida, recebeu inúmeros prêmios, como o título Commentadore, do governo da Itália, e o Prêmio Cervantes, sem nunca, no entanto, ter alcançado o Nobel.
- Jorge Luis Borges morre em Genebra, em 14 de junho de 1986.