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Raiz do Brasil

Alimento genuinamente brasileiro, a mandioca é mais importante do que parece

HENRIQUE OSTRONOFF


Foto: Abam

Na carta que enviou a el-rei dom Manuel, em 1500, sobre o que se encontrou nas terras brasileiras, Pero Vaz de Caminha, ao se referir aos primeiros contatos com os nativos, escreveu: "Eles não lavram nem criam. Nem há aqui boi ou vaca, cabra, ovelha ou galinha, ou qualquer outro animal que esteja acostumado ao viver do homem. E não comem senão deste inhame, de que aqui há muito, e dessas sementes e frutos que a terra e as árvores de si deitam".

Diante da novidade, o escrivão da armada de Pedro Álvares Cabral equivocava-se. O inhame, na verdade, é espécie exótica, e só foi trazido da África para cá anos depois. Mas Caminha não teria como descrever o que observara. Era a primeira vez que um europeu se deparava com a raiz. Supõe-se que foi assim que o homem branco conheceu a mandioca, uma espécie vegetal genuinamente brasileira. Estudo baseado em pesquisas filogenéticas publicadas pelo Centro Internacional de Agricultura Tropical (Ciat) em 1994 indica a região nordeste do Brasil como o mais provável local de origem da planta. Daí ela provavelmente se espalhou pela América do Sul, chegando à América Central e ao México. A espécie Manihot esculenta é uma domesticação da variedade primitiva. Seleção natural e interferência humana por meio de sucessivos cultivos trataram de modificá-la em um processo de milênios. Wania Fukuda, pesquisadora em melhoramento genético da unidade Mandioca e Fruticultura Tropical da Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária (Embrapa), localizada em Cruz das Almas (BA), calcula que existam mais do que os 4 mil tipos de mandioca catalogados, além das variedades silvestres já extintas. As raízes classificadas como bravas são venenosas, pois contêm ácido cianídrico em uma proporção maior que 100 miligramas por quilo; já as mansas ou doces têm ácido em quantidade tolerável e são também conhecidas como aipim ou macaxeira. Os processos de retirada do ácido cianídrico são bastante conhecidos. Por isso, a raiz bem manipulada raramente causa algum dano ao ser humano.

Anos depois da chegada dos portugueses, com as visitas cada vez mais constantes de exploradores brancos ao futuro território brasileiro, o engano de Caminha foi se desfazendo. O aventureiro alemão Hans Staden, que esteve no Brasil durante os anos 1550, escreveu no livro Duas Viagens ao Brasil: "(...) plantam entre os troncos [da mata derrubada e queimada] as raízes de que precisam, a que chamam mandioca. É arbusto de uma braça de altura, que dá umas três raízes. Quando as querem comer, arrancam o pé, quebram-lhe as raízes e depois os galhos. A estes colocam-nos outra vez na terra, onde criam raízes de novo, e em seis meses crescem tanto que já dão o que comer". E continua o relato descrevendo o preparo da farinha: "Primeiro ralam as raízes em uma pedra, até que fiquem em grãos miúdos; tiram-lhes depois o suco com um aparelho feito de folhagem de palmeira, ao qual chamam tipiti, que eles esticam; passam tudo depois numa peneira e fazem da farinha uns bolinhos achatados. A vasilha em que secam e torram a farinha é de barro cozido (...) Também tomam as raízes frescas e as deixam na água, até apodrecerem, que é quando então as retiram e põem-nas no fumeiro, onde secam. A essas farinhas secas chamam keirima [carimã ou farinha puba] e conservam-se por muito tempo e, quando precisam delas, socam-nas em um pilão de madeira, onde ficam alvas como farinha de trigo. Disto fazem eles bolinhos que chamam byyw [beiju]. Também tomam a mandioca apodrecida, antes de seca, e a misturam com a fresca e a seca, com o que preparam e torram uma farinha que pode conservar-se um ano, sempre boa para comer. Esta farinha chamam-na V. y. than [yutan, ou farinha dura]". Os processos de plantio e de processamento pouco mudaram até hoje nas pequenas propriedades do país.

Durante o início do empreendimento colonial, a farinha de mandioca passou a fazer parte da alimentação diária e básica dos colonizadores e foi integrada à mesa dos europeus. Substituía o trigo, cereal importado e raro no Brasil da época, dadas as dificuldades de transporte dos produtos trazidos da Europa. Quando a falta de opções se impunha, os estrangeiros se rendiam aos costumes indígenas.

O português Gabriel Soares de Sousa, fazendeiro instalado na Bahia no final do século 16, celebrou a mandioca em seu livro Notícia do Brasil, em que, em tom ufanista, escreveu: "(...) e ainda digo que a mandioca é mais sadia e proveitosa que o bom trigo por ser de melhor digestão. E por se averiguar por tal, os governadores Tomé de Sousa, dom Duarte e Mem de Sá não comiam no Brasil pão de trigo, por não se acharem bem com ele, e assim fazem tantas outras pessoas".

Na mesma época, o padre José de Anchieta anotou: "O pão comum dessas terras é de raízes de mandioca". O também jesuíta Fernão Cardim, em Tratados da Terra e Gente do Brasil, de 1625, afirmou: "O mantimento ordinário desta terra que serve de pão se chama mandioca e são umas raízes como de cenouras, ainda que mais grossas".

Desde o final do século 16, os bandeirantes paulistas empreenderam longas expedições para escravizar índios e procurar ouro. Nessas viagens, que chegavam a durar anos, levavam como farnel a farinha seca, chamada "farinha de guerra", acompanhamento para carne de caça e peixes. Constituía o sustento para a jornada. No caminho, eram deixados homens que se dedicavam a formar roças de mandioca para o preparo de farinha. Depois de pronta, meses mais tarde, ela era levada para os que seguiam adiante. Dessas plantações provinha também o abastecimento para a viagem de volta. Algumas roças criadas ao longo de estradas coloniais originaram cidades.

Ao sair do Brasil, os navios que serviam ao tráfico de escravos levavam farinha de mandioca. Durável, ela resistia à demorada travessia do Atlântico e era parte substancial da precária alimentação dos cativos e da tripulação subalterna. Para agilizar o abastecimento, a raiz passou a ser plantada também na África. Hoje, a Nigéria lidera o ranking dos países produtores. Entre os dez maiores estão as antigas colônias portuguesas Moçambique e Angola, segundo dados de 2004 da Organização das Nações Unidas para Agricultura e Alimentação (FAO).

O artista francês Jean-Baptiste Debret esteve no país na segunda década do século 19. Em seu livro Viagem Pitoresca e Histórica ao Brasil, o pintor observou que o sustento do escravo "numa propriedade abastada compõe-se de canjica, feijão-preto, toucinho, carne-seca, laranjas, bananas e farinha de mandioca". Em fazendas mais pobres, "um pouco de farinha de mandioca umedecida, laranjas e bananas". Por terem de se adaptar aos alimentos fornecidos pelos senhores, os africanos viriam a somar a mandioca a algumas receitas que criariam no Brasil. A mais famosa é a feijoada, da qual a farinha é acompanhamento inseparável.

Passados cinco séculos da chegada dos europeus ao país, culturas e hábitos se entrelaçaram, e a raiz foi assimilada de diversas formas à alimentação de brasileiros de todas as regiões. Com o básico feijão com arroz, não pode faltar a farinha. Na culinária amazônica, de origem indígena, ela acompanha açaí e peixes e compõe o pirão; o tacacá se prepara com suco e goma da mandioca; o tucupi é o próprio sumo temperado; e as folhas da planta integram a maniçoba. A farinha é ainda complemento indispensável, seja qual for o ingrediente principal da refeição do habitante do nordeste. A tapioca ou beiju, consumida de diversas maneiras dependendo da região, é quitute obrigatório do dia-a-dia do nordestino. No sudeste, a farinha participa de misturas que resultam no tutu de feijão e no virado à paulista. Nos estados sulistas está presente no churrasco gaúcho, nos pratos da culinária açoriana praticada no litoral catarinense e no barreado paranaense.

Em boa parte do país – em especial nas regiões menos desenvolvidas e entre os de menor renda –, a mandioca, e principalmente sua farinha, continua sendo o "pão do brasileiro". Segundo a engenheira agrônoma Teresa Losada Valle, pesquisadora do Instituto Agronômico de Campinas (IAC), da Secretaria de Agricultura e Abastecimento do Estado de São Paulo, a adaptação ao meio e a facilidade de cultivo mantiveram a importância da raiz até hoje. Ainda de acordo com ela, "a questão é mais abrangente, é socioeconômica", pois no interior do país, principalmente no norte e no nordeste, faz parte do comércio local e informal, utilizada pela população de baixo poder aquisitivo para adquirir outros produtos para o sustento. Deve ser encarada como item de segurança alimentar, já que as roças de mandioca das pequenas propriedades servem também para complementar a cesta básica.

João Eduardo Pasquini, presidente da Câmara Setorial da Cadeia Produtiva da Mandioca e Derivados, ligada ao Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento, estima que 65% das propriedades onde se planta a raiz possuem menos de 6 hectares e que quase tudo o que se produz é destinado ao consumo em forma de farinha e in natura. Dados do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) ajudam a compreender o quadro. O Censo Agropecuário, realizado na década passada, mostrou que, em 1995, havia 2,4 milhões de propriedades rurais com até 10 hectares, ou 49% do total. Dessas, 65% estavam localizadas na região nordeste.

Números da Pesquisa de Orçamentos Familiares 2002/2003, do IBGE, confirmam o que diz a pesquisadora do IAC. Na região norte, o consumo anual por pessoa era de cerca de 34 quilos de farinha de mandioca e, no nordeste, de 16 quilos. Para as famílias com rendimento de até R$ 600 mensais, cada pessoa adquiria uma média de 14 quilos de farinha de mandioca e 8 quilos de pão francês. Essa relação se inverte conforme aumenta o nível de renda. Entre as famílias com renda superior a R$ 3 mil, são 16 quilos de pão contra 2 de farinha.

A procura, porém, já foi mais expressiva. É o que mostra o estudo "Retrospectiva do Setor de Mandioca e Desafios Futuros", do engenheiro agrônomo Jairo Ribeiro da Silva. Em 1966, o Brasil produziu quase 26 milhões de toneladas de mandioca, duas vezes o volume alcançado em 1948; o consumo anual, no início da década de 1960, era de aproximadamente 120 quilos por habitante – cerca de 40 quilos na área urbana e 200 quilos na rural. Representava mais de três vezes o que se consumia de arroz no mesmo período. Diante desses números, estimava-se então uma safra de 40 milhões de toneladas em 1980. No entanto, após atingir 31 milhões de toneladas em 1971, no ano seguinte houve uma diminuição para 24 milhões de toneladas. Em 2005, a produção foi de cerca de 28 milhões de toneladas da raiz.

As causas para que as previsões de aumento de produção não se confirmassem são apontadas no estudo de Ribeiro da Silva. Primeiramente, a política adotada pelo governo já a partir de 1950, que envolveu tanto a compra de trigo barato no mercado internacional quanto subsídio aos moinhos, teve como conseqüência a retirada da raspa de mandioca da massa do pão, prática então comum. Em segundo lugar, a população brasileira se urbanizou de forma mais intensa desde os anos 1960, afastando muita gente das roças. Além disso, com a modernização da pecuária e o crescimento da indústria de ração animal, a partir da década de 1970, a mandioca foi sendo substituída pelo milho. Outra razão mencionada foi o incentivo dado, a partir de 1975, pelo Programa Nacional do Álcool (Proálcool), de substituição de derivados de petróleo, ao plantio da cana, escolhida como matéria-prima preferencial para a fabricação de álcool combustível. Vale lembrar que, no mesmo período, o desenvolvimento de culturas voltadas para a exportação resultou no predomínio de commodities valorizadas sobre plantações tradicionais de alimentos.

Tentativas de valorizar o cultivo da raiz empreendidas nos últimos anos, ainda que timidamente, têm modificado o panorama. O amido, ou fécula de mandioca, também chamado de polvilho ou goma, é usado em setores que empregam tecnologia moderna, como nas indústrias de alimentos, química, metalúrgica, têxtil e plástica. João Eduardo Pasquini, que também é proprietário de fecularia, calcula que sejam aproveitados cerca de 10% a 15% de toda a mandioca produzida no país para a fabricação de fécula. "Foram cerca de 2,5 milhões de toneladas transformadas em 600 mil toneladas de amido, em 2006." Dados da Associação Brasileira dos Produtores de Amido de Mandioca (Abam) mostram que em 2005 a maior parte do produto foi destinada às indústrias de panificação, massas e biscoitos (28%), de papel e papelão (25%) e frigorífica (13%). As exportações ainda são pequenas, e totalizaram 11,5 mil toneladas em 2005. Por conta desse quadro de industrialização da mandioca, já existem grandes plantações de variedades da raiz desenvolvidas especialmente para esse fim, que chegam a ocupar áreas de até 2 mil hectares.

O polêmico Promandioca, projeto de lei do deputado Aldo Rebelo criado em 2001 e retomado em 2006, que obrigava à adição de 10% de raspa de mandioca ao trigo do pão francês, era o estímulo esperado pelo setor para crescer. Calcula-se que cerca de 750 mil toneladas de fécula seriam necessárias para viabilizar integralmente a mistura, mais do que o produzido atualmente no país. No entanto, segundo João Eduardo Pasquini, as fecularias trabalham com 50% de sua capacidade instalada.

Por pressão dos moinhos de trigo e de associações de panificadores, de um lado, e do setor mandioqueiro, de outro, a comissão da Câmara de Deputados que avaliava o projeto de Aldo Rebelo decidiu modificá-lo. A lei a ser votada pelo Congresso prevê que apenas os produtos farináceos como pães, macarrão e biscoitos adquiridos por órgãos governamentais levarão a mistura. Isso, no entanto, representará um acréscimo de produção de cerca de 150 mil toneladas de fécula de mandioca por ano, segundo estimativas de Pasquini.

Na época do lançamento do Proálcool, na década de 1970, estava prevista a utilização da mandioca como uma das matérias-primas para a fabricação do etanol. Havia no país, nos anos 1980, quatro grandes destilarias que empregavam a raiz para a obtenção de álcool combustível. Nenhuma delas sobreviveu. Segundo Jonas Arantes Vieira, diretor técnico da Agro Industrial Tarumã, faltou estímulo a projetos agroindustriais de grande porte para abastecer as usinas. Além disso, as oscilações do preço da farinha ocasionavam o desvio da produção para negócios mais lucrativos. A falta de pesquisas voltadas para o desenvolvimento de mandioca para as destilarias, como ocorreu no caso da cana, agravou a situação, já que não houve avanços significativos de produtividade.

Arantes defende a utilização da raiz para a produção de biocombustível, pois "requer menos tecnologia para o cultivo e poderia gerar distribuição de renda entre os pequenos agricultores". A Tarumã, da qual Jonas Arantes é sócio, foi uma das destilarias idealizadas para produzir álcool combustível a partir de mandioca. Localizada em São Pedro do Turvo (SP), atualmente se dedica à fabricação de álcool neutro, purificado e inodoro, extraído do milho, e também da mandioca, para as indústrias de perfumes e de bebidas.

Em outro trecho de seu livro, o alemão Hans Staden descreve a fabricação do cauim, bebida ritual de algumas tribos indígenas, especialmente dos tupinambás: "As mulheres é que fazem também as bebidas. Tomam as raízes da mandioca, que deitam a ferver em grandes potes, e, quando bem fervidas, tiram-nas e passam para outras vasilhas ou potes onde deixam esfriar um pouco. Então as moças assentam-se ao pé a mastigarem as raízes, e o que fica mastigado é posto numa vasilha à parte. Uma vez mastigadas todas essas raízes fervidas, tornam a pôr a massa mascada nos potes, que então enchem de água e misturam muito bem, deixando tudo a ferver de novo. Há então umas vasilhas especiais, que estão enterradas até o meio, que eles empregam como nós os tonéis para o vinho ou a cerveja. Aí, despejam tudo e tampam bem; começa a bebida a fermentar e torna-se forte. Assim fica durante dois dias, depois do que bebem e ficam bêbados. É densa e deve ser nutritiva". Também derivada da mandioca, a tiquira é um destilado típico maranhense, com gradação alcoólica elevada, entre 36 e 45 graus. Alguns defendem sua origem indígena, mas outros garantem que era preparada por escravos no Maranhão. Já o shochu é uma bebida que existe pelo menos desde o século 15 no Japão, onde é mais consumida que o saquê. É destilada de diversos cereais e tubérculos e tem gradação alcoólica entre 15 e 45 graus. Uma nova marca faz parte do mercado japonês: a Hakkon, que significa "espírito brasileiro". A bebida é feita de mandioca orgânica e exportada pela MN Própolis, empresa de Mogi das Cruzes (SP). 

 

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