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Em debate a reforma eleitoral

Juristas discutem o sistema em uso nas eleições brasileiras

Dezessete anos depois de sua criação, e após jogar luz sobre uma infinidade de temas de notória importância, o Conselho de Estudos Jurídicos da Federação do Comércio do Estado de São Paulo mudou. Passou a chamar-se Conselho Superior de Direito e chega com uma proposta mais abrangente. Se antes se limitava a reflexões acadêmicas, agora assume a condição de conselho superior em relação aos outros órgãos tutelados pela Fecomercio, "uma espécie de orientador daqueles", diz o jurista Ives Gandra da Silva Martins, presidente do novo corpo coletivo. Ele comenta que o Conselho Superior de Direito terá como objetivo, também, colaborar com os poderes constituídos. "Ou seja, não vamos restringir nosso trabalho à contemplação e meditação de cada um dos assuntos debatidos", destaca. Ao contrário, "o conselho passa a ter um papel mais atuante".

A idéia é promover de seis a oito reuniões anuais e convidar juristas de todo o país. O primeiro desses encontros, realizado em 22 de março passado, contou com a presença dos seguintes conselheiros, além do próprio Gandra: Américo Lacombe, Antonio Carlos Rodrigues do Amaral, Antonio Penteado Mendonça, Aureliano Torres, Bernardo Cabral, Cássio Mesquita, Cláudio Lembo, Celso Lafer, Cid Heráclito de Queiroz, Damásio de Jesus, Fátima Fernandes Rodrigues de Souza, Francisco Rezek, João Grandino Rodas, Manoel Gonçalves Ferreira Filho, Luiz Carlos de Azevedo, Marilene Talarico Martins Rodrigues, Mônica Herman, Nelson Azevedo Jobim, Ney Prado, Ricardo Lobo Torres, Roberto Rosas e Rogério Gandra Martins. Estavam ali para debater a reforma política a partir de palestra conduzida pelo ex-ministro do Supremo Tribunal Federal, Nelson Jobim, tema de grande atualidade e cujo conteúdo, abreviado, é relatado a seguir.

Nelson Jobim – Há uma percepção, pelo menos da parte do Congresso, do esgotamento do modelo atual decorrente de circunstâncias objetivas, ou seja, do custo das campanhas eleitorais. Mas é bom ter presente que as questões atinentes à reforma eleitoral não nascem do debate meramente acadêmico, decorrem de circunstâncias objetivas. Eu diria, pois, que temos aqui três eixos e que dois deles já não são mais motivo de discussão. Um refere-se à definição da cidadania eleitoral, ou seja, aquele que deve votar e aquele que deve ser votado. Isso é um assunto mais ou menos superado, experimentamos uma longa evolução e chegamos, no final, ao voto obrigatório dos 18 aos 70 anos de idade e facultativo a partir dos 16 anos. Ou seja, a inclusão eleitoral é imensa e a participação do eleitor no Brasil é a maior do mundo.
Outro tem a ver com os republicanos, logo no início da República, e com o discurso efetivo de Campos Salles em relação à fraude eleitoral, a fim de que o partido se saísse vitorioso nas eleições. A sigla não tinha penetração, faltava-lhe capilaridade quando a República foi proclamada. Na verdade, deram um golpe de Estado e o regime transformou-se em República pelas circunstâncias daquele momento. Até o dia 18 de novembro de 1889 não se sabia ainda se a República havia sido proclamada. Decidiram que o Brasil seria um estado republicano quando o imperador resolveu ir embora.
E chegamos ao Código Eleitoral de 1932, que introduziu o sistema proporcional, que é o modelo de hoje, e deu vida ao quociente eleitoral. O eleitor votava numa lista de candidatos e somente seriam eleitos aqueles que obtivessem o quociente eleitoral. Era o número de eleitores dividido pelo número de vagas, e os demais seriam eleitos pelo quociente partidário. Desapareceu a votação de vários nomes e criamos a votação de um. É daí que vem o modelo atual, que nos leva a uma análise não dogmática, não jurídica, mas política. A soma de votos válidos, dividida pelo número de vagas correspondentes ao Estado, resulta no quociente eleitoral.
E a que conclusão esse modelo nos leva? A uma resposta óbvia: para conquistar um maior número de vagas é essencial ter maior número de votos. Só que aqui há um problema adicional: em nosso modelo o voto é uninominal, isto é, o cidadão vota no candidato. Tanto isso é verdade que nos processos eleitorais comuns, quando se saía à cata de votos – o que fiz diversas vezes no Rio Grande do Sul –, o cidadão dizia: "Eu não voto em partido, voto em pessoas". E isso era dito com orgulho.
Os partidos perceberam essa relação íntima dos eleitores com o candidato. Então passamos a buscar, principalmente a partir dos anos 1970, as pessoas capazes de produzir votos individuais. Que poderiam trazer, por obra própria, os votos para o partido, de forma tal que a sigla conquistasse um número maior de vagas. Foi então que começamos a pinçar candidatos oriundos de categorias profissionais. Saíamos à procura de pessoas que fossem representativas de interesses de categorias organizadas no Estado. Tínhamos no sul três tipos de personagens que se encaixavam nesse figurino: os professores públicos estaduais, os policiais militares (os brigadianos) e os eletricitários. Depois passamos a ir atrás dos "candidatos de aparelho", ou seja, pessoas que dispunham de um mecanismo de acesso à população. Eram os cronistas esportivos, e havia aquela euforia da Copa do Mundo. Não se tratava do profissional que irradiava o jogo – é bom lembrar que a televisão não estava tão difundida –, e, sim, daquele que fazia a crônica, porque estabelecia um tipo de raciocínio e a empatia do personagem entrava pelos ouvidos. Só mais tarde começou a entrar pelos olhos, com a popularização da televisão.
Como a taça andou fugindo de nossas mãos, os cronistas perderam espaço. E foram surgindo, ainda dentro da mídia, novos candidatos, donos de programas assistencialistas, caso, em São Paulo, de Afanasio Jazadji. Depois, passou a interessar um outro grupo de pessoas que tinham tribuna, ouvintes cativos e recursos: os pastores evangélicos. Fazíamos uma espécie de pesquisa científica com o objetivo de levantar o número de igrejas e de fiéis que eram por elas mobilizados.
E houve um grupo de candidatos que nasceu da necessidade de elegermos parlamentares capazes de representar os interesses regionais, tais como a construção de pontes, de escolas, enfim, estamos falando de infra-estrutura. E entrou em cena o Clube de Diretores Lojistas (CDL), que é bastante difundido nas cidades do interior. "Votem no deputado da região", pregavam essas entidades. O deputado era uma espécie de vereador nacional e tinha como meta trazer recursos a seu estado, a sua região, e disputar valores. Não foram poucos os deputados regionais que bateram às portas da Secretaria de Assuntos Comunitários, criada no governo José Sarney, atrás de dinheiro para erguer ginásios de esportes. Houve uma enxurrada de instalações construídas assim e que foram batizadas com o nome dos deputados que levantaram o recurso em Brasília. Aquilo lhes assegurava um retorno de votos.
Além dessas havia uma outra modalidade de candidatos que denominamos líderes partidários e que, para ter maior espaço, recorriam à contribuição de todo esse conjunto. E, por último, relaciono os candidatos de financiamento. Entendam que os diretórios organizados dos partidos só têm um compromisso: levantar recursos. O nacional tem de obter financiamento de campanha para presidente da República; os regionais respondem pelo dos candidatos a governador e senador. Isso porque, no caso dos deputados federais, eles próprios saem atrás de recursos. Notem que os chamados candidatos de financiamento dizem respeito, no mais das vezes, a suplentes de senadores. É o sujeito que tinha acesso ao setor industrial, por exemplo, e ali procurava levantar recursos. Essa era a lógica do sistema.
Faço aqui uma pergunta: essa lógica decorria de quê? Do modelo! Foi exatamente a estrutura do sistema que conduziu a essa prática, porque uma coisa é certa, o partido entra na disputa para ganhar a eleição. Não venham com essa conversa de dizer que ele participa apenas para marcar posição. Quando você vai concorrer, tem de saber como chegar lá e quais os meios para tal.
Outra pergunta: diante do exposto, como podemos falar em fidelidade partidária? O cidadão é fiel a suas bases eleitorais, a seus votos, e não ao partido que lhe deu a legenda. O desastre para o candidato de uma categoria profissional era o aspirante a governo por seu partido não sair vitorioso, porque todas aquelas promessas, as reivindicações do segmento que representava podiam não ser atendidas. E qual era o resultado? Ele mudava de partido e ia para a oposição. Havia uma circulação partidária desses personagens, porque os votos eram deles, e iam junto com eles para outros partidos. Depois o fenômeno foi se atenuando porque essa mudança alterava, inclusive, a participação no fundo partidário e o tempo de televisão.

Ives Gandra – Quando fui presidente do diretório metropolitano do Partido Libertador, em São Paulo, de 1962 a 1965, já havia candidatos de segmentos na eleição para vereador. Houve um candidato com boa aceitação na mídia simplesmente porque mandara confeccionar vestidos de noiva para serem emprestados às moças pobres. Ele, inclusive, auxiliava no casamento e permitia as mudanças mediante a disponibilização de um pequeno caminhão. É até dispensável dizer que ele se elegeu.

Rogério Gandra – Como reverter o esgotamento do modelo atual?

Jobim – Vou ser pragmático: para fazer a mudança "ideal", só mesmo pelo processo ditatorial, o que ninguém vai querer, mesmo porque não há como. Carecemos, portanto, de estabelecer um processo de negociação política, mas com uma perspectiva: saber como no médio prazo se chegará a uma solução. Com o discurso reprovador não vamos resolver nada. Acho, pois, que deveríamos adotar um compromisso histórico a fim de contribuir para essas soluções. E lembraria o seguinte: este modelo nos leva a uma pulverização partidária e de personagens que decorre de algo que todo mundo valoriza bem: o voto universal. Quando, no século 19, se expandiu a cidadania política, que era restrita à representação, e os Estados começaram a ser intervencionistas, surgiu o voto universal. E o que ele determina? A chegada para dentro do Estado não apenas dos contribuintes, mas também dos beneficiários. Surgiram então as representações destinadas a criar um estado intervencionista e um assistencialista. Sabemos muito bem que com isso a democracia entrou em déficit, porque os compromissos foram maiores que as receitas, além do fato de nossos juristas terem confundido a cidadania dos direitos civis, o direito de ir e vir, a cidadania dos direitos políticos, o direito de votar, os direitos potestativos que se satisfaziam pelo mero exercício – não havia nenhuma contraprestação –, com a cidadania dos direitos econômicos e sociais, que são direitos relativos porque dependem da capacidade da sociedade de pagá-los. E o que temos hoje? Em face desse modelo e do voto universal, assistimos a uma pulverização imensa que gera um enorme ônus.

Ney Prado – Um sistema como o de listas estaria por se tornar realidade, e quando?

Jobim – Creio que ainda levará uns dez anos. Não posso antecipar, pois o resultado da doutrina é conseqüência, não causa. É preciso primeiro fazer esse processo de transição. No momento em que se conseguir esse processo, todo o resto acontecerá naturalmente, através da razão do voto. Por que o cidadão vota naquele partido? Então o eleitor não estará votando no indivíduo. Digo que há espaço para discutir o sistema eleitoral de listas. Sou favorável à lista fechada, que é a forma de forçar que o voto seja partidário e então exigir a fidelidade como uma conseqüência.

Cid Heráclito de Queiroz – Para o aperfeiçoamento de nossa democracia representativa justifica-se a chamada cláusula de barreira? Ela deve ser aprofundada ou eliminada?

Jobim – Sou favorável à cláusula de barreira. Não há outra solução. Lembrem-se: a cláusula de barreira surgiu na Alemanha como uma necessidade, devido à bobagem representada pela Constituição de Weimar. Ela era acadêmica e democrática, só que seus elaboradores se resumiam, em boa parte, a juristas e a não políticos. Tratava-se de algo academicamente perfeito, só que tinha um problema: fazia maioria para derrubar governos e não para criá-los. Reuniam-se e desbancavam governos à vontade, porque havia uma pulverização partidária, todos os setores da sociedade estavam representados no Parlamento. O fruto mais direto da Constituição de Weimar foi o nacional-socialismo.

Antonio Penteado Mendonça – Antes de falar em reforma eleitoral no Brasil, não teríamos de tratar da questão de oito deputados como o mínimo previsto pela Constituição para cada estado? A Comissão de Constituição, Justiça e Cidadania do Senado recentemente aprovou um plebiscito para a criação do estado do Maranhão do Sul. Quer dizer, serão mais oito deputados representando uma população absolutamente irrisória. Como é que se desata esse nó?

Jobim – Essa é uma antiga disputa, encabeçada pelo estado de São Paulo. Eu diria que não temos mais como mexer nisso. Temos, isso sim, de tratar a questão como um fato real e não como um dado ao qual devamos nos opor.

Américo Lacombe – Que sistema poderia substituir o atual? O distrital puro, em que, penso eu, teríamos somente vereadores federais, ou o distrital misto, ou um outro qualquer?

Jobim – Eu me oponho por completo ao sistema do voto distrital majoritário típico, qual seja, fazer a divisão em distritos eleitorais. Cada distrito eleitoral elege um candidato e ele vai ser o representante por maioria. Não parto desse pressuposto. Fala-se muito do sistema distrital misto alemão, mas temos de ter em mente que os sistemas eleitorais são produto da história, isto é, não decorrem de diálogos acadêmicos. 

 

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