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Tecnologia x liberdade

Vivemos uma espiral de informações e controle

JOSÉ ROBERTO FARIA LIMA


José Roberto Faria Lima
Foto: Nicola Labate

O economista e ex-deputado federal José Roberto Faria Lima esteve presente no dia 9 de novembro de 2006 no Conselho de Economia, Sociologia e Política da Federação do Comércio do Estado de São Paulo, onde proferiu uma palestra com o tema "Tecnologia da informática, o governo e a liberdade individual".
Reproduzimos abaixo sua exposição e o debate que se seguiu.

O homem é um animal que sempre colecionou informações. Há mais de 4 mil anos vem gravando coisas com pintura em cavernas, depois em papiros ou tábuas de barro. Assim foi evoluindo até chegar ao pen drive de hoje, com capacidade para 1 gigabyte de memória. Cabe uma biblioteca inteira dentro de um chaveirinho desses. Esse acúmulo de informações faz parte de nossa realidade.

Outra coisa interessante a destacar é a cultura brasileira. Temos origem portuguesa, da qual me orgulho, mas seu aspecto cartorial é terrível. Tomé de Sousa criou a semente da burocracia quando chegou aqui com os alfarrábios do Estado, entre os quais o requerimento para limpar as ruas de uma cidade que nem existia. Então o acúmulo de informações e o excesso de burocracia compõem um processo muito crítico que temos de enfrentar.

Outra coisa a destacar é a luta eterna do homem pela liberdade. Sentir-se livre é da essência humana. Sem a liberdade não se chega a lugar algum, não se encontram os caminhos da verdade, não se sente a paz, não se vive a felicidade. É um processo que vem de longa data, passando pela primeira globalização, aquela do tempo de Vasco da Gama, que descobriu o caminho das Índias. Vasco da Gama iniciou o processo de troca, de escambo, e a primeira fase da globalização. A segunda fase veio através da industrialização.

Vamos dar alguns saltos nessa cronologia para chegar à terceira globalização, que estamos vivendo agora, e que começou em 1957, quando os russos lançaram o Sputnik ou, se preferirem, um pouco mais tarde, quando Iuri Gagarin disse que a Terra era azul. Nesse momento o mundo começou a encolher de forma muito mais rápida do que acontecia até então. Ele ficou pequeno, sem distâncias. Pior: ficou instantâneo.

Sobre esse aspecto, lembro-me de uma pequena história. Micrômegas é um personagem de Voltaire, um alienígena gigantesco que visita a Terra e conclui ser impraticável viver aqui, pois considera nosso planeta completamente enlouquecido. É o que sentimos hoje. Mas isso mostra que a vida é uma espiral crescente. Não sou pessimista, admito que o processo de desenvolvimento é permanente, não há retrocessos.

Um aspecto bom a destacar é que a busca pela liberdade gerou o habeas data. Hoje, por exemplo, há cerca de 100 milhões de usuários de internet. Só no Brasil já existem, registrados, em torno de 1 milhão de domínios. E nos sentimos completamente perdidos, mais do que antes desse processo evolucionário, fruto dos computadores e da internet. O que caracteriza este momento não é a mudança, mas o processo de aceleração da mudança. Em 1986, duas das principais inovações hoje corriqueiras não existiam. Uma delas é o celular e a outra o CD. Hoje todo mundo usa CDs e já estão pensando torná-los obsoletos, criando alguns chips de informação. Em 1992, no tempo de Bill Clinton, ninguém tinha e-mail. Fico pensando: "Como viver sem celular, sem ouvir um CD e sem usar e-mail?"

Quando Petrônio Portela me chamou para implantar o Prodasen [Centro de Informática e Processamento de Dados do Senado Federal, hoje Secretaria Especial de Informática do Senado Federal] e obtive a autorização para fazê-lo, tínhamos o melhor sistema do planeta. Mas só costumamos notar o lado positivo, e esquecemos que toda moeda tem duas faces. Precisamos ver as conseqüências do processo de informatização, a realidade desse novo mundo, o impacto na sociedade. O processo estava se expandindo e uma empresa que administra cartões de crédito tem tanta informação a seu respeito que conhece mais sobre você que sua própria esposa e filhos. Ela pode elaborar até seu perfil psicológico. Sabe se você tem propensão para engordar, suas preferências, para onde viajou, etc., pois tudo está arquivado e sem controle. Quando fizemos a implantação do sistema, o pessoal do SNI [Serviço Nacional de Informações] nos procurou para dizer: "Vocês estão utilizando uma técnica de pesquisa fonética fantástica, queremos usá-la também". A pesquisa fonética era novidade em 1971. Hoje temos o Google, a empresa do hoje e do amanhã, porque ela sabe a localização de qualquer coisa que se imagine dentro da imensa base de dados que existe no planeta.

Há também a tecnologia de identificação por radiofreqüência (RFID), que está acabando até com o código de barras. Você põe uma etiqueta numa calça jeans e por onde o sujeito passar vai levar e captar informações. É terrível. Isso já existe no Brasil. Tenho colegas que estão trabalhando num projeto do exército, em que se coloca RFID em equipamentos de guerra, armas e munição, durante a fabricação, de modo a obter informações de todo o histórico de certificação da peça. Tudo caminha para isso.

Estive na Expo Management, onde ouvi uma palestra de Stephen Covey, aquele que escreveu Os Sete Hábitos das Pessoas Altamente Eficazes. Ele mostrava a necessidade de ter confiança nas pessoas, algo positivo não só para as grandes empresas mas para os pequenos negócios.

É importante que se entenda esse problema que estamos vivendo hoje, porque é muito sério. Quem manda no processo são as multinacionais, transideológicas. Como caiu o Muro de Berlim, nem são mais transideológicas, são apenas multinacionais, só que mais consolidadas e com um núcleo de pesquisas bem desenvolvido. Hoje não existe mais a dicotomia entre pesquisa pura e aplicada, e os prêmios Nobel saem para os laboratórios da IBM, das grandes empresas. Buscando mercado e mão-de-obra barata, as multinacionais ocupam o planeta, fazendo girar os US$ 33 trilhões do PIB mundial. Este momento é semelhante ao da crisálida, quando a lagarta vira borboleta. Será que tudo o que aprendeu como lagarta será utilizado depois que se transformar em borboleta?

A questão da cultura também preocupa, pois estamos agregando a ela esse componente tecnológico. O que é a tecnologia? É a aplicação sistemática de conhecimento científico. Esse conhecimento, que era monopólio da universidade, hoje está espalhado pelos laboratórios das empresas. Se a tecnologia, por si, já tem impacto, o da tecnologia da informação é muito maior. Ela é muito mais revolucionária porque atinge cada um de nós.

Existe um estudo muito interessante sobre as três Américas – inglesa, hispânica e portuguesa. Na inglesa, os pilgrims chegaram fugidos da Europa e a primeira coisa que construíram foi uma escola. Na hispânica, a preferência foi pela igreja. No Brasil, o que impera é a família. Isso é Casa-grande e Senzala, é Gilberto Freyre. O primeiro filho será fazendeiro, o herdeiro e sucessor. O segundo será doutor e o terceiro, padre. Isso significa que, se alguém quiser aniquilar os Estados Unidos, destrua a escola; no caso da América Latina, a estrutura da Igreja. E, no do Brasil, a família.

Causam preocupação as redes de televisão que geram estruturas de informação para o país. O pessoal dos bairros dos Jardins, em São Paulo, até aceita cenas de incesto, mas imaginem isso nas pequenas localidades do interior. Certamente provocam um impacto brutal, destroem a família. E a família, em nossa realidade, era quem ensinava valores. Não se pode ter uma babá eletrônica para incutir valores a nossos filhos.

Os Estados Unidos investiram em educação, uma decisão da qual decorrem dois fenômenos paralelos. O primeiro tem dimensão econômica, uma vez que não se pode chamar um engenheiro para limpar a rua. O segundo ocorre no plano psicossocial. As pessoas percebem os males da poluição e obrigam as empresas a migrar para preservar o meio ambiente. No Brasil, em certa época, ninguém dava atenção a isso, e ofereciam-se incentivos fiscais para as indústrias. A fonte de poluição é a mesma, e está destruindo o mundo. Quando o planeta alcançar o nível de consumo e de prosperidade dos Estados Unidos, estaremos perdidos.

Voltemos ao tema principal. O primeiro projeto de computador foi desenvolvido por Charles Babbage. Depois veio a evolução, com Herman Hollerith. Chegou um momento em que a IBM repudiou isso, porque o esforço de construção de computadores era voltado para a guerra. Imaginavam que haveria apenas cinco computadores no planeta. A IBM cometeu esse equívoco. E outro, mais tarde, ao contratar o jovem Bill Gates para fazer o sistema operacional de seus microcomputadores.

Esse fenômeno de evolução tecnológica se expandiu muito e favoreceu também a burocracia. Permitiu ao Estado controlar cada vez mais as coisas. Hélio Beltrão criou o conceito de um número único de registro de identidade civil, que substituiria todos os documentos. Eu lhe dizia que esse controle social era um absurdo. E o que aconteceu? Fernando Henrique usou um projeto de lei de Pedro Simon e criou o número único idealizado por Hélio Beltrão – uma lei que não foi regulamentada.

Vejam o caso da urna eletrônica, essa maravilha da qual se vê somente um aspecto, a rapidez do resultado. Ela, porém, não é auditável. Se a máquina pifa, ninguém recupera nada. E o ministro Carlos Velloso diz que existem 10 milhões de fantasmas no cadastro eleitoral. Só três estados brasileiros têm uma população eleitoral maior que 10 milhões. Temos cinco vezes o eleitorado do Piauí de fantasmas, pessoas que já morreram e continuam no sistema, etc. Vejam que isso pode criar desequilíbrio. Então temos de descobrir o que está por trás disso tudo.

O que devemos fazer é elevar nosso grau de compreensão, nossa cultura, para ter essa percepção. O homem, aonde vai, contamina tudo com o que tem de bom e de ruim. O mundo virtual é uma réplica do real. E não será pela exigência de documentos de identificação que se evitarão os crimes. Primeiro porque haverá uma migração sem controle para o "ponto com".

Como me sentia na obrigação, como deputado, tentei fazer um projeto de lei. Intimidade é um conceito difícil de definir, é algo que somente se percebe quando se perde. E o que é intimidade para mim não é para outras pessoas.

No caso da saúde, com as experiências de DNA, quando começarem a usar informações sobre a propensão de alguém para determinadas doenças, essa pessoa não vai conseguir um seguro-saúde.

O desafio é esse, e precisamos começar a perceber isso. Todos aprendemos que Mauá comprou estradas de ferro dos ingleses. Na verdade, foram eles que as venderam para nós. Havia acabado o ciclo do carvão, começava o do petróleo. Estamos debatendo agora televisão digital. Por quê? Nos Estados Unidos hoje dizem que a era do computador deu lugar à da fibra ótica. Há milhões e milhões de quilômetros de fibras óticas nos Estados Unidos, que vão ligar todas as casas americanas. É a transformação tecnológica que estamos vivendo, tudo o que era onda virou cabo e tudo o que era cabo vai virar onda, não precisamos discutir televisão digital. O cabo leva a informação.

No Brasil, o governo não consegue nem tapar buraco de estradas principais nem de estradas vicinais, e não vai se preocupar com estruturas de fibra ótica. Não terá condições de montar toda essa tecnologia na área da medicina. Atualmente é possível fazer diagnósticos à distância, e a própria confecção de peças ortopédicas poderia usar esse processo. Isso é o que existe no planeta hoje. Não adianta ter 800 faculdades de direito, 460 mil advogados. Não funciona, mesmo com o filtro do exame da OAB. Não é por aí. Quando implantamos o Prodasen havia 200 mil normas jurídicas, e dava para reduzir para 2,5 mil. Ninguém fez isso. Um país com o conjunto de leis que temos não pode avançar. Se repudiamos a necessidade de ter audácia no modelo educacional também não podemos ir para a frente. Nossa educação é um subsistema da plataforma econômica. Tudo é adaptado para favorecer a economia – a era industrial, ainda. Tudo tem de ser reconstruído, desde a escola. Precisamos ter a coragem de adotar um novo subsistema educacional. Para isso é preciso saber o que queremos.

Havia três barreiras que impediam a velocidade do processo de transformação. Já foram superadas. A primeira era a captação de dados. Antigamente havia o cartão perfurado, que foi substituído pelo código de barras e pela RFID. A segunda era o armazenamento: no tempo da Sisco – Sistemas e Computadores, um disco de 80 megabytes custava US$ 100 mil. Hoje se compra um pen drive de 1 gigabyte por R$ 200. O presidente americano tem um chip dentro de um dente que permite sua localização por GPS. Agora estão querendo colocar spy chips nas pessoas e a RFID será utilizada nos passaportes. A terceira era a transmissão de dados. Hoje as empresas de telefonia estão perdidas porque se fala de graça pela internet.

O artigo 5º da Constituição dizia que é assegurado ao brasileiro o direito à vida, à propriedade e à liberdade. Em um projeto de emenda, pedi para acrescentar "e à informação". Porque "informação" é mais preciso que "intimidade", que é um conceito fluido. Consegui o número suficiente de assinaturas, mas espalharam que eu estava querendo abrir os arquivos do SNI e o projeto foi rejeitado. Em 1988, Franco Montoro pediu-me todo o estudo e criou o habeas data, que é um habeas corpus mais sofisticado, só que ninguém usa muito.

Hoje pode-se comprar, na Rua Santa Ifigênia, em São Paulo, um CD com os dados da Receita Federal. Eu soube, não sei se foi comprovado, mas a probabilidade de ser verdadeiro é muito grande, que alguém fez o imposto de renda de autoridades federais. Uma vez aceita a declaração pela Receita, o que acontece? Quando essa autoridade fizer a própria declaração, ela será rejeitada, porque vale a anterior. E como provar que a anterior é falsa?

Estamos sendo escrutinados a cada instante, como nos registros de cartões de crédito, passagens aéreas e informações médicas. O cadastro do Bolsa Família, com 11 milhões de famílias, estava sendo utilizado com finalidades meramente eleitorais.

Neste momento de globalização que estamos vivendo a tendência é chegar a uma era de sabedoria. Mas para isso há a necessidade muito grande de maturação. É um processo de intersecção entre a cultura oriental e a ocidental. Na ocidental cultivamos os atributos dos deuses, na oriental a essência divina. No Oriente se cultua a onissapiência dos deuses, aqui as bases de dados. A onisciência é a tecnologia.

No Brasil copiamos sempre as idéias francesas, as instituições inglesas e os métodos americanos, mas não se reproduz o que se deveria. Uma das regras fundamentais que ensinam nos Estados Unidos diz que, para ser bem-feito, tudo deve seguir a regra dos três "es": education, engeneering e enforcement. Como não temos tradução para enforcement, nos esquecemos disso. Não temos fiscalização, follow-up, nada. São cópias malfeitas.

Para fazer uma legislação sobre a informação é preciso seguir estes princípios básicos: toda informação tem de ser dada com uma finalidade e não pode ser utilizada para outro fim sem a autorização de quem a deu. Todo indivíduo tem direito a conhecer as informações que existam a seu respeito e ter acesso a elas para modificá-las. É o conceito que deu origem ao habeas data. E temos de revogar a lei 9.454, que criou o número único.

Meu objetivo era trazer certa reflexão para o problema. Será que estamos sendo levados para um caminho sem volta? Precisamos pensar, a partir inclusive da legislação, das notícias publicadas, sobre a realidade em que tudo é controlado.

Debate

JOSUÉ MUSSALÉM – Nos anos 1980, havia as empresas transnacionais e as transideológicas. Naquele tempo, a IBM investia em pesquisa 10% de seu faturamento bruto, que era de US$ 60 bilhões por ano. Desses US$ 6 bilhões, US$ 600 milhões eram investidos na parte básica, aquela em que os cientistas começam a partir do zero. E os restantes US$ 5,4 bilhões iam para a pesquisa aplicada, que resulta em algum produto. Naquela época o Brasil não investia, no conjunto setor privado e público, nem um terço desse valor.
Fazendo um trabalho recente sobre a economia durante a 2ª Guerra Mundial, uma coisa me chamou a atenção. Os americanos tiveram um papel preponderante no fornecimento de armas nos anos 1940. As estatísticas de produção do Japão, uma das potências beligerantes, são baixíssimas se comparadas às americanas. Quem mais se aproximava dos Estados Unidos era a Alemanha. É interessante verificar que o diferencial era exatamente a linha de montagem. Ninguém competia com os americanos em termos de produção bélica.
Quanto à tecnologia da informação, fizemos recentemente em Recife o Seminário Brasil-Índia de Tecnologia da Informação. Trouxemos o pessoal da Tata, uma empresa indiana, da Wipro, da Compulink e também Vinod Thomas, do Banco Mundial, um economista indiano. A Índia está muito mais adiantada que o Brasil. A Tata, por exemplo, tem em seu quadro de pessoal 22 mil doutores. Temos de aprender com eles.

FARIA LIMA – A Índia decidiu estabelecer prioridades e escolheu essa área. No Brasil, temos alguns núcleos de excelência em Pernambuco, Santa Catarina e Rio Grande do Sul. Mas os salários não são grandes e não temos condições de competir. As multinacionais, IBM e outras, procuram mão-de-obra qualificada no mundo inteiro. O Brasil precisa ter essa preocupação também, não só de formar doutores, mas de torná-los agentes de transformação. Aqui o setor criativo está divorciado do produtivo.

JACOB KLINTOWITZ – O livro Admirável Mundo Novo, de Aldous Huxley, que considero até superior a 1984, de George Orwell, trata da questão do controle individual e da liberdade. O panorama de controle cibernético é muito pessimista porque nos leva a uma dupla crença. A primeira é que o Estado é sempre totalitário, porque essa é nossa experiência histórica. Ele tende a crescer e a controlar cada vez mais. A outra é que o homem é indefeso porque vive certo tipo de relativismo, não há princípios eternos. Essa impossibilidade de defesa do homem considero equívoca. A história e a própria ciência mostraram o contrário, que existem valores eternos. Do início do século 20 até agora, as grandes transformações provaram que há arquétipos, constantes que se repetem e se manifestam concretamente na produção de textos e imagens. Na verdade, é uma recuperação do conceito platônico de modelo. Penso que esses arquétipos ou sistemas, que são permanentes e formam a estrutura moral do homem, compõem a base do comportamento, que se repete em toda a história da humanidade. Essa é, na verdade, a grande defesa. Não somos indefesos, não se trata de um servomecanismo.

MUSSALÉM – Se estamos num sistema de poder em que o representante principal da sociedade, o presidente da República, mente para a população e é reeleito, será essa uma forma de totalitarismo?

FARIA LIMA – Vejam o que ocorre nas eleições americana e brasileira. A americana rejeitou, como sempre faz, a mentira. Nixon caiu porque mentiu. Nos Estados Unidos houve repúdio a escândalos sexuais, que não foram assim tão evidentes, mas aconteceram. Aqui, infelizmente, adotamos o caminho inverso.
Jacob, existe liberdade no plano ideal e no real. No plano real não posso voar, mas no ideal, em meus sonhos, consigo fazer isso. A Revolução Francesa trouxe esses ideais que na realidade não se concretizam. O problema é a estrutura governamental hiperdesenvolvida, gigantesca. O PIB brasileiro não suporta o governo que tem, incompetente, regido por valores fluidos. No plano da realidade é muito difícil quebrar o processo.
Houve uma modificação na estrutura econômica global e agora é mais fácil importar. Um país da dimensão do nosso precisa se preocupar com isso. A abertura que foi feita para a China aconteceu em troca da fantasia de obter uma cadeira no Conselho de Segurança. E dizem que a China tem economia de mercado. Não tem coisa nenhuma.
É difícil responder a você. Meu pavor é que, no plano da realidade, a janela de tempo que for oferecida se feche e tudo fique muito difícil. Concordo com Teilhard de Chardin: "Somos seres espirituais vivendo uma experiência humana e não seres humanos vivendo uma experiência espiritual".

CLÁUDIO CONTADOR – O indivíduo pode ser irracional, burro, etc., mas a coletividade, de alguma forma, vai tender para a racionalidade. Ainda sou otimista. É difícil aceitar a idéia de que estamos diante de uma grande catástrofe. Até mesmo para a questão do meio ambiente, que está sendo colocada como o final dos tempos, vai surgir uma solução.

FARIA LIMA – Tenho medo exatamente dessa explosão da multidão, do efeito manada. Acredito no indivíduo, que, com a verdade, pode chegar a ser maioria.

NEY PRADO – Para enquadrar os diversos temas e perguntas sugeridos, precisaríamos fazer uma distinção entre axiomas, valores, princípios, instituições e técnicas. Se quisermos analisar essa problemática pelo lado dos axiomas, estaremos penetrando no mundo da fé, da dogmática, da metafísica. Se enfatizarmos os valores, entraremos no campo da cultura. Se tratarmos de princípios, estaremos falando sobre a normatização desses valores, alguns através da lei ou dos costumes. Se optarmos pelas instituições, estaremos abordando as organizações que surgem para implementar esses princípios à luz dos valores, que são os agentes. Mas se estivermos falando sobre as técnicas, que são os meios de adotar toda essa escala de valores e princípios e que estão a serviço das instituições, entraremos então no campo dos meios, que são as políticas públicas ou privadas. Sua exposição tentou fazer uma composição de todos esses aspectos.
Toda técnica tem duas facetas: pode ser utilizada para o bem ou para o mal. Algumas podemos controlar. Raymond Aron disse uma coisa preocupante: a tecnologia, embora seja um meio, na verdade traz em si sua própria cultura. Na medida em que não podemos frear a tecnologia, queiramos ou não ela vai mexer nos valores, mesmo naqueles de reconhecimento universal. A dialética então é complicada, porque, não obstante tenhamos princípios de validade universal, eles podem ser abalados por um dado novo que é a tecnologia da informação.
Minha preocupação é com as novas gerações, por mais que queiramos lhes transmitir os valores que nos unem e identificam. Vejo com grande apreensão o futuro da sociedade brasileira por causa dessa preocupação principal, que é a eliminação de nossa privacidade. Em que medida poderemos conter esse perigo que me parece iminente?

FARIA LIMA – Vou me escorar no que Cláudio Contador e Jacob Klintowitz mencionaram. Temos de acreditar que o homem é capaz de enfrentar o problema e, pelo menos, tentar reduzi-lo. O que complica é que o gap de gerações é cada vez menor. Dois irmãos, um de 20 anos e outro de 9, já não falam a mesma língua, suas realidades são completamente diferentes. Mas acredito que alguns valores possam ser recuperados.

ADIB JATENE – Li há pouco O mundo é plano, e nesse livro de Thomas Friedman se diz que mais da metade da população da Terra não faz parte do que o autor chama de mundo plano, e que se ela for inserida o planeta não terá condições de suportá-la. A população continua crescendo, a tecnologia está presente em todos os campos, inclusive no sistema financeiro internacional, em que decisões de pessoas ou grupos desestabilizam países. E há o componente do poderio militar destrutivo associado ao terrorismo, que está exigindo uma liderança internacional, que não temos, capaz de manejar tudo isso. Não corremos o risco de o planeta ser destruído?

FARIA LIMA – "Deus, quando quer perder os homens, enlouquece-os primeiro." Até um submarino pode destruir o planeta, desencadeando um processo que vai nos eliminar. Voltaire já dizia que os alienígenas acreditam que este planeta é feito de loucos. E o que nos deixa perplexos é que a nação mais poderosa do mundo, aquela que jamais admitiu a hipótese de que os meios justificam os fins, está construindo um muro para separá-la do México. Vejam que 30% da população americana é constituída por latinos.

JATENE – Certa vez, conversei com um secretário de Saúde da Califórnia e perguntei a ele por que 5 milhões de habitantes daquele estado não tinham acesso à assistência médica. Ele disse: "Eles não são cidadãos".

FARIA LIMA – Só são cidadãos para votar. É um problema. Penso que deverá surgir uma nova ética, uma nova globalização, a partir dos indivíduos.

JATENE – Só espero que o Irã não construa a bomba atômica.

FARIA LIMA – O Irã já tem a bomba atômica. Cheguei a defender a existência da bomba atômica no Brasil porque era uma forma de obter mais respeito. O que o Irã está querendo é ser respeitado. O serviço secreto americano conhece tudo o que acontece. Quando fiz o discurso sobre a bomba atômica meu nome apareceu no arquivo do Departamento de Estado. Registram qualquer coisa que se fale. Existe um programa, o NarusInsight, que procura palavras-chave em toda parte, por exemplo nos e-mails. Localizam o seu IP [Internet Protocol] e identificam a origem, o autor, etc. Isso já é realidade. A Brasil Telecom usa a tecnologia com a finalidade de identificar quem não paga a conta, mas pode ser utilizada para controlar tudo.

NEY PRADO – Uma outra informação: o Departamento de Estado oferece às empresas americanas que se dispõem a aplicar dinheiro e recursos no Brasil todas as informações de que necessitem. Não precisam de nenhum consultor. Recebem o pacote pronto, com tudo o que eles têm a nosso respeito.

ZEVI GHIVELDER – Tenho observado na internet que existem os blogs e uma infinidade de coisas. É um poço sem fundo de estupidez, de burrice, de tolices, de mentiras. Inclusive aquela calúnia que se fez contra Geraldo Alckmin, dizendo que iria privatizar o Banco do Brasil, a Caixa Econômica e a Petrobras. Dentro desse panorama anárquico da internet de hoje, como você avalia o futuro da rede?

FARIA LIMA – A internet já está na terceira geração. O que acontece agora é o choque entre as estruturas multinacionais e o Estado-nação. Hoje o Estado praticamente não tem controle sobre a essência do que pode governar um país. Penso que devemos deixar a internet se robustecer, permitir a troca de idéias. Haverá uma depuração, um refinamento. Em algum momento vai se criar uma espécie de noosfera maior no uso da internet. Ela representa uma evolução fantástica. Mas ficaremos afogados nesse mundo da informação se não aprendermos a nadar.

JOSEF BARAT – Você falou da nova era a partir do Sputnik, em 1957. Por coincidência, foi nesse ano que o Brasil consolidou a indústria automobilística, um modelo de industrialização com influência estatal, a indústria a qualquer preço, independentemente de qualquer consideração ambiental ou social. Esse modelo não se sustenta mais. O que se observa no governo é que as pessoas estão olhando para o passado, sem uma visão de futuro. Tudo o que se fala se refere a um modelo esgotado, não avançou depois de 1957. Como você vê isso?

NEY PRADO – Essa pergunta é mais ligada à tecnologia e menos à informação, não é?

BARAT – Não. É o que Faria Lima disse, trata-se de um pacote. Por exemplo, existem países de população reduzida que sofreram transformações muito radicais do ponto de vista econômico e social por causa da tecnologia da informação. É o caso de Israel, da Irlanda, da própria Coréia do Sul. Mas são países relativamente pequenos. Como é que isso acontece em nações como Índia e China? Mesmo que você considere que 10% da população da Índia seja inserida nesse novo mundo, serão 120 milhões de pessoas, quase a população do Brasil. Como isso está sendo pensado, se é que alguém se preocupa com essa questão?

FARIA LIMA – Precisamos de lideranças esclarecidas e novas que consigam mexer no ponto de desequilíbrio do processo. Imagine as redes de televisão incutindo valores, levando o processo para o lado positivo, para a educação, como é feito na Índia. São coisas que podem acontecer, embora com probabilidade muito pequena. Quando a indústria automobilística chegou aqui, em 1957, os americanos estavam preparando um veículo espacial e a Rússia já alcançava o espaço. Por aí se vê a diferença de escala entre o que estamos realizando e o que eles fazem. Precisamos acordar para o processo tecnológico.

 

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