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Mangue Beat, a arte que veio da lama

Da periferia do Recife para o mundo, o incrível sucesso da música de Chico Science

JOÃO MAURO ARAUJO


Muro grafitado no Recife
Foto: João Mauro Araujo

Dez anos atrás, um acidente automobilístico tirava a vida de Chico Science, o músico que promoveu a fusão entre maracatu e rock e, com isso, agitou o cenário artístico do Recife, dando origem ao movimento que ficou conhecido como Mangue Beat – numa referência aos próprios mangues, abundantes na cidade.
Ao aliar a batida forte de tambores com o som distorcido de guitarras elétricas, Science criou um gênero musical que conquistaria admiradores pelo Brasil afora e também no exterior, onde ele e sua banda, a Nação Zumbi, realizaram algumas turnês. Com letras ao mesmo tempo bem-humoradas e recheadas de crítica social, ele influenciou não só músicos, como artistas de outras áreas.
Além de colocar, na década de 1990, a capital pernambucana na vanguarda da produção musical, o Mangue Beat teve o mérito de despertar a auto-estima da juventude da periferia, ao valorizar as manifestações artísticas de grupos locais e tradicionais.

Corria o segundo semestre de 1992 quando um release com um título estranho – "Caranguejos com cérebro" – chegou à redação dos principais jornais do Recife. O texto, considerado o primeiro manifesto do Mangue Beat, falava de um grupo que vinha realizando eventos musicais na capital pernambucana e nos municípios de Olinda e Jaboatão dos Guararapes. Inspirados na biodiversidade dos manguezais, os jovens que integravam esse movimento pretendiam criar um gênero que unisse elementos da cultura popular com as vibrações sonoras mundiais.

A grande projeção que as bandas Chico Science & Nação Zumbi e Mundo Livre S/A alcançaram, principalmente em meados da década de 1990, além de estimular a formação de novos conjuntos locais, teve forte influência sobre outros segmentos da produção artística pernambucana. Com o passar do tempo, porém, o movimento foi perdendo fôlego, e muitos músicos abandonaram o rótulo Mangue. Mesmo estes, no entanto, reconhecem a importância do papel dos "mangueboys" nos alicerces da cena atual.

Dez anos após o acidente de carro que vitimou Chico Science – notável articulador do movimento –, em fevereiro de 1997, a diversidade cultural introduzida pelo Mangue Beat continua a dar frutos. Basta acompanhar, durante o carnaval, as apresentações no palco do Pólo Mangue do Morro, no centro antigo do Recife, para constatar que ainda há muita gente tirando energia da lama.

Origem

A temática do mangue sempre esteve presente na obra de eminentes escritores, que reproduziram as imagens da penosa interação das pessoas pobres com esse ecossistema no cotidiano recifense. Perto do desfecho de Morte e Vida Severina, por exemplo, João Cabral de Melo Neto (1920-99) expõe ao personagem retirante a dramática situação dos mocambos, a partir do discurso de um de seus moradores: "Minha pobreza tal é/ que não trago presente grande:/ trago para a mãe caranguejos/ pescados por esses mangues;/ mamando leite de lama/ conservará nosso sangue". Já o professor Josué de Castro (1908-73) chegou a afirmar: "Não foi na Sorbonne nem em qualquer outra universidade sábia que travei conhecimento com o fenômeno da fome. A fome se revelou espontaneamente aos meus olhos nos mangues do Capibaribe, nos bairros miseráveis do Recife. (...) homens e caranguejos nascidos à beira do rio, à medida que iam crescendo, iam cada vez se atolando mais na lama".

Ao contrário dos poetas que o antecederam, Francisco de Assis França, o Chico Science, conseguiu enxergar riqueza naquela paisagem pantanosa. Sua idéia foi associar a complexidade orgânica dos manguezais a uma proposta de cena musical diversificada.

Nascido no Recife, Science foi batizado com nome de santo por sua mãe, Rita Marques de França, que sonhava ver o filho padre. Ela conta com orgulho as peripécias do menino nos teatrinhos da igreja, embora já soubesse que aquele "não era o caminho dele". Dona Rita recorda que o avô de "Chiquinho" trazia repentistas para cantar em Surubim (PE), sua cidade natal: "Meu pai era apaixonado por tocador de viola e gostava muito daqueles folhetos, romances, que comprava e pedia para eu ler". Esse gosto foi transmitido ao neto, pois, segundo parentes e amigos, Science era também apreciador da literatura de cordel. Esses trabalhos poéticos – em que se contam histórias de Lampião, Antônio Conselheiro, causos policiais, pelejas clássicas... – seriam retomados nas letras do cantor.

As apresentações nos palcos e nos videoclipes gravados com a banda Nação Zumbi traziam sempre, também, referências a caranguejos, que Chico Science conhecia desde os quatro anos de idade, quando a família mudou para o bairro de Rio Doce, em Olinda. A irmã Maria Goretti Lima relembra essa época, quando ele costumava brincar de apanhá-los com os amigos: "Perto de casa havia um rio e um manguezal enorme. Às vezes apareciam alguns caranguejos até no nosso quintal". Já as preocupações sociais e uma certa inclinação política do Malungo (palavra de origem africana que significa "companheiro"), como Science também era conhecido, costumam ser atribuídas à influência do pai, Francisco Luís França, que compara o filho à estrela-d’alva, por conta da luz que se apaga de maneira repentina.

Técnico de enfermagem na área de saúde ocupacional, primeiro em hospital, depois na indústria, seu França militou no sindicato dos enfermeiros, no Recife, e chegou a ser vereador de Olinda. Vestindo um avental branco, os olhos ocultos por trás dos óculos escuros, ele conta que, certa vez, chegou a ser demitido por defender o direito dos trabalhadores.

Atualmente, seu França trabalha no Espaço Ciência, um imenso museu a céu aberto localizado entre Recife e Olinda. No pavilhão de exposições onde desempenha suas funções, há algumas fotos de Chico Science. Fora do prédio, o artista também é lembrado, e a homenagem não poderia ser melhor: desde outubro de 1997 o local onde fica a trilha ecológica do parque leva seu nome. A área, de aproximadamente 20 mil metros quadrados, é o que restou de um manguezal depois dos aterros realizados na segunda metade do século passado sobre o estuário dos rios Beberibe e Capibaribe.

Pop com maracatu

Em meados de 1980, Chico Science integrava um grupo de break (dança de rua) chamado Legião Hip Hop, que se apresentava nas rodas semanais do Parque 13 de Maio, no centro do Recife. Como as pontes que interligam os bairros da capital pernambucana, o movimento hip hop é uma verdadeira teia de elos entre as diversas vertentes da música negra. Com a ajuda do sampler, equipamento que mistura sons para dar cadência às letras de rap, ali podem ser ouvidos todos os frutos da "grande árvore" africana: soul, funk, blues, jazz...

Nessa mesma época, nas proximidades do Mercado São José, nas feiras e praças, já marcava presença uma espécie de rap nacional, muito anterior à chegada do hip hop. Era a embolada, em que normalmente as duplas cantam versos improvisados ou decorados, com acompanhamento de pandeiro em compasso binário. Science com certeza não ignorava isso.

Após uma viagem que fez a São Paulo em 1988, da qual voltou ainda mais empolgado com o movimento hip hop, Malungo montou a banda de rap Orla Orbe e engajou-se na organização de festivais desse gênero. Logo, porém, passou para o rock, à frente do grupo Loustal – nome inspirado num gibi francês que Science colecionava –, que já contava com a participação de dois dos futuros integrantes da Nação Zumbi.

São muitas as histórias de grupos famosos que surgiram por mera casualidade, como aconteceu, por exemplo, com a banda norte-americana The Doors, formada a partir do reencontro, numa praia, do vocalista Jim Morrison com o tecladista Ray Manzarek, ex-colega de faculdade. No caso do Mangue Beat, também ocorreram encontros decisivos. O primeiro se deu quando Science e Gilmar Bola Oito, então funcionários da Emprel – empresa de processamento de dados da prefeitura do Recife –, reconheceram a afinidade musical que os unia. Bola Oito, morador do bairro de Peixinhos, convidou Science para assistir ao ensaio do Lamento Negro, bloco de afoxé, samba-reggae e algo na linha do Olodum, grupo baiano que na época fazia muito sucesso e chegou até a gravar com Paul Simon em Nova York. O Lamento tinha nascido na sede do Daruê Malungo ("companheiro de luta"), um projeto social encabeçado por Mestre Gilson "Meia-Noite" e sua esposa, Vilma Carijós, ex-integrantes do Balé Popular do Recife. Desde 1984, o Daruê já vinha trabalhando com ritmos e danças populares com a comunidade do bairro Chão de Estrelas.

Durante o ensaio do Lamento Negro, Science teve a idéia de reunir esse bloco no mesmo palco com sua banda, a Loustal. Para divulgar essa experiência, ele usou expressões como "a maior lama, o maior mangue!", porque o Lamento era de Peixinhos, e o Loustal, de Rio Doce, duas áreas de manguezal. Mas Malungo ainda não estava satisfeito, faltava algo. Ele não queria a "levada" do samba-reggae, mas sim o timbre da alfaia (tipo de tambor com pele de animal) do maracatu, um folguedo característico da cultura pernambucana. Para fazer essa adaptação (do Lamento ao maracatu, e de ambos ao pop), foi preciso a química de um outro cientista: Maureliano Ribeiro da Silva (o Mau), mestre do Lamento Negro, ex-professor do Daruê Malungo e fabricante de instrumentos. Para chegar à fórmula do som idealizado por Science, Mau lançou mão da experiência adquirida durante os anos 1980 nos bailes da discoteca de Peixinhos, onde ouvia o funk de James Brown e trilhas sonoras de novelas: "Peguei a célula de um ataque de trompete, de uma batida da bateria e de uma batida de maracatu. Passei do naipe de metais para os tambores", explica.

Como o Lamento era um grupo muito grande, foi preciso selecionar alguns membros para formar com a Loustal o grupo Chico Science & Nação Zumbi. Vilma Carijós, professora de dança, conta que ali no Daruê eles gravaram a primeira fita demo. O resultado de toda essa fusão pode ser ouvido no CD de estréia da banda, gravado em 1994, intitulado Da Lama ao Caos.

Talvez pela singular reunião de gêneros musicais (rap, soul, ciranda, maracatu), alguém tenha interpretado o termo original Manguebit (de bit – binary digit –, unidade de medida de informação dos sistemas digitais) como Mangue Beat (de beat, "batida", em inglês). A palavra apareceu pela primeira vez no título da faixa Manguebit, gravada no CD Samba Esquema Noise (1994), do Mundo Livre S/A. Algumas frases dessa música, como "Eletricidade alimenta tanto quanto oxigênio", sugeriam uma ligação dos "caranguejos" com o mundo tecnológico. Embora as diversas bandas do movimento não tenham uma batida padronizada, a forma Mangue Beat acabou prevalecendo.

Release-manifesto

Pode-se afirmar que o segundo encontro fundamental para a concepção do Mangue Beat foi o que ocorreu entre Chico Science e Fred Rodrigues Montenegro (o Fred Zero Quatro, da banda Mundo Livre S/A). Quando estudava comunicação na Universidade Federal de Pernambuco (UFPE), Zero Quatro idealizou, com alguns colegas, o projeto do "Gueto", um jornal destinado a dar visibilidade às "subculturas da periferia". Certo dia, em 1986, ele foi cobrir uma roda de break no centro da cidade e lá conheceu Chico Science. Anos mais tarde, já na década de 1990, os dois organizariam o festival Viagem ao Centro do Mangue, que atraiu a atenção dos jovens para o novo conceito. Então, com seu tino jornalístico, Zero Quatro decidiu escrever o famoso release que divulgou a movimentação cultural que crescia na cidade.

Até que o texto chegasse à mídia, no entanto, houve uma série de eventos que, embora à primeira vista parecessem desfavoráveis, acabaram propiciando as circunstâncias que levaram Zero Quatro a escrevê-lo. Depois de ser demitido de um canal de televisão, ele foi contratado por outra emissora, mas, em seu primeiro dia de trabalho, sofreu um acidente de carro e teve de ficar três dias afastado, em licença médica. Durante esse período, acabou desistindo do emprego e fez contato com uma produtora de Olinda, que, como primeira tarefa, lhe pediu que escrevesse um roteiro para as imagens já gravadas de um documentário. "Era sobre os manguezais de Pernambuco. Tive de pesquisar muito, reunindo inclusive informações de cunho científico. Foi uma grande coincidência!", lembra ele.

Feito o serviço, era hora de investir na cena cultural do Mangue Beat. Com tempo livre e munido de aparato teórico, Zero Quatro foi além dos releases burocráticos ao escrever "Caranguejos com cérebro". Cerca de dois meses depois, uma equipe da Music Television (MTV) brasileira – que tinha ido ao Recife fazer uma reportagem sobre expoentes culturais e tomara conhecimento do release – aproveitou para gravar uma entrevista com o pessoal do Mangue Beat, com imagens dos grupos Mundo Livre S/A e Chico Science & Nação Zumbi. "Passaram-se os meses de outubro, novembro, dezembro... e nada de a matéria ir ao ar. A gente pensou que havia sido engavetada ou não tinham aprovado a pauta. Em janeiro de 1993, durante a transmissão exclusiva da MTV do show do Nirvana no Hollywood Rock, soltaram a matéria no intervalo." Era o que faltava para projetar nacionalmente a produção musical dos caranguejos , cuja consagração viria com o primeiro festival Abril pro Rock, em 1993.

Mesmo manguezal

Desde que a antena parabólica dos mangueboys sintonizou a cultura pop mundial, Recife não foi mais a mesma. Quando atingiu aquele rio, a água do mar retornou diferente ao oceano, deixando, no entanto, sua marca salina no estuário. A transformação provocada pelo Mangue Beat – talvez até sem intenção – atingiu os baluartes da cultura tradicional. Já nos anos 1960, com o advento do Tropicalismo, a influência estrangeira havia preocupado os componentes do que viria a ser o Movimento Armorial, liderado pelo escritor Ariano Suassuna. Fundado em outubro de 1970, sob a tese de preservação da arte genuína brasileira, esse grupo pesquisava a herança colonial deixada na cultura popular sertaneja, que possivelmente não teria sofrido alterações devido à distância dos meios de comunicação. Ou, segundo a interpretação do professor Herom Vargas, da Universidade Municipal de São Caetano do Sul (Imes), buscava retomar elementos culturais mantidos quase inertes no sertão árido do nordeste, provenientes da península Ibérica, com traços cristãos e mouros, e das culturas indígenas. Depois do garimpo, os armoriais executariam tal música, só que de maneira erudita, adequando-a aos grandes salões.

Vargas é autor da tese de doutorado "Chico Science & Nação Zumbi: Um estudo sobre o hibridismo e as relações entre música popular, mídia e cultura" (Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, 2003), publicada recentemente em livro pela editora Ateliê. O pesquisador procurou demonstrar que a dinâmica híbrida, longe de ser um desvio, tal como é tratada pelos tradicionalistas, é o ponto crucial na formação de gêneros da música popular latino-americana: "Os armoriais revelam uma visão conservadora. Como é possível manter uma essência, algo que seria puro, se aqui não há pureza alguma? A América Latina historicamente é lugar de cruzamentos: vários tipos de africanos e de europeus vieram para cá. O português e o espanhol já são ocidentais misturados com árabe, chegaram aqui e encontraram mil indígenas diferentes", comenta Vargas.

A polêmica conceitual entre mangueboys e armoriais virou até letra de música, composta por Zero Quatro e gravada no CD Carnaval na Obra, do Mundo Livre S/A. No refrão, ele indaga, após mencionar a presença da matriz africana em diversos estilos musicais do novo continente: "Mas é o Ariano que ignora o africano ou é o africano que ignora o Ariano?" Zero Quatro foi aluno de Suassuna na faculdade de comunicação. "Ele tem um humor muito aguçado. Na verdade, eu adorava as aulas dele. Mas como analista cultural... Nunca conseguiu engolir Tom Jobim, que para ele é um colonizado pela cultura americana", comenta o vocalista do Mundo Livre S/A. Por sua vez, Ariano Suassuna, atual secretário de Cultura de Pernambuco, conta que, na época em que soube do Mangue Beat, uma jornalista perguntou-lhe se receberia Chico Science, ao que respondeu afirmativamente. "Chico veio me conhecer e disse: ‘Mestre [era assim que ele me chamava], eu sou armorial’. Então eu disse a ele: ‘Mas por que se chama Chico Science? Mude seu nome para Chico Ciência que subo com você no palco’. Evidentemente, quando falei isso estava simbolizando duas coisas: achava que na parte Chico estava o que ele tinha de maracatu rural, e na Science o que tinha de rock, que não gosto. Ele achou graça e fizemos uma grande amizade."

Apesar de continuar discordando da posição de Science, Suassuna reconhece: "A juventude classe média, que talvez nunca prestasse atenção ao maracatu rural, passou a dar importância a ele". Mais que isso. O intercâmbio entre o Mangue Beat e artistas da cultura popular pernambucana mostra ainda hoje muitos reflexos positivos. Se por um lado as bandas tiveram sua musicalidade enriquecida, por outro os artistas populares ganharam uma projeção nunca antes vista. O presidente do Maracatu Estrela de Ouro, de Aliança (PE), José Lourenço da Silva, menciona com satisfação as parcerias com grupos ligados ao Mangue Beat, que alcançaram grande repercussão, redundando inclusive em convites para turnês internacionais, além do contato com pesquisadores de vários lugares do mundo, que vieram procurá-los.

Sem tomar o poder

Ao Mangue Beat é atribuída uma série de conquistas na produção cultural pernambucana. A lama da rapaziada partiu da música e invadiu o cinema, o teatro, a moda, a literatura, enfim, catalisou expressões artísticas em quase todos os campos. O marco do casamento com a sétima arte ocorreu na trilha sonora do longa-metragem Baile Perfumado (1997), dirigido por Lírio Ferreira e Paulo Caldas, no qual atuaram inclusive alguns músicos do movimento.

Fred Zero Quatro associa sua experiência vivida durante os anos 1990 ao livro Mudar o Mundo sem Tomar o Poder, de John Holloway. "A gente não precisou pegar em armas, constituir um partido, montar uma guerrilha ou frente política, nem fazer um levante de rua, nem passeata, nem nada. Num sentido cultural, porém, podemos dizer que contribuímos para mudar bastante a qualidade de vida do jovem daqui", avalia o músico. Com o passar do tempo, os órgãos de cultura locais foram vendo cada vez mais a juventude do Mangue reivindicar palcos anteriormente vazios ou "atrofiados".

Entretanto, a ideologia, no Mangue Beat, assumiu conotações diferentes, segundo as características de cada banda. As composições de Zero Quatro, por exemplo, aliam temas suaves do cotidiano – como amor e futebol – à visão crítica da conjuntura brasileira e internacional. "Há uma aparente contradição entre manter uma postura de resistência ao imperialismo, aos produtos das grandes corporações do entretenimento, e ficar isolado num gueto, algo como ‘macumba para turista’. A gente faz música pop, só que rejeita a idéia de que ela tem necessariamente de ser pasteurizada, alienada, sem escrúpulos. Existe público para se fazer um som jovem, de consumo, urbano, com forte ligação com a cultura local e ao mesmo tempo manter um certo grau de inteligência, de provocação, de contestação ao pensamento único globalizado", explica Zero Quatro.

Segundo Paulo Marcondes Soares, professor do programa de pós-graduação em sociologia da UFPE, a arte pode ser política mesmo sem elaborar um discurso explícito. "Essa relação é mais forte quando a arte se manifesta por uma constante experimentação da linguagem, lidando com elementos que, em certa medida, rompem as características do instituído. Dessa maneira, ela é mais vigorosamente política, revolucionária até, que aquela que fala de maneira prosaica em nome de uma política." Soares, que também é compositor, acompanha a evolução musical recifense desde os anos 1980. Em sua opinião, o Mangue Beat gerou na cidade um público para a produção artística local.

Com acesso à mídia, os mangueboys ajudaram também a divulgar grupos que a princípio permaneciam isolados em suas comunidades. Dessa maneira, passaram a fazer parte do cenário cultural local, por exemplo, algumas bandas do Alto José Pinho, bairro da periferia do Recife em que desde o final dos anos 1980 já estava em atividade uma cooperativa de músicos.

Marconi de Souza Santos, o Cannibal, do grupo de punk rock Devotos, via o Mangue Beat com algumas ressalvas, até que percebeu a plataforma comum no ideal de elevar a auto-estima dos jovens suburbanos. A atuação conjunta dos membros das bandas Devotos, Faces do Subúrbio, Matalanamão, entre outras, resultou na criação da Rádio Comunitária Alto-Falante, registrada em 2002, assim como na promoção de eventos sociais, coletâneas, shows e oficinas. De certa forma, a comunidade foi transferida das páginas policiais para a agenda cultural da cidade. Hoje, conta até com um dos palcos oficiais do carnaval do Recife, o Pólo Mangue do Morro. "A gente conseguiu o que queria: mudar um quadro social através das bandas", afirma Cannibal.

Evolução da cena

Notam-se, ainda, desencontros conceituais quanto ao Mangue Beat. Há quem continue a defini-lo como mescla de pop com música regional; ou quem o limite às atividades das bandas Nação Zumbi e Mundo Livre S/A, por continuarem em atividade; ou ainda aqueles que atestem seu fim. Mesmo a palavra "movimento" não é muito aceita, devido à falta de uma plataforma reivindicativa comum aos possíveis membros.

Atualmente, privilegia-se o termo "cena", usado de forma mais abrangente: "O Mangue é apenas uma parte. Antes a rapaziada achava que ele era tudo, mas agora percebe que a ‘cena’ é o montante, o todo", explica Aílton da Silva, o Pácua, que participou dos primeiros projetos com Chico Science, mas logo montou sua própria banda, a Via Sat, que está no 14º ano, com dois CDs lançados (o mais recente intitulado Organic Hi-tec Jungle) e participação em várias coletâneas. É possível, nesse sentido, comparar o Mangue Beat ao estilo baiano da axé music, cujo rótulo identifica diferentes bandas num mesmo contexto. Como lembra Pácua, o próprio Chico Science dizia: "O Mangue é só um cartão, uma marca".

Numa mesa de bar do Mercado do Varadouro – uma das portas de entrada da cidade histórica de Olinda –, ao lado de Pácua estão Felix Cavalcanti, o Fekinho, vocalista da banda Etnia, e Charles Teony. "A cena hoje tem um conceito muito mais firme, está mais madura. As pessoas sabem o que fazem e estão cobrando de si mesmas. Quem faz funk com maracatu tem de conhecer tanto de um quanto do outro, porque é questionado por todo mundo", comenta Teony, vocalista do grupo que leva seu nome. Recém-chegado da turnê do CD Tambor do Mundo, ele parece animado com o mercado internacional. Diz que o carnaval do Recife tem hoje a mesma concepção de um festival europeu: diversidade e pluralidade, por conta das bandas brasileiras que tocaram no exterior e perceberam a possibilidade de apresentar de tudo, "de heavy metal a salsa, jazz, rock, música eletrônica, punk".

Fekinho está gravando Um Novo Momento, o segundo CD do Etnia, banda formada em 1995. Ele, Pácua, Teony e seus grupos mantêm um certo espírito cooperativista, típico da "cena" pernambucana. Fekinho e Pácua, por exemplo, colaboram na montagem da Associação de Música Urbana (Amur), destinada a incentivar a cadeia produtiva da música independente. Pácua também dá aulas de capoeira no projeto social idealizado por ele, o Instituto Via Sat Zambo, em Peixinhos. "Se você não ajudar a favela, sua música vai acabar, porque a favela é a fonte. Se a favela acabar em termos de música, você não vai beber mais em canto nenhum", sentencia ele.

"O Mangue nasceu dos mais necessitados, e se a gente não continuar dando uma força para a ‘quebrada’, como diria a galera, ‘a caveira do Chico lá embaixo vai ficar se remoendo’, porque, mais do que ninguém, ele falava em estender a mão ao próximo", conclui Fekinho. 


Vôo interrompido

No dia 2 de fevereiro de 1997, o carro guiado por Chico Science se chocou contra um poste, próximo ao Complexo do Salgadinho – região de divisa entre Recife e Olinda –, interrompendo bruscamente sua vida. Aos 30 anos de idade, com dois CDs lançados e três turnês internacionais com a banda Nação Zumbi, ele havia apenas alçado o vôo que certamente o teria levado muito mais longe.

No aniversário de dez anos de sua morte, quase toda a mídia do Recife e de Olinda lembrou a trajetória do artista, abordando principalmente sua atuação à frente do movimento Mangue Beat.

As homenagens a Chico Science são constantes. Ele é formalmente lembrado em nomes de parque, túnel e num shopping do Recife; ganhou estátua e pinturas de grafite; é tema de livros e teses, e até o título de uma coletânea de bandas portuguesas, "Tejo Beat", foi inspirado no movimento brasileiro.

Chico Science ia além da palavra, preocupando-se muito também com o desempenho no palco; em suma, buscava a concepção global do artista. Segundo amigos e parentes, era do tipo obstinado, que saía com a fita demo na mão para divulgar o trabalho da banda. Ao mesmo tempo, mostrava-se exigente quanto à qualidade de seu trabalho, a ponto de, nas gravações, repetir frases musicais quantas vezes fosse necessário. Unia a isso o bom humor de quem não se arrependia de ter ficado em casa dormindo no dia do vestibular.

Na atual cena pernambucana, formada em sua maioria por bandas jovens, o legado de Chico Science se revela na valorização de traços e imagens locais, que gerou uma espécie de "estética mangue". Muitos artistas, por influência do Mangue Beat, perceberam a possibilidade de aliar manifestações culturais populares à música pop internacional, sem abrir mão de uma visão crítica da estrutura social. 

 

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