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Máquinas à obra

Combate ao déficit de moradias populares exige uso de técnicas industriais

SAVÉRIO ANDRÉA FELICE ORLANDI


Montagem de parede
pré-fabricada / Foto: Reprodução

A falta de habitação para as faixas carentes das populações é mundial, com destaque para países da África, Ásia e Américas Central e do Sul. É uma necessidade primária que pede soluções urgentes e uso intensivo da tecnologia.

No Brasil a questão atinge contornos dramáticos, com números incompatíveis com o desenvolvimento econômico do país. Esses dados, aliás, carregam uma considerável margem de imprecisão, resultante da dificuldade de obtê-los e da discutível veracidade das informações que cercam um assunto muito discutido e pouco resolvido.

Entretanto, pode-se estimar hoje no Brasil um déficit de moradias populares – aquelas destinadas a atender as faixas de população que têm renda mensal de até sete a oito salários mínimos – da ordem de 7,5 milhões de unidades. Esse déficit cresce ao ritmo de 1 milhão por ano aproximadamente, o que representa uma exigência socioeconômica preocupante para o país.

Pior: a fronteira de sete a oito salários mínimos, que já foi de cinco a seis por muitos anos, hoje tende a se aproximar dos dez salários, por força do empobrecimento gradual e constante da classe média brasileira. Esse fato agrava o atendimento ao limite inferior de dois a três salários mínimos, que demanda um tratamento cada vez mais específico, pautado pelo interesse social e decisão política.

Ao longo dos anos, houve tentativas de controlar o problema, principalmente na época do Banco Nacional da Habitação (BNH). Hoje as unidades oferecidas pelo poder público oscilam entre 100 mil e 150 mil ao ano, um total muito aquém das necessidades. Com efeito, somente na cidade de São Paulo o déficit habitacional atinge 900 mil habitações (1,5 milhão no estado). Na maior metrópole da América Latina, portanto, mais de 3 milhões de pessoas vivem em condições subnormais de moradia.

Para reduzir os efeitos dessa tragédia brasileira, é preciso construir moradias numa escala de massa que exige novas soluções e formulações construtivas. Na composição orçamentária da habitação popular, a construção é o fator de maior peso. Nela, portanto, reside o grande desafio a ser enfrentado, numa visão que atenda simultaneamente custos, prazos e desempenho técnico, coerentemente com a modernidade tecnológica.

Evidentemente, há itens no orçamento referentes a urbanização, projeto e custos financeiros. Neste trabalho, vamos entretanto nos deter apenas na construção, que isoladamente representa 62% a 66% do custo total de uma moradia de 25 a 50 metros quadrados.

A sociedade humana aprendeu com a Revolução Industrial que somente a fabricação racionalizada e mecanizada pode atender as exigências de custo baixo e prazos reduzidos para os mais diversos produtos. Isso vale para a construção civil, onde a industrialização deve ser uma meta e não mera força de expressão.

Entretanto, apesar de já se conviver com a aurora de uma nova revolução industrial e tecnológica, na construção de edificações ainda não se ultrapassou a primeira. Com efeito, as obras atuais oferecem um triste testemunho de atraso tecnológico, desrespeitando custos e prazos, e apresentando altas taxas de desperdício nos canteiros, onde os processos de produção são artesanais, incompatíveis com o mundo moderno.

A taxa de desperdício de materiais nas obras tradicionais atinge de 18% a 22%, índice que se torna mais significativo ao se associar, como é o caso, ao baixo rendimento da mão-de-obra. Ao contrário do que sucede em outros setores produtivos do país, este opera de forma precária, com empregos sem qualificação. Isso explica por que as horas/homem por metro quadrado nas construções tradicionais alcançam entre 35 e 45, enquanto nas edificações industrializadas, que utilizam módulos tridimensionais, não passam de 10 a 15.

Casas inteiras

A solução, portanto, para o déficit de moradias no Brasil é a adoção de processos industriais de construção. Tecnicamente, a industrialização pode ser conceituada segundo dois critérios produtivos operacionalmente diversos, para não dizer opostos. O primeiro diz respeito aos sistemas construtivos fechados, isto é, a industrialização do tudo ou nada. São as "casas inteiras", sistemas construtivos monovalentes que não admitem mutações estruturais e operacionais. Os resultados são fixos e definitivos, e a tecnologia própria para cada produto é limitada às linhas de produção, que permitem um só resultado. É a industrialização dos mercados descontínuos e restritos, das situações de monopólios.

Os sistemas de ciclo aberto, ao contrário, constituem a chamada industrialização das três liberdades: para o usuário, para os profissionais intervenientes e para a produção industrial. São sistemas construtivos polivalentes, que possibilitam alterações estruturais e operacionais. Permitem a diversificação dos produtos, amoldando-se a novas tecnologias. Trata-se da industrialização de estoque e catálogo, acessível a todo o mercado da construção civil, a qualquer tempo.

Esse sistema, que apresenta ainda a vantagem de evitar os prejuízos que normalmente decorrem da freqüente instabilidade e descontinuidade do mercado, é a solução plausível para o problema habitacional das faixas carentes da população brasileira.

A industrialização da construção permite abolir erros antes fora de controle, como no caso das tolerâncias de medidas, que devem situar-se em intervalos prefixados. O ponto de partida para viabilizar a industrialização de ciclo aberto para a construção da moradia popular no Brasil é a estruturação do projeto e da obra segundo uma hierarquia de procedimentos e resultados. Uma abordagem sistêmica deve ser adotada como ferramenta operacional. O sistema é formado pelo acoplamento de elementos e componentes construtivos industrializados, a ser fabricados pelas indústrias a partir de materiais recomendados. A obra é executada no canteiro em operações mecanizadas de montagem enquadradas num plano global de serviços industriais.

A etapa mais crítica para viabilizar a curto prazo o processo produtivo é a disponibilidade de elementos e componentes construtivos industrializados. A indústria brasileira de construção civil oferece uma grande variedade desses produtos, com alto grau de modernidade tecnológica. Há linhas de produção equipadas com recursos mecanizados similares aos modelos estrangeiros, com programação de escalas e controles de produção e métodos científicos para ensaios. Elas atendem a grande variedade de exigências funcionais, estéticas, comerciais e de conforto e estão prontas a formar, mediante ajustes nas linhas de produção, os subsistemas construtivos.

Infelizmente, essa capacidade de produção é hoje prejudicada no canteiro de obras, onde os procedimentos são empíricos e artesanais, aumentando custos, prazos e o desperdício. Não se levam em conta os critérios normativos de ligação recíproca entre materiais e entre estágios operacionais da fabricação e montagem, muitas vezes colocados em posição antagônica.

A causa principal dessa cisão entre a tecnologia da produção de materiais, elementos e componentes e a tecnologia para sua aplicação no canteiro é o fato de que quem fabrica e quem constrói não percebem, ou não querem perceber, que os produtos ligados à construção pertencem a uma cadeia integrada. Assim, os fabricantes se limitam a otimizar os ciclos produtivos no confinamento de suas indústrias e os construtores a executar suas obras sem valorizar os processos mecanizados de montagem e acoplamento. O índice de produtividade nos canteiros é sensivelmente prejudicado, já que o rendimento do todo não se sobrepõe ao das partes.

A industrialização da construção, por sua própria natureza, deve servir de base para estabelecer o elo de ligação entre quem projeta e fabrica e quem aplica e constrói. É evidente que sua implantação não apresentará resultados imediatos, que surgirão de forma paulatina, de acordo com o ritmo de adoção de suas etapas.

As premissas norteadoras para o planejamento da industrialização da construção da moradia popular, apoiadas no potencial do mercado brasileiro de elementos e componentes construtivos industrializados, compreendem algumas fases metodológicas de trabalho. Em primeiro lugar, conceituado o modelo da habitação, deve-se estruturar o projeto através de subsistemas construtivos dotados de unidade funcional e técnica, com versatilidade para aplicação, num segundo momento, em mais de um tipo de obra.

Identificados os subsistemas, o passo seguinte é fazer um levantamento dos elementos e componentes construtivos industrializados disponíveis e selecioná-los. A seguir vem a montagem dos subsistemas pelas empresas construtoras, em suas instalações ou no canteiro, com acompanhamento dos fabricantes em ação coordenada.

A última fase do processo de implantação é a montagem final, pelo acoplamento dos subsistemas nos canteiros. Para isso deve-se prever a estocagem, transporte e montagem, com operações mecanizadas. Os serviços finais de execução terão em alguns casos, e em escala progressivamente limitada, a participação de mão-de-obra especializada em acabamentos da construção tradicional.

Concluída a obra, a edificação entrará em uso. A partir desse momento, deverá ser feita a avaliação do que foi construído, seguindo os modelos industriais existentes.

A implantação será complexa e trabalhosa, fruto de ações coordenadas e resultado do esforço conjunto de equipes multidisciplinares. Projetistas e construtores deverão estar em contato com técnicos dos órgãos públicos e, de forma prioritária, com as indústrias da construção. É recomendável a constituição de um grupo de trabalho com potencial suficiente para alavancar e dar andamento regular ao processo.

Esta proposta, dotada de alcance social e político ilimitado, tem condições de progredir em uma economia estabilizada. A sociedade precisa de programas criativos de desenvolvimento, e lançar as bases de um sólido sistema de construção para a moradia popular será um bom começo.

Savério A. F. Orlandi é doutor e livre-docente da Escola Politécnica da Universidade de São Paulo

 

 

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