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Muita conversa e pouca coisa concreta

Quinze anos após a Rio 92, o mundo enfrenta a ameaça do aquecimento

LAURA LOPES


Abastecimento de água: preocupação
Foto: Henrique Pita

A polêmica sobre o aquecimento global ganhou proporções planetárias nos últimos meses, depois que, em novembro, na 12ª Conferência das Partes da Convenção-Quadro sobre Mudanças Climáticas, a Agência Internacional de Energia (AIE) previu aumento de 55% das emissões de dióxido de carbono (CO2) até 2030, se os atuais padrões tecnológicos de produção e consumo forem mantidos. Outro documento, produzido pelo governo britânico, calculou que o prejuízo econômico com o aquecimento global chegará a US$ 7 trilhões. E, mais recentemente, o Painel Intergovernamental sobre Mudanças Climáticas (IPCC) publicou a primeira parte de seu quarto relatório sobre os impactos do aquecimento no desenvolvimento social e econômico dos países. Numa expectativa otimista, a temperatura média do planeta subirá de 1,8ºC a 4ºC até 2100, o que provocará um aumento no nível dos oceanos de até 59 centímetros, grandes inundações, ondas de calor mais freqüentes e ciclones violentos. Tudo isso significa reduções drásticas na produção agrícola, crises no abastecimento de água, migrações forçadas de populações litorâneas, mudanças nos hábitos diários da sociedade e impacto na biodiversidade do planeta. O mundo entrou em alerta, uma vez que 90% desses fenômenos, segundo os cientistas, decorrem da ação humana.

Essa discussão, na verdade, não tem por base apenas aspectos climáticos, já que envolve principalmente os padrões de produção e consumo da sociedade. Durante quanto tempo a biosfera conseguirá sustentar o atual modelo predatório de desenvolvimento econômico? O homem faz essa pergunta desde 1972, quando houve a Conferência de Estocolmo, a primeira sobre meio ambiente da Organização das Nações Unidas (ONU). Mas, naquela época, e até pouco tempo atrás, a preocupação era tida apenas como neurose de ambientalistas. "Diziam que adorávamos o tema do fim do mundo", lembra Mário Mantovani, diretor da organização não-governamental (ONG) SOS Mata Atlântica. Na Rio 92, as discussões se aprofundaram, e as nações se comprometeram a trabalhar por um futuro melhor para as próximas gerações. A partir daí, pouca coisa passou da teoria para a prática. Apesar disso, hoje a opinião pública compreende melhor a ligação entre os índices econômicos e socioambientais dos países.

Desdobramentos

No mês de junho de 1992, representantes de mais de 180 nações se encontraram, pela primeira vez após a Guerra Fria, para discutir o meio ambiente. "Isso gerou uma grande expectativa de que entraríamos num mundo cooperativo, predisposto ao diálogo", recorda o professor Wagner Ribeiro, presidente do Programa de Pós-Graduação em Ciência Ambiental (Procam) da Universidade de São Paulo (USP) e que fez parte da delegação brasileira naquele evento.

A campanha de marketing da Rio 92, também chamada de Cúpula da Terra ou Eco 92, baseava-se numa imagem do planeta sustentado por duas mãos, com a seguinte frase: "Em nossas mãos". Isso, segundo o professor, despertou forte apelo popular. Além disso, estiveram presentes as principais lideranças do planeta, como o francês François Mitterrand, o cubano Fidel Castro, o premier inglês John Major e até o pacificador dalai-lama, o que praticamente levou George Bush, pai do atual presidente dos EUA, a participar da reunião. A retórica multilateral, no entanto, não passou do discurso. "Os países foram para o Rio de Janeiro com a posição clara de defender seus interesses nacionais. Isso ficou evidente, por exemplo, quando os Estados Unidos se negaram a assinar a Convenção sobre Diversidade Biológica porque implicaria repassar tecnologia aos países pobres", diz Ribeiro. A situação se repetiu na postura adotada por americanos, japoneses e árabes em relação ao documento sobre mudanças climáticas, por não haver, naquele momento, comprovação científica dos reais impactos do efeito estufa.

Além das duas convenções, a Rio 92 produziu mais três documentos: a Declaração de Princípios sobre o Uso das Florestas, a Declaração do Rio e a Agenda 21. Esta última constitui um roteiro de como os países podem adotar um modelo socioeconômico que leve em conta a conservação dos recursos naturais. Trata-se de um documento de 40 capítulos, sem força legal, mas que traz 2,5 mil recomendações para a implementação de políticas que estimulem a participação ativa de governos, sociedade e empresários na construção de um planeta sustentável. Ali estão pautados assuntos como dinâmica demográfica, crise da habitação, saneamento e poluição urbana, manejo da terra, energia e transportes sustentáveis, transferência de tecnologias, padrões de produção e consumo, reciclagem, combate ao desperdício, minorias, além da erradicação da pobreza. Os 179 países signatários deveriam, a partir de então, criar Agendas 21 nacionais, regionais e locais (ver PB 379). Os resultados, porém, ainda são incipientes. "A Agenda 21, por ser muito genérica, ainda não foi incorporada por todos. Foi um tratado de boas intenções: para as ONGs é um norte, um ideal de vida", comenta Mantovani. Para os governantes, ele não acredita que tenha sido motivo de engajamento.

Simultaneamente à Cúpula da Terra, aconteceu um fórum paralelo, que envolveu cerca de 4 mil ONGs nacionais e estrangeiras dos mais variados tipos. Por isso, as reuniões tratavam não apenas de meio ambiente, mas também de como ele está atrelado a problemas socioeconômicos, e ainda da desvalorização das comunidades tradicionais. "Além do grande impacto na mídia, tivemos participação nas decisões tomadas na reunião oficial", conta Rubens Born, membro do Fórum Brasileiro de ONGs e Movimentos Sociais para o Meio Ambiente e o Desenvolvimento. Ribeiro vai mais longe e diz que foi a partir do encontro que a questão ambiental se institucionalizou em escala mundial. "Hoje, grande parte dos países tem ministério do meio ambiente ou uma autoridade nacional competente para essa área."

Desde a realização da Rio 92, certas discussões, até então restritas a determinados grupos, ganharam qualificação. "A presença do dalai-lama promoveu a cultura da paz e até os indígenas, representados pelo cacique Raoni, adquiriram força, mesmo que encarados folcloricamente", comenta Mantovani. E, ao mesmo tempo em que temas ambientais passaram a ser considerados do ponto de vista econômico, os ambientalistas aprenderam a lidar melhor com o posicionamento de governos e empresas. "Não posso impor que todos sejam ambientalistas", afirma o presidente da SOS Mata Atlântica, que confessa entender mais sobre o funcionamento da sociedade hoje do que naquela época. O diálogo entre as partes, tão conflitantes há 15 anos, parece ter melhorado. "Estamos dando alguns passos, mas a dinâmica dos problemas vai numa velocidade muito maior do que nossa capacidade de revertê-la", adverte Born.

Cinco anos após a Cúpula da Terra, pouco do que se discutiu no Rio de Janeiro havia sido colocado em prática. Na sessão especial da Assembléia Geral da ONU, em 1997, que ficou conhecida como Rio+5, os países identificaram as maiores dificuldades quanto à implementação da Agenda 21 e planejaram negociações para os anos seguintes, incluindo um novo encontro em 2002, a Rio+10. Ainda naquele ano, o primeiro passo efetivo em direção à mudança de paradigmas se deu com o Protocolo de Kyoto. Esse documento exigia das nações ricas a redução da emissão dos gases causadores do efeito estufa em 5,2% até 2010, tomando 1990 como base. No fim do ano passado, a ONU anunciou que países como Alemanha, Grã-Bretanha e Lituânia haviam conseguido sensíveis diminuições, mas outros apresentaram um aumento preocupante, caso de Espanha (49%), Portugal (41%), Turquia (72%), Canadá (26,6%) e Estados Unidos (15,8%).

Já o grande tema discutido na Rio+10, que ocorreu em Johannesburgo, na África do Sul, foi a necessidade de aumentar as fontes de energia renovável, proposta defendida pelo Brasil. O assunto, que ainda não fazia parte da Agenda 21, passou por discussões exaustivas, como relatam Oswaldo Lucon e Suani Coelho, em artigo publicado em 2002 na Revista do Departamento de Geografia, da Universidade de São Paulo (USP). "O resultado, um dos últimos produzidos na conferência, (...) foi considerado no mínimo frustrante pelos ambientalistas e pela imprensa", descrevem os pesquisadores, já que o texto aprovado incluiu "tecnologias por combustíveis fósseis", abrindo espaço para novas fontes de emissão de CO2, e "tecnologias de energias renováveis, hidrelétricas incluídas", estas últimas de alto impacto ambiental. Em compensação, dizem eles, a conscientização sobre a energia "positiva" nunca ganhou tanta força. "Os opositores às metas (...) se isolaram, criando um novo desenho geopolítico mundial." Com o tempo, em decorrência da pressão da opinião pública, até os Estados Unidos passaram a aceitar o fato de que ações para a substituição dos combustíveis fósseis devem constar de qualquer plano político para os próximos anos. Em janeiro, George W. Bush propôs aumentar a produção de combustíveis alternativos, como o etanol, para tentar reduzir o consumo de gasolina em até 20% na próxima década. A principal razão de tal decisão, no entanto, é a perigosa dependência americana do petróleo do Oriente Médio.

Um ator de peso

Apesar de o Brasil contribuir para o aumento da concentração dos gases de efeito estufa na atmosfera por meio de desmatamento e queimadas, o país desponta como um dos principais atores na ordem ambiental internacional. Segundo dados do Ministério do Meio Ambiente (MMA), a substituição de combustíveis fósseis por renováveis, como o etanol, já alcançou 45% de nossa matriz energética. Cerca de 80% da energia elétrica, por exemplo, é gerada a partir de hidrelétricas – que podem não ser adequadas do ponto de vista da biodiversidade, mas produzem energia limpa. Responsável pela geração de 35% de todo o etanol do planeta, o Brasil exporta biodiesel e implementou projetos que já evitaram a emissão de 25 milhões de toneladas de CO2 nos últimos sete anos. Além dessas políticas, existe o fato de o país ter sediado a Cúpula da Terra e ter sido o único a participar da Comissão de Desenvolvimento Sustentável (CDS) da ONU desde seu início, em 1993.

De acordo com o MMA, a biodiversidade do planeta pode alcançar até 100 milhões de espécies, das quais apenas 1,7 milhão são conhecidas. O Brasil se destaca como o país com a maior diversidade biológica, abrigando de 15% a 20% do número total de espécies. Se levarmos em conta que o aproveitamento econômico desses recursos se traduz em algo estimado por volta de US$ 33 trilhões por ano – quase o dobro do PIB mundial –, é fácil concluir que nosso "poderio biológico" pode ter uma importância fundamental na implementação de políticas globais de preservação. Com o intuito de promover parcerias entre o poder público e a sociedade civil para a conservação dessa diversidade, sua utilização sustentável e a divisão justa dos lucros obtidos, o governo criou o Programa Nacional da Diversidade Biológica (Pronabio). "Nosso principal problema em relação aos gases poluentes é o desmatamento, o que é uma vantagem para o Brasil. É mais fácil contê-lo do que fazer a população parar de andar de carro ou criar modelos alternativos de transporte", afirma Ribeiro.

De acordo com Sérgio Bueno da Fonseca, coordenador da Agenda 21 Brasileira, o MMA tem por volta de 700 processos de Agenda 21 locais registrados, dos quais apenas cerca de 200 estão em funcionamento. "Sabemos que muitos foram iniciados, mas não tiveram continuidade", lamenta. Além de incentivar novas agendas regionais e locais, o programa pretende fomentar as iniciativas estagnadas. Para isso, depende do esforço de todos os setores da sociedade. Um projeto só é aceito como Agenda 21 se tiver um território de ação definido, envolvimento entre o poder público e a comunidade, um fórum de discussão permanente e horizontal com atores da sociedade civil, ONGs, empresas e governo, e por fim um plano estratégico, que deve seguir um modelo de gestão compartilhada do espaço. "Entre 2003 e 2006, movimentamos cerca de R$ 18 milhões na indução de processos", afirma o coordenador. Antes disso, o governo de Fernando Henrique Cardoso havia investido perto de R$ 6 milhões – vale lembrar que a Agenda 21 Brasileira foi criada a partir de debates realizados entre 1996 e 2002, modificada em 2003 e, então, colocada em prática.

As ações brasileiras são diferentes, por exemplo, das dos países europeus, que trabalham a Agenda 21 como estratégia de seus planos de governo. Aqui, ela faz parte do Plano Plurianual, o PPA 2004-2007, o que significa não ser apenas uma bandeira da atual administração, mas um princípio que norteia a política pública do país. "Ela não pode ser analisada como plano de governo. Nos locais em que a metodologia de implementação foi focada na atuação do poder público, como Santos e Angra dos Reis, por exemplo, a sociedade não foi protagonista e, por isso, houve problemas para sua continuidade", comenta Fonseca.

Apesar de algumas experiências positivas, o Brasil ainda está longe de atingir a maioria dos objetivos da Agenda 21. O setor empresarial, por exemplo, poderia participar mais. "Há empresas que usam a sustentabilidade apenas como marketing e demagogia", diz Born. Já Fonseca levanta outra crítica: "Poucos empresários se importam em mudar o padrão de produção, seja em termos de tecnologia, de matriz energética, de processos produtivos ou mesmo de modelos de gestão". A idéia de que toda companhia que adota uma boa gestão ambiental consegue produzir mais e com menos resíduos ainda não é consensual. Muitos empresários pensam que esse investimento diminui a competitividade de seu produto ou serviço. "Eles não entenderam que a equação mudou", diz Haroldo Mattos Lemos, que foi assessor do secretário-geral da Cúpula da Terra, Maurice Strong, e dirigiu o grupo brasileiro responsável pela criação da norma ISO 14000 – que diz respeito à certificação ambiental das empresas. "Se um empresário pede empréstimo a um banco, tem de responder a um questionário ambiental que conta pontos para a decisão final do credor", afirma Lemos. Além disso, quem deseja exportar precisa de algum selo da série 14000. "Todas as normas são voluntárias, mas quase obrigatórias para quem deseja atuar no comércio internacional. O próprio mercado obrigou à certificação", conclui. Segundo relatório do ano passado da Convenção sobre Diversidade Biológica, "à medida que as expectativas da sociedade e os requerimentos legais favorecem cada vez mais a biodiversidade, as companhias que possuem bons históricos de biodiversidade obterão uma vantagem significativa sobre aquelas que não os têm".

Se para alguns a discussão sobre desenvolvimento sustentável não passa de demagogia e para outros é extremamente relevante, há pelo menos um consenso: desde a Rio 92, a sociedade tenta garantir um bom nível de qualidade de vida para seus filhos e netos e passou a dar maior importância à preservação da biodiversidade. "No mínimo as pessoas estão preocupadas com as gerações futuras", diz Ribeiro. A Rio 92 foi, assim, um divisor de águas ao propor novos olhares sobre os problemas ambientais. Isso vem ajudando a sociedade a transformar sua cultura, seu comportamento e seus padrões de consumo, pressionando empresas e governos a criar políticas favoráveis à proteção da biodiversidade e ao incremento do desenvolvimento sustentável. Se se trata apenas de conversa, ainda não é possível saber, mas todos já sentem na pele que a temperatura está subindo.


Notícias apocalípticas

• 1,1 bilhão de habitantes de países em desenvolvimento não têm acesso a água potável.
• No mundo, morrem mais crianças por falta de água potável e instalações sanitárias do que por qualquer outra causa.
• Em 2025, 14 nações poderão sofrer de efetiva escassez de recursos hídricos.
• As alterações climáticas poderão elevar de 15% a 26% a subnutrição no mundo.
• A década de 1990 foi a mais quente desde o século 14.
• A demanda global por recursos naturais é 20% maior que a capacidade da Terra de renová-los.
• No ano de 2005, houve as maiores perdas já registradas devido a desastres naturais climáticos (inundações na Europa central, tsunami e furacão Katrina). Os prejuízos passaram dos US$ 200 bilhões.
• Aproximadamente 13 milhões de hectares são desmatados a cada ano, área equivalente à da Grécia.
• De 1970 a 2000, a população de espécies de água doce diminuiu 50%. A de marinhas e terrestres, 30%.
• A biosfera leva 1 ano e 3 meses para renovar o que a humanidade usa em 1 ano.
• Estados Unidos, membros da União Européia, China, Índia e Japão são responsáveis por dois terços do consumo de recursos naturais.

Fonte: Relatório do Desenvolvimento Humano 2006 da ONU e Panorama Global da Biodiversidade 2, produzido em 2006 pela Convenção sobre Diversidade Biológica

 

 

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