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REVISTA E - PORTAL SESCSP

 

O VÔO DO JOÃO DE BARRO

 

 

Último representante de uma geração de grandes compositores, como Noel Rosa e Ary Barroso, Braguinha se foi e deixou muito mais do que saudade

 

 

No dia 24 de dezembro do ano passado, a música popular brasileira perdia o último grande nome da chamada época de ouro da produção nacional, uma fase em que viveram, e compuseram ininterruptamente, grandes figuras hoje reverenciadas por quem faz e entende de música. Naquele domingo morria, aos 99 anos, Carlos Alberto Ferreira Braga. Não conhece? O Braguinha, o João de Barro... O autor de Chiquita Bacana (1949), Yes, Nós Temos Bananas (1938), Pirata da Perna de Pau (1947). Para quem algum dia na vida já ouviu algum desses hits carnavalescos, é impossível não lembrar. "Braguinha foi, ao lado de Lamartine Babo, um dos grandes gênios da marchinha de Carnaval", comenta o músico e pesquisador Ricardo Monteiro, um dos participantes do projeto Yes, Nós Temos Marchinhas!, realizado pelo Sesc Ipiranga (veja boxe Para conhecer um mestre da MPB). "Foi com esse gênero que os dois autores sobressaíram na cena musical brasileira por décadas a fio. A importância da obra de Braguinha é imensa para a cultura brasileira."
O curioso é imaginar que, por uma dessas convenções criadas pela sociedade - e que o tempo acaba provando ser algo sem sentido -, Braguinha poderia não ter seguido a música. É que para a família abastada do compositor, muito prestigiada no Rio de Janeiro da década de 20, lidar com música popular significava "certa vulgaridade incompatível" com a posição social ocupada pelos Braga, como revela o músico Luiz Tatit, conhecedor da obra do compositor carioca. "Na certa, o próprio Braguinha se envergonhava disso", afirma Tatit. "Daí o pseudônimo João de Barro para assinar as canções." Se não fosse a música, teria sido a arquitetura, curso que o compositor chegou a freqüentar. "Ele passou a infância em bairros da classe média alta, como o Botafogo e a Gávea", explica Monteiro. "Após estudar nos colégios Santo Inácio e Batista, ingressou na faculdade de arquitetura e seguiu, até aí, uma trajetória convencional para jovens bem-educados como ele, mantendo a música como uma atividade, a princípio, amadorística." No entanto, conta ainda o pesquisador, o talento de Braguinha não suportou as amarras do amadorismo e a atividade artística foi ganhando terreno. Na época, o compositor fazia parte de um conjunto musical chamado Flor do Tempo, que mais tarde mudou para Bando de Tangarás - nome de uma ave típica da América do Sul. Sempre criativo, ele sugeriu aos integrantes do grupo que todos adotassem nomes de aves. Os companheiros, entre eles Almirante e Noel Rosa, não embarcaram na idéia. Mas o João de Barro entrou definitivamente para a cena musical. "Para não contrariar em demasia os valores de sua família, convinha a Braguinha - como o chamavam os amigos - procurar um pseudônimo, prática comum na época", conta Monteiro. "Isso para não expor o nome da família Braga à infâmia de ter em seu seio um reles músico." Mas, de reles, João de Barro não tinha nada. Tanto que, após a derrocada financeira do pai, foi o dinheiro conseguido com a carreira já em ascensão que levou o compositor à condição de arrimo da família. "Por ironia do destino", comenta Monteiro. Outro fato interessante é que o nome escolhido por Braguinha para assinar suas músicas foi justamente o de um pássaro cuja principal característica é construir o ninho com sólidas paredes de barro. Uma espécie de pássaro-construtor. Bem a calhar para o músico que quase virou arquiteto.

 

DAS MARCHINHAS AO SAMBA-CANÇÃO

O também pesquisador musical Jairo Severiano escreve no livro Yes, Nós Temos Braguinha (Funarte/Martins Fontes, 1987) que João de Barro só não pode ser considerado o pioneiro na produção de marchinhas de Carnaval porque bem antes dele, em 1899, Chiquinha Gonzaga já havia composto Ó! Abre Alas. No entanto, "o gênero só se fixaria três décadas depois", escreve Severiano. Um movimento da história que acabou por colocar Braguinha no olho do furacão, ou, melhor, no meio do salão. "Braguinha tem a honra de pertencer à geração que musicou a fase mais importante do Carnaval brasileiro (1930/1942)", segue explicando Severiano no texto "A chamada 'era de ouro'. Exatamente no primeiro ano dessa fase ele estrearia na festa de Momo com o samba Não Quero Amor Nem Carinho e a marcha Dona Antonha." Desde então, os sucessos se seguiram. No Carnaval de 1931, ele apresentaria os sambas Olha a Crioula, Encurta a Saia, Padece e Mulata, e mais as marchas Batucada, Lataria e Uma Andorinha Não Faz Verão. No ano seguinte, seria a vez de Lábios de Fogo... Coração de Gelo, O Amor É um Bichinho e o samba Lua Cheia; e depois, em 1933, viria O Teu Cabelo Não Nega - essa um hit até hoje. "Para compor, Braguinha sempre procurou abordar os assuntos da época, o que lhe dá um caráter de cronista", explica o musicólogo e crítico de música Zuza Homem de Mello. "Esse era o grande segredo. Em poucas linhas, as músicas caíam no gosto popular. Desde o início, as pessoas, logo que ouviam, não só gostavam das músicas como eram capazes de cantá-las de imediato. Esse é um dos valores da música de Carnaval. Isso se perdeu; hoje, quando ouvimos os sambas-enredo, não conseguimos reproduzi-los de imediato." O crítico explica também que o Carnaval não foi a única inspiração de Braguinha. "O caso da marcante música Copacabana [gravada pela primeira vez em 1950], por exemplo, dá início ao período áureo do samba-canção na música popular brasileira. Na época de Carnaval, ele era sabidamente um dos que faziam as melhores músicas, mas não se limitava só ao Carnaval", afirma.


MÚSICA INFANTIL E "PARCERIA" COM CHARLES CHAPLIN

Ao longo da vida, Braguinha dividiu créditos com inúmeros parceiros. Alguns deles, nomes cultuados na música brasileira. Pixinguinha, com quem assinou Carinhoso (1928), Noel Rosa, co-autor de Pastorinhas (1938), e Alcir Pires Vermelho, esse companheiro em vários momentos - Jairo Severiano, em seu livro, destaca Laura (1957) como o melhor deles -, são três dos exemplos mais citados. João de Barro fez de tudo um pouco no que diz respeito à música. Por exemplo, muitas versões que ficaram famosas no Brasil nos anos 50 foram escritas pelo compositor. É o caso de Limelight, de Charles Chaplin, transformada em Luzes da Ribalta, em 1953; C'Est Magnifique, de Cole Porter, ou Que Coisa Louca na versão em português de 1957; e Moon River, de Henry Mancini, que virou Lua do Rio em 1962.
A música infantil também foi foco de interesse para Braguinha. A Coleção Disquinho é o principal produto dessa visita ao universo das crianças. Os vinis compactos e coloridos que traziam fábulas clássicas, como Branca de Neve e os Sete Anões e Chapeuzinho Vermelho, musicadas por ele e regidas por Radamés Gnattali, têm lugar garantido na memória de muitos adultos - e uma feliz chance de conquistar também as novas gerações, já que a WEA Music relançou 50 delas em CD no final de 2005. "O seu modo delicado de compor favorecia o trabalho com a música infantil", diz Luiz Tatit. "Para ele, foi fácil e prazeroso fazer as adaptações dos disquinhos que já eram sucesso nos Estados Unidos". Zuza Homem de Mello acrescenta que o mérito de Braguinha nesse trabalho voltado para os pequenos ultrapassa o pioneirismo de ter trazido o formato ao Brasil e chega até o marketing do lançamento, numa época em que a publicidade estava longe apresentar a força que tem hoje. "Eles [os disquinhos] eram diferentes dos discos dos adultos, eram coloridos, com embalagens apropriadas para a criança, fizeram um sucesso incrível." É por essas e por muitas outras que a música popular brasileira tem tantas contribuições do carioca nascido em 29 de março de 1907. "É natural que ele sempre seja destacado como um expoente", afirma Tatit. "Pois foi mesmo."

 

Ver boxes:

 

Yes, Nós Temos Braguinha
Para conhecer um mestre da MPB


 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 





BALANCÊ
* - Coisas do tempo. A marcha composta por Braguinha e Alberto Ribeiro em 1937, embora tenha sido interpretada por Carmen Miranda, não empolgou muito quando foi lançada. No entanto, mais de 40 anos depois, em 1979, a música ganhou releitura de Gal Costa e ajudou a cantora a superar a marca de 800 mil LPs vendidos. A mesma Balancê foi executada 2.357 vezes no Carnaval de 1980, segundo o Escritório Central de Arrecadação e Distribuição (Ecad).

 





CHIQUITA BACANA
* - A marchinha que se tornou um dos símbolos do Carnaval brasileiro, composta em parceria com Alberto Ribeiro em 1949, foi inspirada no existencialismo francês - aquele mesmo que tem os pensadores Jean-Paul Sartre e Simone de Beauvoir como ícones. A inusitada associação foi feita por Ribeiro, que um belo dia lança ao amigo compositor: "Vamos aproveitar essa onda de existencialismo que todo mundo anda comentando?" Não deu outra, no final da descrição da moça que "se veste com uma casca de banana-nanica", a letra arremata: "Existencialista/Com toda a razão/Só faz o que manda/O seu coração".







PREGÕES CARIOCAS
* - Quando era menino, Braguinha sempre passava as férias na casa de sua madrinha em Copacabana, no Rio de Janeiro. Nas tardes de brincadeira, não raro ouvia a voz de um vendedor de rua que gritava: "Olha o amendoim torradinho. Tá quentinho..." A propaganda de boca, conhecida como pregão, ficou na memória de João de Barro. Já adulto, em 1931, a lembrança serviu de inspiração para criar Pregões Cariocas, que logo no primeiro verso diz: "Amendoim, torradinho/Tá quentinho, também,/Também são quentinhos/Os braços do meu bem"





TOURADAS EM MADRI* - Embora tenha sido composta em 1938, foi em 1950 que a marchinha entrou para a história. O fato se deu no Estádio do Maracanã, no Rio de Janeiro, durante o jogo Brasil x Espanha na Copa do Mundo daquele ano. Empolgado com a performance do time brasileiro, que já marcava o quarto gol no rival espanhol, um grupo de torcedores começou a entoar os versos que falam do brasileiro que gosta é de samba e que não quer tocar castanholas nem pegar touro a unha. Não demorou e a empolgação se espalhou. Resultado: 200 mil pessoas cantaram a música de Braguinha - e o Brasil venceu a Espanha por 6 a 1.

*Fonte para as curiosidades sobre as canções: Jairo Severiano. Yes, Nós Temos Braguinha. Rio de Janeiro, Funarte/Instituto Nacional de Música, 1987.

 

 

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Para conhecer um mestre da MPB
Projeto do Sesc Ipiranga homenageia a vida e a obra de João de Barro



A idéia original era comemorar o centenário do compositor de algumas das mais famosas marchinhas de Carnaval de todos os tempos. No entanto, o tempo implacável levou Braguinha aos 99 anos. Diante disso, embora o tom da "comemoração" não seja mais 100% festivo, seguirá intocável o prazer de todos os envolvidos em lembrar a contribuição que o autor carioca deixou para o mundo da música. E é assim que o projeto Yes, Nós Temos Braguinha! irá, de 9 a 20 deste mês no Sesc Ipiranga, homenagear o artista que compôs clássicos como a marchinha Chiquita Bacana e a delicada Carinhoso, parceria com Pixinguinha. Na programação, show com a cantora Maria Alcina (foto), que abre o projeto no dia 9 vestida de Carmen Miranda; workshop que falará sobre a evolução das marchinhas, no dia 10; e o curso Yes, Nós Temos Braguinha e Muito Mais!, dias 13, 14 e 15, com o músico e pesquisador Ricardo Monteiro, que contará histórias sobre o autor e falará de sua importância para a cultura popular. "A idéia é iluminar suas diferentes áreas de atuação e o legado de sua contribuição em cada uma delas", adianta Monteiro. As aulas serão divididas em quatro módulos: a obra musical, a época em que viveu Braguinha, a ligação de Braguinha com o cinema, e seu trabalho voltado para as crianças. "O que o público em geral experimentará é uma surpresa imensa", explica o pesquisador. "Não por deparar pela primeira vez com a obra imortal de um grande gênio de nossa arte popular, mas, muito pelo contrário, por descobrir que todas aquelas pérolas, que se ouviam e eram tão amadas havia tanto tempo, tinham um autor, e que esse autor era Braguinha." Confira a programação completa no Em Cartaz desta edição.

 



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