
Fruto de uma época de intensas lutas e experiências, a geração de jovens das décadas de 60 e 70 se viu anos mais tarde diante de um dos seus maiores desafios: criar os filhos
O que era ser jovem nas décadas de 60 e 70? Em se falando de pessoas cujo padrão de vida permitia o acesso às informações naquela época - ou seja, a maioria se encontrava na classe média -, é possível eleger uma geração que se formava acompanhando uma série de transformações. Na política, alguns destaques eram o momento tenso no Brasil, estopim para a instituição de uma ditadura que perduraria até meados dos anos 80; a revolta dos estudantes da universidade francesa de Nanterre, em Paris - que, aliados à classe operária, desafiaram o presidente Charles de Gaulle em maio de 1968 -; e o surgimento do movimento hippie, cujo marco foi o Free Speech Movement (Movimento pela Liberdade de Expressão), realizado pelos estudantes da Universidade de Berkeley, nos Estados Unidos, em 1964. Na área da cultura, a juventude da época cresceu com a televisão - os programas pioneiros exibidos pela telinha datam do início da década de 1950 -, testemunhou a rendição geral à bossa nova de João Gilberto e Tom Jobim, entre outros artistas, em 1963; ouviu os sons revolucionários do tropicalismo no final da década de 60; e dançou o "yeah, yeah, yeah" dos Beatles, os garotos de Liverpool, na Inglaterra. Não se pode esquecer da revolução nos costumes promovida pela luta a favor da liberdade sexual - uma das bandeiras do movimento hippie - e do movimento feminista, que, com um cunho fortemente político e intelectual, buscou o reconhecimento e a superação das relações assimétricas entre os gêneros feminino e masculino. Estão aí hoje a pílula anticoncepcional e a mulher inserida no mercado de trabalho para mostrar a importância de suas conquistas.
"É PROIBIDO PROIBIR"
Em meio a um cenário que fervilhava, a juventude, para onde quer que olhasse, deparava com as tentativas de ruptura com o modelo antigo. "A palavra liberdade era cantada em prosa e em verso", explica a psicanalista Eveline Alperowitch, membro do conselho do Instituto da Família, associação paulistana que se encarrega de oferecer cursos a médicos pediatras que atendem famílias carentes. "Era a peça de Millôr Fernandes chamada Liberdade, Liberdade, eram as músicas de Chico Buarque, os festivais da Record, com aquelas imagens do pessoal quebrando o violão, e as letras das músicas, como as do Caetano Veloso." E, por falar em Caetano, entre suas muitas canções, por meio das quais o artista traduzia os desejos da juventude, É Proibido Proibir (1968) já no título resumia bem o que a nova geração queria para o mundo. Por outro lado, ao vermos o mesmo Caetano hoje, com seus cabelos brancos e já sem os cachos que Roberto Carlos menciona na canção Debaixo dos Caracóis - feita para Caetano durante o exílio político do artista em Londres, na Inglaterra -, surge outra pergunta: "Quem são hoje os jovens dos anos 60 e 70?". O psiquiatra especializado em terapia familiar Francisco Assumpção responde: "Aqueles jovens cresceram e tiveram filhos. E tornaram-se pessoas que trilharam dois caminhos: alguns acabaram ficando iguais a seus pais e outros talvez tenham continuado utópicos". Para Assumpção, também professor do Departamento de Psiquiatria da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo (FMUSP), a primeira opção significa que tudo o que foi criticado naquela época passa a ser reproduzido por esses "ex-jovens"; a segunda, no entanto, não necessariamente garante que a chama continue acesa e que o bastão seja passado para as novas gerações sem que surjam conflitos. "O que eu vejo é algo interessante que sobra nos dois casos", declara Assumpção. "De um jeito ou de outro, esses pais passaram a seus filhos a idéia de que o questionamento de comportamentos e de valores é algo possível, pois aconteceu em sua época." O que ocorre, porém, conforme explica o psiquiatra - que durante as sessões de terapia familiar habituou-se a lidar com a juventude dos filhos e também com as lembranças dos pais -, é que se criou um fosso entre a teoria e a prática no momento de impor os limites para a transgressão. "Certa vez conversei com uma mãe cujo filho adolescente havia pegado o caminhão do pai numa fazenda e batido num barranco", conta o médico. "Ela afirmava que tudo teria sido diferente se o garoto tivesse falado com o pai, que, segundo ela, poderia ter acompanhado o filho ao volante. Expliquei a ela que continuaria 'errado', afinal, por lei, um jovem só pode dirigir depois dos 18 anos. Ela me respondeu que não concordava com essa lei. Então eu disse a ela: 'Bom, tanto a senhora quanto seu filho estão na mesma condição: a senhora contesta a lei da maioridade no volante e o seu filho contesta a sua'. Isso exemplifica bem a situação: os jovens não conseguem perceber os limites, mas certos pais também não."
LAÇOS DE FAMÍLIA
A psicóloga Doris Cardoso, de 57 anos, é um bom exemplo dessas relações. Jovem que viveu "completamente imersa" em todos os acontecimentos de sua juventude - "fui o que se chama de geração 68", diz -, Doris procurou dar aos filhos, Maria Flor, de 31 anos, Artur, 30, Júlia, 26, e Clarice, 18, uma criação condizente com seu "espírito liberal", o que nem todas as vezes se mostrou o melhor caminho. "Acredito que possa tê-los deixado inseguros algumas vezes na adolescência", conta Doris. "Essa é uma fase em que os limites muito bem determinados são absolutamente imprescindíveis. Mas não acredito que tenham ficado seqüelas desses deslizes." De fato, não ficou. O filho Artur Moraes, formado em psicologia, mas atualmente DJ e produtor musical, corrobora: "Meus pais lidaram de uma maneira muito natural com as questões mais delicadas que surgem na criação dos filhos", conta. "Mas não deixaram de zelar pela nossa integridade física e mental, que era a maior preocupação deles e que, suponho, ainda seja hoje. Não havia muitos fantasmas, não... Até porque eles próprios já haviam feito uso de algumas drogas leves." Os conflitos também conseguiram ser contornados na casa da socióloga Eleonora Menicucci, de 62 anos, mãe de Maria, 33 - que lhe deu a neta Stella, de 4 anos -, e de Gustavo, de 32. Feminista até hoje, ex-presa política - período durante o qual viu Maria, então com pouco menos de 2 anos, ser torturada na sua frente - e defensora da idéia de que uma relação entre pais e filhos só pode ser bem-sucedida se baseada no diálogo franco, Eleonora nem sequer acredita que os pais tenham condições de passar limites para os filhos. "O limite é para cada um", diz. "É preciso que os pais falem de suas experiências para os filhos no momento em que a situação fica mais difícil. No meu caso, não precisou, aos poucos eu ia conversando com eles, a partir de meus próprios limites, que eu mesma fui percebendo." O filho Gustavo acredita que o modelo deu certo. "Entre os valores que considero mais importantes, e que minha mãe me passou, está a postura diante da diversidade, por exemplo, seja de gênero, classe social, etnia ou sexualidade", afirma. "Sempre nos foi cobrado que víssemos isso sem preconceitos." A estudante de design multimídia Camila Novelle, de 24 anos, filha da estilista Maria Aparecida D'Agostinho, 53 anos, também credita a visão que tem sobre "aceitação das diferenças em geral" à criação que recebeu dos pais. "Tenho uma visão meio psicológica das coisas", conta a jovem. "Eu e minha mãe adoramos analisar pessoas e acontecimentos." No entanto, Camila questiona a postura de alguns pais "mais liberais" no que diz respeito ao entendimento de limites por parte dos filhos. "Acho que a mudança de ideais e comportamentos era necessária para aquela época [anos 60 e 70]", afirma. "Mas as coisas são diferentes agora e de certa forma as pessoas que vieram dessa criação, mais liberal, perderam um pouco a referência do certo e errado, por causa da falta de limites, talvez." A mãe, Maria Aparecida, concorda. "Acho que foi um período conturbado, não se sabia direito para onde ir, e havia coisas que fiz naquela época que davam um certo vazio, como ser a ovelha negra da família. Mas procurei dar a minha filha uma criação que a fizesse construir uma visão crítica do mundo, não aceitando imposições do que quer ou não quer ser, podendo escolher seu próprio caminho sem se deixar influenciar pela mídia ou mesmo pela família." Pelo que conta Camila, isso em parte aconteceu. "Jamais gostei de drogas, então não tivemos esse problema", conta a filha. "Embora saiba que ela era 'louquinha" quando nova, toda vez que eu fumo [cigarros] ou quanto à sexualidade, temos opiniões diferentes, então não falamos tudo uma para a outra, mas ela aceita como algo normal, por exemplo, que meus namorados durmam em casa comigo."
 Álbum de família: na foto mais acima, Maria Aparecida D'Agostinho com a filha Camila no colo, em 1982; aqui, à esquerda, Camila (centro) brinca com as amigas; à direita, mãe e filha hoje.
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Entendimento entre gerações Reunião de família
Entendimento entre gerações Programa do Sesc explora o potencial educativo das atividades intergeracionais promovidas pelas unidades
Conflito não necessariamente quer dizer algo ruim. O estranhamento inicial que os valores e hábitos de uma geração causa na outra não precisa gerar incomunicabilidade entre os indivíduos. É nisso que aposta o trabalho do Sesc São Paulo quando promove atividades que colocam grupos de diferentes faixas etárias reunidos em torno de interesses comuns. Dentro desse universo, o convívio do público da terceira idade com crianças e jovens - ou freqüentadores ou mesmo os técnicos que coordenam as atividades - tornou-se alvo de especial preocupação da Gerência de Estudos da Terceira Idade (GETI). Na busca por acompanhar ainda mais de perto esse trabalho, para que seja possível traçar estratégias para desenvolver o potencial co-educativo desses encontros, o Sesc lançou, durante as atividades do Congresso Internacional de Co-educação de Gerações, realizado em outubro de 2003, no Sesc Vila Mariana, o programa Sesc Gerações. "A iniciativa surgiu a partir de uma pesquisa durante a qual entrevistamos professores e alunos da escola aberta da terceira idade", diz José Carlos Ferrigno, técnico da GETI. "Foi quando nós percebemos que estávamos lidando com duas gerações diferentes: a dos técnicos, que são o pessoal na fase do adulto mais jovem e da meia-idade, e seus alunos da terceira idade." A partir das primeiras constatações, a pesquisa se ampliou para o público freqüentador. "Essas outras experiências vieram de depoimentos que colhemos em algumas oficinas e demais atividades intergeracionais", explica Ferrigno. Como conclusão desses estudos, viu-se que as possibilidades de co-educação entre gerações - já detectadas pelo Sesc ao longo de seu vasto trabalho com a terceira idade - poderiam, de fato, ser ainda mais exploradas. "O conceito de co-educação é muito amplo", afirma o técnico. "Especificamente no que diz respeito a esse processo entre gerações, chegamos a conteúdos muito claros." Entre eles, segundo Ferrigno, a possibilidade de os jovens aprenderem com os idosos valores éticos considerados primordiais - como a solidariedade, a honestidade e a cooperação -, o acesso a diferentes modelos de como envelhecer e até mesmo o desenvolvimento de interesse por atividades cotidianas prazerosas, mas aparentemente incompatíveis com a era da internet, como a construção de brinquedos e os consertos e reformas domésticos. Do outro lado, os mais velhos podem também mudar as eventuais imagens que têm do jovem sempre alienado e irresponsável e passar a ter a nova geração como aliada na atualização de valores culturais - "que não desmontam os valores éticos fundantes", ressalta Ferrigno - e no processo de inclusão na realidade das novas tecnologias. Os trabalhos do Sesc Gerações se intensificaram a partir de 2004 e já mostraram resultado ao longo desses dois anos. "A cada instante a gente confirma o sucesso de explorar a potencialidade desses processos", conta Ferrigno. "Mesmo em conversas informais com as pessoas, quando elas nos dizem que aprenderam coisas nesse convívio."
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Reunião de família Atividades do programa Curumim, realizado pelas unidades do Sesc, oferecem momento partilhado entre pais e filhos

Todas as vezes que os pais inscrevem os filhos no programa Curumim - oferecido por diversas unidades do Sesc em todo o estado -, mais do que garantir aos pequenos um espaço de lazer, cultura e conhecimento extra-escolar, surge também mais uma oportunidade de uma integração familiar. Isso porque muitas das atividades oferecidas pelo projeto - voltado para crianças de 7 a 12 anos - abrem espaço para os pais participarem com os filhos de oficinas, reuniões e até das peças de teatro organizadas ao longo do ano. "O Sesc São Paulo, desde sua criação, em 1946, tem como um dos pilares a criação de espaços e situações de sociabilização entre grupos de interesses comuns, trabalhadores [do comércio] e suas famílias", explica Maria Alice Oieno de Oliveira, gerente-adjunta da Gerência de Programas Sócio Educativos (GPSE). No Sesc Bauru, por exemplo, esses momentos acontecem tanto durante oficinas de criatividade, nas quais pais e filhos se juntam para pintar ou construir brinquedos, quanto em vivências nas áreas de dança e teatro. Já o Sesc Santo André oferece atividades que abordam temas como educação, saúde e meio ambiente para motivar a troca de experiências e de opiniões entre crianças e adultos. Isso é feito por meio de palestras, que são assistidas por toda a família, e ações como Um Dia de Curumim, na qual os pais podem vivenciar como é o dia de seus filhos no Sesc. A filosofia da instituição no que diz respeito à integração de diferentes gerações por meio de atividades lúdicas foi levada à Conferência Paulista de Desenvolvimento Infantil, realizada de 6 a 9 de dezembro de 2006, em Águas de Lindóia, interior de São Paulo. Durante a palestra O Espaço de Brincar, foram apresentadas as estruturas desenvolvidas pelo Sesc especialmente voltadas para a brincadeira. "Espaços que nós chamamos de reversíveis", conta Maria Alice. "Ou seja, estruturas que permitam que a brincadeira flua com segurança, higiene, interação e muita criatividade", explica. |
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