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A revisão constitucional
Uma forma de totalitarismo normativo
NEY PRADO
Ney Prado / Foto: Nicola Labate
O jurista e professor Ney Prado, ex-secretário-geral da Comissão de Estudos Constitucionais, nomeado pelo presidente da República para a elaboração do anteprojeto constitucional em 1986-8, esteve presente no dia 10 de agosto de 2006 no Conselho de Economia, Sociologia e Política da Federação do Comércio do Estado de São Paulo, onde proferiu uma palestra a respeito da revisão constitucional. Reproduzimos abaixo sua exposição e o debate que se seguiu a ela.
Antes de analisar propriamente os vícios de nossa atual Constituição, vale recordar que toda obra humana, individual ou coletiva, é passível de imperfeições e, portanto, de censura. Ainda porque, como lembrou Theodore Roosevelt, "o único homem que jamais comete erros é o que jamais fez alguma coisa".
De fato, acertar e errar é uma contingência humana. Seria mera idealização imaginar que nossos constituintes pudessem tornar a Constituição uma obra perfeita e acabada.
Hoje, após 18 anos de vigência, a Constituição de 1988 já recebeu abundantes apreciações e avaliações críticas de vários segmentos da sociedade brasileira e até de instituições internacionais, dando-nos um panorama razoavelmente diversificado de seus aspectos positivos e negativos.
São, com efeito, muito grandes as perplexidades suscitadas pelas inovações da Carta de 1988. Por vezes, sem precedentes na práxis de outros povos; por vezes, repetitivas de antigos preconceitos; por vezes, sepultadas na experiência dos países mais desenvolvidos; por vezes, imprecisas e duvidosas; por vezes, incompletas e indefinitórias, multiplicam-se no texto, positivadas em grande quantidade, normas problemáticas, controvertidas e inexecutáveis. Essas perplexidades têm se refletido no Parlamento, no Executivo e nos tribunais, bem como nos inúmeros seminários e congressos em que novas instituições vêm sendo analisadas e debatidas. Há quase um geral reconhecimento que nosso Magno Diploma Jurídico trouxe mais dúvidas do que certezas quanto à interpretação de seus inúmeros e infindáveis artigos.(1)
É bom lembrar que, no plano interno, a idéia de uma nova Constituição surgiu num momento de transição, coincidentemente com o esgotamento do ciclo autoritário e os movimentos de redemocratização do país: "Diretas Já" e "Constituinte Já".
A idéia dominante era que a nova Constituição "não exerceria apenas o papel de tradutora dos valores predominantes, mas também o de propulsora de transformações sociais. Não poderia ser igual às outras. Nem na forma, nem no estilo, nem nas afirmações e nas formulações fundamentais. O de que se tratava era fazer uma Constituição realmente libertadora de nosso povo, que pudesse garantir ao mais humilde cidadão ter seus direitos totais assegurados, inclusive o direito de simplesmente não aceitar o fato de não ter nada quando alguns poucos têm tudo".(2)
Mas quando a Constituição foi promulgada, em outubro de 1988, "ainda não havia clara percepção das dramáticas transformações mundiais, caracterizadas pelo colapso do dirigismo socialista. Se a gravidez constitucional tivesse se prolongado por um período adicional de nove meses, os constituintes teriam percebido a enorme mudança na ecologia econômica mundial. Uma quádrupla rebelião: a primeira contra o Estado regulador, que destrói a flexibilidade necessária às sociedades industriais modernas; a segunda contra o Estado exator, que aumenta tributos sem cortar gastos e sem melhorar serviços; a terceira contra o Estado empresário, que não pode ser julgado pelos testes de mercado, por operar com monopólios e privilégios; e finalmente contra o Estado previdenciário, que agrava desnecessariamente os custos de mão-de-obra quando seus serviços poderiam ser executados com menor custo e maior eficiência pelas próprias empresas, mediante acordos fiscalizados pelos trabalhadores".(3)
Nossa Constituição possui reconhecidamente vícios e virtudes. Pode-se tudo criticar a respeito dos constituintes de 1988 e da qualidade de seu trabalho. Não obstante os defeitos que possa apresentar, ela representa inegavelmente um marco importante na história do país: o fim de um ciclo autoritário e o princípio de uma nova experiência democrática, que se pretende duradoura.
Um dado, entretanto, é recorrentemente enfocado. Emerge como uma tônica, constante em quase todas as apreciações: a Constituição de 1988 é um documento provocativo, inegavelmente criativo, mas, por suas características, desestabilizador da vida nacional. Não há exageros em afirmar-se que seu advento provocou enorme insegurança jurídica, dificultou a governabilidade, inibiu os negócios e investimentos internos e externos, sem falar nos conflitos sociais que gerou, em níveis jamais experimentados entre nós.
Um dos vícios da Constituição de 1988 apontado é o casuísmo, observável em todo o texto. Nele tudo se prevê, tudo se regula. Antevêem-se todas as hipóteses e dispõe-se sobre todas as soluções. A Constituição foi transformada num variado repertório de temas, sem distinção entre o que realmente deve ser matéria incluída na Carta Magna e o que poderá ser objeto de legislação complementar, ordinária e até regulamentar.
Aliás, esse inchaço constitucional, essa colcha de retalhos, essa verdadeira enciclopédia pública, fruto da imposição de um modelo de Constituição dirigente, com minudências que descem da matéria constitucional para esgotar temas reservados à legislação ordinária e, até, às opções administrativas regulamentares, não é, apenas, um defeito técnico muito grave da elaboração constitucional: é uma forma de totalitarismo normativo, espécie tão ou mais nociva que o totalitarismo tradicional.
Para ser democrática, a Constituição não pode ser um elenco infindável de soluções. Seu papel é oferecer uma moldura, dentro da qual o povo poderá, durante muitos anos, continuar a buscar o seu caminho.
Para fugir ao casuísmo, a Constituição deveria ser um corpo forte, esbelto, sintético, essencial, compendiado, estrutural, nunca penosamente adiposo e extensivo.
Outro vício da Constituição é a sua contraditoriedade intrínseca, tanto do ponto de vista dos valores adotados quanto das normas que contém.
Com efeito, de nada adiantam os princípios do título I e as abundantes 77 declarações de liberdades e garantias (78, a partir de 2004), esmiuçadas no quilométrico artigo 5º do título II, se, contraditoriamente, elas acabam anuladas pela complicada máquina do Estado intervencionista e fiscalista que é minudentemente construída nos sete títulos restantes.
"O indivíduo, exaltado por aquelas prolixas declarações de direitos e garantias, parece ter recebido tudo e mais alguma coisa. Mas, aos poucos, a Carta decepciona e se contradiz, à medida que o papel do Estado vai sendo detalhadamente definido na mais extensa Constituição de nossa história. O indivíduo tem tudo enquanto pessoa idealizada: no momento em que dele se espera o trabalho, a iniciativa, o progresso, enfim, dele se desconfia, começa a ser penalizado, tributado e limitado."(4)
Na ordem econômica, desde logo, nos deparamos com uma espantosa contradição entre o disposto no artigo 170, inciso IV, que estabelece as pilastras da economia de mercado (livre iniciativa e livre concorrência) e a grande quantidade de dispositivos de natureza intervencionista que se segue. Como realizar uma economia de mercado com mais de 40 regras de intervenção econômica?
Na verdade, a Constituição de 1988 não chegou ao ponto de estruturar um Estado democrático de direito de conteúdo socialista, mas pretendeu, por certo, compatibilizar a democracia política com muitos dos aspectos próprios do socialismo econômico.
Quanto à organização funcional do poder, lembra-nos oportunamente Roberto Campos que o modelo inglês é o da integração dos poderes; o norte-americano o da separação dos poderes; e o nosso atual não é um nem outro. Criou-se um terceiro tipo: o da invasão dos poderes.
No dizer de Manoel Gonçalves Ferreira Filho, assistimos hoje a uma situação esdrúxula: "O Poder Executivo legisla, o Legislativo investiga e o Judiciário administra". Essa anomalia tem provocado uma constante fricção entre os poderes, agravando o quadro da ingovernabilidade.
Esse grave defeito torna impossível uma legislação coerente, uma administração coerente e, sobretudo, uma jurisprudência coerente.
O utopismo é outro vício que se pode imputar à Constituição de 1988. E ela é duplamente utópica: porque pretende ser um instrumento de transformação social e porque se divorcia totalmente da realidade.
Os românticos da Assembléia Nacional Constituinte, insatisfeitos com a realidade, acreditaram ser possível rejeitá-la radicalmente e modificá-la por ato de vontade.
Ignoraram que a norma facilita ou dificulta o progresso, mas não o gera materialmente. "A materialização do progresso pertence à ordem dos fatos, não à dos preceitos."(5) "Na verdade, uma Constituição não resolve problemas, apenas aponta diretrizes."(6)
A Constituição de 1988, ao se divorciar da realidade, perdeu consideravelmente as condições práticas de reger eficazmente a vida política, econômica e social da nação.
Poder-se-ia argumentar que as medidas propostas são de cunho meramente programático e que muitas delas costumam vir inseridas em algumas constituições, tanto brasileiras como estrangeiras. Acontece, no entanto, que o utopismo dos constituintes foi muito além do esperado. Decretaram, por um passe de mágica e pela crença desmedida no poder das fórmulas escritas, que todas as normas programáticas passariam a ser pragmáticas, pois sentenciaram no artigo 5º, LXXVII, § 1º, que: "As normas definidoras dos direitos e garantias fundamentais têm aplicação imediata".
O dado observável de nossa realidade é que a proposta constitucional gerou e exacerbou desejos, despertando novas e crescentes reivindicações, por parte da sociedade. Como muitas delas são irrealizáveis, e outras só serão passíveis de atendimento a longo prazo, dentro das possibilidades futuras da nação, as reivindicações não atendidas vêm provocando dramáticas frustrações.
Outro ponto negativo de nossa atual Carta Magna é que ela não eliminou as características corporativistas das constituições anteriores: na verdade, agravou-as.
O ministro Nelson Jobim, parlamentar à época, bem retrata o ambiente corporativista nos trabalhos constituintes: "Em 1988 víamos a galeria como a representação popular, como se estivesse lá o povo pelas suas organizações. Depois começamos a ver que o que estava na galeria não era o povo: eram as corporações de ofício, aparelhadas algumas por partidos políticos, outras não, mas todas elas visando a interesses próprios das suas corporações".
Em termos de corporativismo, o texto constitucional é rico de exemplos: empresas estatais (artigos 21, X, XI, XII; 177, I até IV); magistratura (artigo 93); representação classista (artigo 111, § 1º, inciso II e § 2º); Ministério Público (artigo 127, §§ 3º e 5º ); Procuradoria-Geral da Fazenda Nacional (artigo 131, § 3º); polícias rodoviária e ferroviária federal (artigo144, incisos II e III); polícia civil (artigo 144, § 4º); médicos (artigo 199, § 3º); universidades estaduais (artigo 218, § 5º); notários (artigo 236); fazendários (artigo 237); delegados de polícia (artigo 241); escolas oficiais (artigo 242, caput); servidores públicos civis (artigo 19 do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias); Ministério Público do Trabalho e Militar (artigo 29, § 4º do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias); índios (artigo 231, §§ 2º e 3º); empresariado nacional (artigo 171, § 1º); advocacia (artigo 133), além de inúmeros outros.
Constata-se da leitura dessa imensa lista que, a rigor, todos os segmentos organizados da sociedade foram aquinhoados, de alguma forma, com favores e benesses legais: desde a "tanga" até a "toga".
Outro aspecto negativo da Constituição é o seu nítido viés estatizante. Nela os dispositivos intervencionistas, de cunho regulatório, são possivelmente mais numerosos do que em qualquer outra Constituição do planeta. O constituinte, em vez de prever os gêneros de intervenção e deixar que o legislador ordinário instituísse as espécies que considerasse necessárias, preferiu, ele próprio, desfilar dezenas de espécies constitucionais.
Em magistral trabalho, Diogo de Figueiredo Moreira Neto nos mostra que chega a 40 o total das modalidades de institutos interventivos: 28 de cunho regulatório, 1 concorrencial, 5 de natureza sancionatória e 6 de teor monopolista. Comparando esses números com o total de 14 institutos da Carta de 1969, encontramos um espantoso acréscimo de 26 novas modalidades de atuação do Estado na ordem econômica, o que corresponde quase ao dobro.(7)
Os resultados práticos dessa forma equivocada de ver o novo papel do Estado são de fácil aferição: alimentou o populismo, estimulou o empreguismo, agigantou a burocracia, aumentou os níveis da corrupção, elevou consideravelmente a carga fiscal sobre a sociedade, desestimulou investimentos, ampliou a taxa de desemprego e a economia informal, gerou recessão e assumiu características nitidamente paternalistas.
O modelo de Estado intervencionista desenhado pela Constituição ficou mais forte e demandado. Tornou-se administrador, justiceiro, patrão e defensor dos fracos e oprimidos, além de produtor e provedor de recursos. De outro lado, a sociedade ficou mais dependente e mais inerme. Foi limitado o campo de opção do brasileiro em questões importantes de sua vida e reduziu-se, enfim, a capacidade de encontrar seus próprios caminhos e de se desenvolver segundo suas próprias decisões.
Em vez de fortalecer a burocracia, o correto seria devolver ao homem e às entidades econômicas e sociais seu legítimo espaço de liberdade e iniciativa.
A melhor solução para os problemas encontra-se na sociedade civil, por intermédio de iniciativas independentes e convergentes realizadas por forças sociais espontâneas, e não mediante ações burocráticas e administrativas.
O estatismo com seu inafastável viés paternalista emascula as sociedades que domina, desestimula o empreendedor, quando não o pune, e leva o homem a se acostumar a esperar resignadamente do Estado a solução de todos os problemas.
O paternalismo está presente em quase todo o texto constitucional. Adquiriu, todavia, maior evidência quando trata dos direitos dos trabalhadores e dos chamados "direitos sociais". "A preocupação dos constituintes não foi facilitar a criação de novos empregos e, sim, garantir mais direitos para os já empregados. Legislou-se para pouco mais de metade dos trabalhadores, porque os demais estão na economia informal, à margem da lei e das garantias. Nossa Constituição, sob aparência benfeitora, é na verdade uma conspiração dos já empregados contra os desempregados e os jovens."(8)
Na ânsia de proteger a todos os trabalhadores, indistintamente, o texto constitucional acabou por dar tratamento igual a situações desiguais. Considerou em iguais direitos tanto um próspero executivo como um simples ajudante de pedreiro. Atribuiu às empresas iguais responsabilidades, independentemente de sua natureza, porte econômico, localização, e sem levar em conta as adversidades eventuais da conjuntura.
O certo é que a Constituição estratificou as relações entre empregados e empregadores: frustrou a ambas as partes o direito de decidir sobre o futuro, arvorando-se em ditadora desse destino.
Indiferentes aos obstáculos da própria realidade, imaginaram os constituintes ser possível resolver o problema das carências humanas por meio de simples inserção no texto dos chamados "direitos sociais". Confundiram meros anseios com direitos. Não distinguiram o "justo" do "possível". Desconsideraram o estágio de desenvolvimento do Brasil, a quantidade e a dosagem dos meios necessários à implementação das medidas assistenciais abundante e generosamente nela contempladas.
Para garantir o welfare state a partir de 1988, a máquina burocrática do Estado continuou a se expandir, e conseqüentemente seus custos, exacerbando, como nunca, sua voracidade fiscal em níveis inimagináveis e insuportáveis para o contribuinte.
Não há nenhum exagero, nem recurso retórico, na afirmação de que o modelo de megaestado intervencionista, paternalista, assistencialista e fiscalista, adotado pelo legislador constituinte, trouxe sérias implicações negativas à economia e ao desenvolvimento do país.
É bem verdade que a lei, qualquer lei, por si só, não cria o desenvolvimento político, econômico e social. Mas a Constituição de 1988 tem comprovado que o contrário ocorre: que a má lei pode inibir o desenvolvimento global de um país, pelas reiteradas crises, de todo tipo, que provoca.
Uma conclusão parece-nos irrefutável: a atual Constituição, por seus vícios de origem, de forma, de conteúdo e de funcionalidade, está longe de representar o instrumento juspolítico que garanta ao país uma democracia estável e um desenvolvimento mais justo e auto-sustentado. Daí a necessidade imperiosa e inadiável de uma revisão constitucional.
Notas
1 PRADO, Ney. Razões das Virtudes e Vícios da Constituição de 88. São Paulo: IL/Inconfidentes, 1994, p. 3-4.
2 ABRAMO, Cláudio. Constituinte e Democracia no Brasil. São Paulo: Ed. Brasiliense, 1985, p. 53.
3 CAMPOS, Roberto. "Sigla e Mensagem." "O Globo", 22/12/85, p.12. Idem. O Século Esquisito. Rio de Janeiro: Ed. Topbooks, p. 214.
4 MOREIRA NETO, Diogo de Figueiredo. "Dádiva do Papel." Rio de Janeiro: Apec, nº 797, 30/06/1988, p. 18-19.
5 JAGUARIBE, Hélio. "Três Problemas e Seis Cenários." In "Folha de S. Paulo", 21/07/1988, p. A3.
6 NATHANAEL, Paulo. "Constituição: Crendice e Realidade." In "O Estado de S. Paulo", 05/03/1987.
7 MOREIRA NETO, Diogo de Figueiredo. Constituição e Revisão. Rio de Janeiro: Ed. Forense, 1991, p. 442.
8 CAMPOS, Roberto. Além do Cotidiano. Rio de Janeiro: Ed. Record, 1985, p. 88.
Debate
JOSUÉ SOUTO MAIOR MUSSALÉM – O professor de direito constitucional Josafá Marinho, que foi senador da República, dizia, no final de 1986, que se a Constituição fosse feita contra o regime militar, causaria grandes problemas ao país. Foi quase um vaticínio. Chamo a atenção para alguns pontos. O ministro Nelson Jobim confessou recentemente ter colocado no texto constitucional alguns artigos que não foram aprovados pelo plenário da Constituinte. Isso é uma aberração jurídica.
Segundo ponto: houve uma transferência brutal de recursos da União para estados e municípios. Em 1989, ocorreu uma verdadeira farra de gastos nos estados, por conta dessas transferências. Isso levou o presidente José Sarney a idealizar a "Operação Desmonte", com Everardo Maciel, que tentou transferir projetos para estados e municípios, mas não conseguiu. No governo Fernando Henrique Cardoso, Everardo foi indicado para a Secretaria da Receita Federal, onde criou a parafernália de contribuições que temos hoje. Como as contribuições não fazem parte nem do Fundo de Participação dos Estados nem do Fundo de Participação dos Municípios, a arrecadação fica para o governo federal. Ou seja, hoje, dos 38,4% da carga tributária bruta em relação ao PIB, 27% ficam com a União, 9,5% estão com os estados e 1,9% com os municípios. A reconcentração tributária da União foi a reação do governo FHC ao texto constitucional.
NEY PRADO – É de fato muito esdrúxula a inclusão de dois artigos ou mais na Constituição, sem passar pela aprovação do plenário. Mas tenho um dado semelhante. Na noite anterior à data da entrega do texto definitivo, na casa de Bernardo Cabral, um amigo dele do Pará, analisando a parte referente ao Poder Judiciário, verificou que se um artigo fosse preservado como estava, levaria para o Tribunal Superior do Trabalho um dos membros do Ministério Público que era inimigo pessoal dessa figura. E o texto foi modificado.
Quanto a Everardo Maciel, lembro apenas uma frase dele, que considero muito importante: "A sociedade não percebeu que carga tributária não é aumento de imposto, é exigência das despesas públicas".
MALCOLM FOREST – Vou dar um palpite e quero ouvir sua opinião e a dos colegas. O mundo, desde 1988, mudou muito. Hoje estamos na era da sobrevivência ecológica. Essa é a pauta principal. A revisão constitucional pode ser uma grande oportunidade para modernizar o país, mas precisa ser mais do que estrutural, indo até os princípios fundadores, pautada pela noção de que o ser humano e a sociedade são co-gestores na preservação da vida, no país e no planeta.
Outro ponto é a simplificação, já que temos uma Carta muito extensa. E, por fim, lembro o que nos ensina o professor Eliyahu M. Goldratt, filósofo e pensador que desenvolveu a Teoria das Restrições. Segundo essa teoria, os padrões, as normas e as leis tendem a se tornar obsoletos. Por isso, a nova Carta deve conter uma cláusula de revisões futuras. Através do Instituto Histórico e Geográfico de São Paulo, lançamos a semente de uma idéia: fazer de 2007 um Ano Constitucionalista, aproveitando os 75 anos da Revolução de 1932.
NEY PRADO – Vamos começar com a ecologia. Creio que fomos longe demais, porque estamos colocando o primado da natureza acima do ser humano. Vejamos um exemplo: podemos parar o rodoanel porque meia dúzia de índios ou de árvores estão impedindo a construção? O Ministério Público – conheço bem seus membros – tem o compromisso que a Constituição lhe atribuiu de defender a sociedade. Em que termos? Na base dos princípios universais. Querem transformar a vida terrena em vida celeste. Não há possibilidade de criarmos um meio ambiente saudável no curto prazo. Temos que cumprir etapas. Ninguém é contra a ecologia, mas os exageros geram problemas para a sociedade como um todo.
Devemos preservar a dignidade humana. Mas não podemos, a pretexto dessa preservação, receber uma imposição de alguém que se arvora em detentor do conceito de dignidade humana. Precisamos de razoabilidade para que o direito tenha eficácia. A simplificação do direito é algo que todos preconizam, como também sua funcionalidade. Analiso os artigos da legislação, ou o direito de uma maneira geral, em função dos resultados.
MALCOLM – Concordo que há exageros, há "ecochatos", há defeitos. É uma lei defeituosa. Estou chamando a atenção, avocando um princípio mais elevado de preservação da vida. Ecologia vem de oîkos, casa. Se não preservarmos nosso habitat, que está ligado aos habitats animais e vegetais, vamos perecer.
CLÁUDIO ROBERTO CONTADOR – Professor Ney Prado, sua idéia é fazer uma espécie de lipoaspiração na Constituição? Mas penso que não basta isso, teremos de enxertar algumas coisas. E esse enxerto é preocupante. Nossos vizinhos Hugo Chávez, da Venezuela, Evo Morales, da Bolívia, e Néstor Kirchner, da Argentina, fizeram uma mudança constitucional, adequando a Carta a seus desejos. Corremos esse risco com Lula?
NEY PRADO – Penso que não. Todas as vezes que levantam uma suspeição em relação a Lula, tenho um argumento que considero fulminante, em seu favor. A melhor maneira de alterar um regime é mudar de maneira suave, suasória. Ele teve essa oportunidade na nomeação dos ministros para a Suprema Corte. Bastava escolher ministros de confiabilidade ideológica para mudar o regime, sem nenhum trabalho. E de todos os que estão lá, os seis nomeados por ele são da mais absoluta integridade, respeitadores do direito, indivíduos identificados com a nova ordem democrática brasileira. Então, ele não tem condições nem objetivas nem subjetivas para isso. O povo brasileiro talvez tenha dúvidas do que quer, mas tem certeza do que não quer. E não quer voltar a nenhum regime autoritário ou populista, mas caminhar em direção à democracia – uma democracia evolutiva e, ao mesmo tempo, qualitativa.
Precisamos colocar na cabeça que a democracia no Brasil não é um produto da história, é um momento histórico. As outras democracias consolidadas vêm da cultura para a organização. Nós criamos a organização independentemente da cultura. É por isso que essa dialética entre o regime e a cultura nos causa perplexidade e dúvidas quanto à legitimidade do regime, sua funcionalidade e até legalidade.
EDUARDO SILVA – Quero ouvir sua opinião sobre uma assembléia específica, eleita exclusivamente para fazer a revisão constitucional. Será que o produto dessa assembléia seria mais adequado do que o que temos hoje?
NEY PRADO – Max Weber fazia uma distinção muito importante entre ética individual, pessoal e de responsabilidade. Tenho muito medo da intelectualidade em proposta dessa natureza porque vivi o drama dos "notáveis". Se eles fossem, realmente, homens recomendados para elaborar uma Constituição...
MALCOLM – Eles precisam ser eleitos.
NEY PRADO – Mas essa é a proposta. O único problema nessa revisão é que o Congresso continuaria trabalhando simultaneamente, o que já aconteceu no passado. Deveria haver um hiato, mas o país não pode parar. Para eleger uma assembléia exclusiva, haverá resistência muito grande dos políticos, do Congresso Nacional propriamente dito. E talvez houvesse dificuldades para escolher os melhores representantes da sociedade. A outra opção é a assembléia convencional. Tudo é questão de viabilidade política.
MALCOLM – O senhor acha possível fazer uma eleição para escolher os delegados ou os deputados incumbidos dessa reforma?
NEY PRADO – Nesse ponto concordo com Ives Gandra da Silva Martins. Ele entende que os membros da Constituinte exclusiva teriam como matéria somente a revisão. E não haveria a possibilidade de essas pessoas, no futuro, ocuparem outro cargo público, pelo menos na legislatura seguinte. Tão logo aprovado o projeto, elas sairiam de cena, justamente para evitar o fisiologismo.
JANICE THEODORO – O senhor colocou a questão dos vícios de origem, de forma e de conteúdo, de maneira bastante sistemática. E se referiu à questão de a Constituição ser, por exemplo, provisória, realista, autêntica, legítima, impessoal. Estou partindo do princípio de que ela é feita por homens que, apesar de disporem da razão, não são animais absolutamente racionais, não conseguem encontrar sempre a perfeição. Sendo, todos eles, igualmente marcados por virtudes e vícios, o fato de ser provisória, não permanente, dá à Constituição a capacidade de se corrigir, já que as circunstâncias se alteram no tempo e no espaço. Com relação à legitimidade, o problema tem a mesma raiz. Quer dizer, uma Constituição deve ser legítima na medida em que exista uma população que saiba definir o que é bem comum, o que, evidentemente, sempre poderemos colocar em questão. E ela não pode ser autêntica porque não foi provida por uma entidade superior. Se existe um direito divino, uma lei eterna, não temos acesso a ela. Somos homens e discutimos possibilidades que podem estar marcadas pelo erro.
O que nos resta? Apenas o diálogo, o debate. Procurar mecanismos adequados para viabilizar a organização do homem. Sabendo que as normas que serão produzidas também conterão equívocos no tempo e no espaço. E deveremos encontrar meios de reelaborá-las. O admirável de uma Constituição é o fato de ser provisória e propor sempre a possibilidade do debate. Creio que os vícios de origem também são qualidades de origem.
NEY PRADO – Quando me referi ao permanente, no item 2º de Virtudes e Vícios da Constituição, eu disse que nas constituições verdadeiramente democráticas o texto é permanente. Na norte-americana há poucas emendas, se bem que eles têm um mecanismo diferente em que a Suprema Corte pode, a qualquer momento, adaptá-la à realidade.
Disse também que algumas virtudes se tornaram vícios. Um deles é a ecologia, pelo excesso. E afirmei que um defeito, que era a provisoriedade, tornou-se uma virtude. E como defendo a revisão constitucional, parto da premissa de que nenhuma Constituição é perfeita, principalmente quando é casuística. Quanto mais extensa é uma Carta, maior é a probabilidade de cometer excessos e equívocos. Assim, ela deve ser revista. A portuguesa já sofreu sua sétima revisão. Não há outra saída na democracia senão buscar o consenso, através do diálogo, da transigência, até às vezes do compromisso.
LENINA POMERANZ – Estamos falando em revisão constitucional, e ao mesmo tempo em permanência da lei.
NEY PRADO – Não falei isso, em nenhum momento. Falei na permanência da lei, que visaria às constituições que conhecemos nas democracias que se estabeleceram. Por exemplo, na França houve mudanças constitucionais muito expressivas, principalmente as produzidas por Charles de Gaulle. A lei não pode ser permanente porque regula a convivência social, que está submetida a variáveis no tempo. Então não acho que a Constituição e as leis devam ter caráter permanente. Se assim fosse estaríamos falando por gerações futuras. Não temos essa credencial.
LENINA – Esse não é o meu ponto. Quero saber o que distingue a lei regular, não constitucional, da Constituição. Se aceitamos revisões permanentes, continuadas da Carta, o que a distinguiria, como instrumento, das leis comuns?
Outra consideração: estamos num mundo em mudança, que deriva da natureza da inovação tecnológica, etc. Como fazer esse ajustamento numa sociedade que muda tão rapidamente?
NEY PRADO – Duas coisas importantes. A globalização de que tanto falamos, e que alguns censuram, na verdade não é causa, mas efeito de uma revolução tecnológica, principalmente no campo da informação. A globalização não tem culpa de nada. Se tivéssemos que culpar alguma coisa seria a própria tecnologia. Estamos vivendo essa transição, e os jovens estão pagando um preço alto porque estão perdendo o norte, o referencial...
LENINA – Estão perdendo o emprego.
NEY PRADO – ... sem falar no emprego. A outra coisa é a diferença entre direito e lei. Insistimos em ver o direito como lei, e a lei como fonte estatal. Precisamos resolver a questão através de direito privado, fundamentalmente, mas não acreditamos em nossa capacidade de solucionar os problemas através da ordem espontânea. Somos construtivistas, e achamos que podemos criar a história, se formos juristas, através das leis. Mas existem outros mecanismos. A ordem espontânea também produz resultados. O que o liberalismo propõe é deixar que a sociedade, através das peculiaridades de tempo e espaço, resolva os problemas que a afligem, e não atribuir essa função a indivíduos que estão fora da questão, em locais distantes, e que se arvoram em representantes legítimos e únicos de nosso desejo. Precisamos praticar mais a espontaneidade e resolver problemas independentemente do governo.
LENINA – Ainda não entendi a diferença entre Constituição e lei normativa.
NEY PRADO – Se modificarmos a Constituição, todas as leis inferiores deverão se adaptar. Mas existem mais de mil inconstitucionalidades com base na Carta atual porque cada estado federado tem a sua própria Constituição. E o documento estadual tem como referencial maior a Constituição federal. Na medida em que não há uma adequação entre a lei superior e a inferior, esta perde a eficácia.
LENINA – Daí é que surge a necessidade de a Constituição ter alguma vitaliciedade, ou algum período de permanência que fosse diferente do das leis comuns. Isso tem a ver com o que se discutiu aqui, de ajustar a Constituição à medida que a sociedade muda. E aí é que começam os problemas, que seriam as revisões constitucionais uma atrás da outra, quando sentimos que houve alguma mudança.
NEY PRADO – Por exemplo, Portugal foi obrigado a fazer a revisão porque teve de se adaptar à União Européia. A precedência cria a lei. Aqui não, está tudo regulado.
Vejam o exemplo da lei trabalhista, que é isonômica, de aplicação universal. Não importa se se trata de uma entidade beneficente do Acre ou de uma sociedade de fins lucrativos, ou da Volkswagen do Brasil, etc. Não interessa se o indivíduo é executivo de uma multinacional ou oleiro no Maranhão. A lei é a mesma para todos. Não pode funcionar. Por isso a lei não pode ser tão ampla e universal. Porque os casos são diversificados.
SAMUEL PFROMM NETTO – Expresso minha preocupação com uma revisão constitucional em meio a este quadro de cinismo público. Como nos situamos no panorama mundial das constituições dos países verdadeiramente civilizados?
Quero trazer a debate a lembrança de uma conversa que tive há tempos, neste mesmo Conselho, com Alfredo Cecílio Lopes. Ele comentava comigo a extrema importância da análise comparativa das constituições dos diferentes países, nações verdadeiramente livres, não totalitárias. Naquela ocasião Cecílio Lopes se referia, melancolicamente, ao fato de boa parte de nossos constitucionalistas passarem a impressão de estar alheios ao direito constitucional comparativo, atirando-se assim, com muito entusiasmo, à reinvenção da roda. Gostaria de saber seu pensamento sobre esse ponto. A experiência acumulada internacionalmente terá algum reflexo na revisão da Constituição brasileira?
NEY PRADO – Quais são os critérios de avaliação de uma Constituição? Acredito que deveríamos considerar primeiro a realidade brasileira como fonte geradora do direito, porque precisamos de uma Carta voltada para nossa sociedade. O grande desafio contemporâneo é que o Brasil não está isolado no mundo, estamos inseridos num processo de integração. E essa universalização não pode prescindir da importância do direito porque a convivência entre as nações vai depender de algum tipo de legislação.
E no passado, o que aconteceu? Rui Barbosa, com todos os méritos, foi um dos grandes imitadores, em termos constitucionais. Extremamente culto e conhecedor da realidade constitucional norte-americana, foi lá e reproduziu o texto. E não se conformou em ficar apenas no conteúdo. Imitou inclusive o título. A expressão, por exemplo, Estados Unidos do Brasil é cópia da Constituição norte-americana.
Estamos vivendo uma época em que as constituições precisam ser funcionais, e para isso devem atender os desejos da sociedade. Nossa cultura, no entanto, é difusa. Nos Estados Unidos, se pedirmos, em qualquer auditório, que definam o que é democracia, terão a mesma dificuldade que nós, mas com uma diferença: enquanto não sabemos bem o que significam as palavras e em qualquer ramo do saber ainda estamos na fase dos conceitos, eles estão na da funcionalidade do sistema.
A democracia tem esta vantagem: embora o povo, quantificado, possa cometer equívocos, inclusive comprometer a própria natureza do regime, ela ao mesmo tempo propicia o que outros regimes não oferecem: a alternância no poder. Mais do que colocar os melhores no poder, a democracia impede que os piores se eternizem no comando.
LUIZ GORNSTEIN – Tenho aqui um texto do deputado Delfim Netto que diz o seguinte: "A reeleição sem a necessidade de desincompatibilização num país sem controle social distorce o processo democrático. Para o benefício do processo democrático por eleições competitivas mais freqüentes, o primeiro compromisso que se deve exigir dos candidatos é seu engajamento na emenda constitucional que liquide de vez a mais trágica herança política da octaetéride fernandista, através da vergonhosa possibilidade de reeleição sem desincompatibilização". O senhor é a favor ou contra a reeleição?
NEY PRADO – Sempre tive admiração por Fernando Henrique Cardoso, mas não o perdôo pelo crime lesa-pátria que praticou ao defender e aprovar a reeleição. Para se reeleger ele segurou artificialmente o valor do câmbio e provocou o desastre a que assistimos. Sou profundamente contra a reeleição, mas favorável ao prolongamento do mandato, porque quatro anos é um prazo muito exíguo, cinco anos seria o razoável.
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