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Casa própria: tragédia anunciada

Déficit habitacional exige a adoção de medidas urgentes

ALBERTO MAWAKDIYE


Prédio em construção em São Paulo
Foto: Henrique Pita

Uma sombria advertência feita pela Organização das Nações Unidas (ONU) em 2005 continua a doer nos ouvidos das autoridades brasileiras da área habitacional. Num encontro internacional realizado em Nairóbi, no Quênia, país da África oriental, Anna Tibaijuka, diretora executiva do Habitat, o programa da ONU para habitação, disse que o número de favelados no mundo deve triplicar até 2050, chegando à casa de 3 bilhões de pessoas, caso não haja um significativo aumento dos investimentos públicos nesse setor.

Segundo afirmou a especialista na reunião – da qual participou o então titular do Ministério das Cidades, Olívio Dutra –, o número de favelados tinha aumentado em 50 milhões desde 2003, quantidade de gente que poderia ocupar uma favela duas vezes maior do que a região metropolitana de Tóquio.

Nem é preciso dizer quais foram os países apontados por Anna Tibaijuka como os mais ameaçados pelo crescimento da favelização, e daí o desconforto das autoridades brasileiras. Estão todos eles localizados na África, Ásia e América Latina, onde o Brasil ocupa uma constrangedora posição de destaque.

O país, que responde por parte considerável da produção industrial e agrícola do mundo (está entre as 15 maiores potências econômicas mundiais), também é responsável por uma boa fatia do déficit habitacional do planeta. Estima-se, por baixo, que faltem hoje no Brasil cerca de 7,2 milhões de moradias. O déficit era de cerca de 6,2 milhões dez anos atrás.

Tomando por base o clássico critério da ONU, que opera com um número médio de 5 moradores por habitação, calcula-se que hoje mais de 35 milhões de brasileiros – um quinto da população – podem ser automaticamente incluídos no trágico censo das Nações Unidas.

Parte considerável desse contingente reside em favelas. A população que mora nessas habitações improvisadas corresponde a 20% do total dos habitantes do Rio de Janeiro e de Belo Horizonte, 22% em São Paulo, 31% em Fortaleza e 46% no Recife. Em São Paulo, a maior cidade brasileira, onde vivem 11 milhões de pessoas, mais de 2 milhões estão nas favelas. Outro 1,5 milhão encontra-se em cortiços ou quintais.

Números ruins, sem dúvida, e isso apenas no tocante à falta de moradias adequadas. Pois o cenário torna-se ainda mais grave quando considerados outros indicadores ligados à habitação. Segundo o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), nada menos do que 34,2% dos municípios brasileiros não têm acesso a água potável, 17 milhões de pessoas vivem em domicílios superlotados e 35 milhões em residências sem tratamento de esgoto.

E o que é pior: trata-se de um problema que não pode ser resolvido fora do âmbito estatal. "Apenas 30% da população tem condições financeiras de procurar imóveis no mercado imobiliário privado", afirma Richard Moreton Treacher, diretor superintendente do Instituto de Orientação às Cooperativas Habitacionais de São Paulo (Inocoop). "O restante – famílias que ganham até 5 salários mínimos – depende de subsídios públicos para mudar para uma habitação digna." De acordo com Treacher, essas pessoas representam 92% do déficit habitacional do país.

Para eliminar essa carência, o país precisaria investir em habitação social cerca de R$ 40 bilhões entre 2007 e 2010, de acordo com uma projeção da Fundação Getúlio Vargas (FGV) – R$ 22,8 bilhões para zerar o déficit e R$ 17,9 bilhões em novas unidades para atender o crescimento vegetativo.

Trata-se de uma meta que o próprio governo considera difícil de alcançar. Nos últimos anos, o volume de investimentos em habitação social raramente ultrapassou R$ 5 bilhões anuais, por simples falta de recursos. Só que, nessa toada, de acordo com outra projeção da ONU, haverá em 2020 cerca de 55 milhões de brasileiros morando em favelas.

Crescimento

Como o Brasil pôde chegar a esta situação, eis uma pergunta que não é difícil responder. Para resumir a história, o país foi apenas deixando o déficit se ampliar. Os investimentos públicos em habitação nunca foram suficientes, ou feitos num ritmo compatível com o processo de crescimento acelerado da população urbana, principalmente a partir da década de 1960, e foram se tornando ainda menores à medida que o déficit avançava.

No final do governo militar (1964-85), por exemplo, o Banco Nacional da Habitação (BNH) contabilizava a construção de 4,3 milhões de moradias. O número era inferior à própria estimativa de déficit habitacional feita no início do regime, de 5 milhões de unidades.

A situação só pioraria desde então. A década de 1980 terminaria com uma média anual de 259 mil moradias financiadas pelo poder público, índice que cairia, ao longo da década de 1990, para 219 mil. "Atualmente, há uma flutuação em torno das 100 mil unidades por ano, o que é quase nada", critica o empresário Romeu Chap Chap, presidente do Sindicato da Habitação de São Paulo (Secovi-SP).

Enquanto isso, a população urbana jamais deixou de crescer – e aos saltos. O fluxo migratório do campo para a cidade no último meio século no Brasil – e a velocidade com que se deu – encontra poucos paralelos no mundo, lembrando em proporções mais modestas o que ocorre hoje na China, outro país que começa a sofrer os problemas do déficit habitacional urbano.

Entre as décadas de 1940 e 90, a taxa de população urbana brasileira passou de pouco mais de 25% para 80%. Apenas entre os anos 1960 e 90, houve um acréscimo de 85 milhões de habitantes nas cidades.

Foi nesse período que as metrópoles se multiplicaram pelo país. Entre 1950 e 1990, formaram-se 13 cidades com mais de 1 milhão de habitantes. Hoje, 12 regiões metropolitanas – com um total de mais de 200 cidades – e 37 grandes aglomerações urbanas concentram 47% da população brasileira.

Apenas nas regiões metropolitanas – as maiores são as de São Paulo e do Rio de Janeiro, no sudeste – vivem 34% da população. Não por acaso, é nelas que está o grosso do déficit habitacional. Na Grande São Paulo, por exemplo, faltam atualmente 600 mil moradias, numa estimativa conservadora. É mais do que o déficit de toda a região centro-oeste, que é de 400 mil habitações. Claro, essa espantosa concentração populacional teve uma razão: o acelerado processo de industrialização do país, que a partir dos anos 1950 atraiu os trabalhadores para as cidades sem lhes dar condições adequadas de alojamento e infra-estrutura.

"O déficit habitacional brasileiro tem razões estruturais óbvias", diz o arquiteto Luiz Recamán, professor da Escola de Engenharia de São Carlos, da Universidade de São Paulo (EESC-USP). "O Brasil não tinha capital ou escala de produção para criar um colar de cidades médias altamente industrializadas, como fizeram a Europa e os Estados Unidos. A industrialização ocorreu concomitantemente à criação das megacidades, como São Paulo, que viram surgir enormes periferias ocupadas por aqueles trabalhadores sem condições de se fixar nos bairros consolidados."

De acordo com Recamán, é nessa época que começam a se multiplicar os loteamentos clandestinos e as moradias erguidas à base de autoconstrução (muitas vezes precárias ou em locais perigosos ou inadequados) e, claro, também as favelas. É esse ainda o período de disseminação dos conjuntos habitacionais para os trabalhadores um pouco mais bem aquinhoados. Quase sempre imensos e de arquitetura monótona, e situados a uma grande distância das áreas centrais, eles foram uma marca distintiva da atuação do BNH, e continuam sendo ainda o formato preferido dos programas oficiais.

Benefícios

Obviamente, o processo de industrialização trouxe benefícios incomparáveis para o Brasil, apesar do alto preço pago pela população mais pobre principalmente em qualidade habitacional. Em pouco mais de 50 anos, o país deixou de ser uma economia agropastoril, ancorada na monocultura do café, para se enfileirar quase como um igual entre as nações industrializadas. Até a década de 1940, o Brasil não tinha uma única usina siderúrgica digna desse nome, e, no final dos anos 1950, nenhuma indústria automobilística.

Hoje, a siderurgia brasileira está entre as dez maiores do mundo, e o Brasil figura entre os principais exportadores de automóveis do planeta. Nos anos 1960 e 70, o país já abrigava em seu território todos os segmentos industriais existentes, do metalúrgico ao eletroeletrônico, do petroquímico ao aeronáutico, além de um complexo sistema financeiro e de serviços.

A industrialização não alterou apenas o portfólio produtivo do país. A urbanização compulsória que a acompanhou acabaria por modificar, quase que a toque de caixa, o modo de vida de vastos estratos da população. Novos hábitos de sociabilidade e consumo foram criados, e redefiniu-se o perfil da família com a entrada da mulher no mercado de trabalho, fazendo o crescimento populacional ir despencando até chegar aos 3,8% ao ano na década de 1970 e aos 2% de hoje, um padrão de países industrializados.

O analfabetismo foi reduzido até níveis próximos dos 10% (embora continue grande a porcentagem de semi-alfabetizados) e, bem ou mal, a educação, a saúde, a cultura e o entretenimento foram universalizados, enquanto serviços básicos para uma sociedade industrial, como eletricidade e telefonia, chegaram próximo disso.

Mais importante até, a compressão urbano-industrial dos anos 1950-70 acabaria, com o tempo, por sofrer um certo relaxamento, devido à própria expansão e diversificação das atividades fabris, com impacto positivo sobre a estrutura demográfica do país.

Um processo de descentralização industrial, perceptível a partir dos anos 1980, acabaria por estimular uma bem-vinda redução da migração interna, já em queda devido ao menor crescimento populacional. Desempenharia papel importante aí a chamada "guerra fiscal", com a qual estados do sul e do nordeste atraíram com benefícios fiscais centenas de empresas já instaladas principalmente em território paulista e fluminense. Várias cidades médias também se industrializaram, em especial em São Paulo e na região sul, e em alguns estados nordestinos como a Bahia e o Ceará.

"Na verdade, por conta desse novo cenário econômico e demográfico, a distribuição populacional brasileira, embora esteja ainda longe do equilíbrio, começa pelo menos a dar sinais de estabilização", explica o empresário João Claudio Robusti, presidente do Sindicato da Indústria da Construção Civil do Estado de São Paulo (SindusCon-SP). "As cidades apresentam hoje precondições muito mais favoráveis do que há 30 anos para receber políticas habitacionais consistentes. É quase um contra-senso que o déficit habitacional esteja aumentando, em vez de diminuir."

Para Robusti, as causas atuais dessa distorção seriam também institucionais, não apenas financeiras – estas, explicáveis, nos últimos 25 anos, pela recessão e inflação dos anos 1980 e 90 e pelo pequeno crescimento econômico verificado desde a década passada, nunca muito superior a 4% ao ano, que deixaram o governo quase sem recursos para investimentos em infra-estrutura. Os gastos com habitação em 1990, por exemplo, representaram apenas 22% dos registrados em 1980, e não mais aumentaram desde então.

De fato, as mudanças sociais e econômicas que transformariam o Brasil em um país significativamente melhor para a sua população – e cujo rito de passagem deu-se com a transferência do poder político para os civis, em 1985, depois de 21 anos de governos militares – também iriam, ironicamente, desfigurar o arcabouço institucional no qual estiveram inseridas, por décadas, as políticas habitacionais brasileiras, dificultando e tornando errática a aplicação das poucas verbas disponíveis para a área.

Necessidade

A ironia é que essa desfiguração foi quase fruto da necessidade. Para reverter o quadro de extrema centralização que vigorou durante o regime militar, o novo governo civil instituído em 1985, em uma espécie de ação reflexa, erigiu como um de seus pilares a concessão de maior poder e autonomia para os estados e municípios em praticamente todas as áreas estratégicas da administração pública. Um novo pacto federativo emergiu na Constituição de 1988, mas na verdade apenas para referendar, nesse caso, o que já vinha sendo feito na prática desde a posse de José Sarney, o primeiro presidente civil pós-1964.

Na área da habitação, essa política implicou a extinção do BNH, em julho de 1986, e a passagem de boa parte da responsabilidade pelo combate ao déficit habitacional para os estados e municípios. A mudança não se deu apenas no nível do planejamento. As verbas do Fundo de Garantia por Tempo de Serviço (FGTS), que sustentavam o grosso das ações do BNH, passaram a ser geridas pela Caixa Econômica Federal (CEF), banco estatal tornado desde então a grande caixa-forte da política habitacional brasileira.

O novo modelo ficou longe de alcançar os resultados almejados. "A conseqüência da descentralização foi que os programas se multiplicaram e os recursos minguaram", lembra Eduardo Lafraia, presidente do Instituto de Engenharia, sediado em São Paulo. "O próprio governo federal, cujas iniciativas deveriam servir como reforço das políticas locais, reproduziria o erro. Multiplicou também o número de programas e investiu pouco em todos eles."

Como conseqüência dessa política, faz tempo que é quase impossível levantar a quantidade de projetos habitacionais em vigor nas três esferas de governo, federal, estadual e municipal. Para se ter uma idéia, hoje, apenas na cidade de São Paulo, a Companhia de Desenvolvimento Habitacional e Urbano (CDHU), vinculada à Secretaria da Habitação do estado, mantém nada menos do que 40 programas, sem contar aqueles incluídos dentro de modalidades "alternativas".

A entropia atingiu o próprio cerne do poder federal. Depois da extinção do BNH, a área habitacional começou a "passear" pelos ministérios, sendo como que jogada de um escaninho para outro, às vezes em uma mesma gestão. Desde 1985, o setor esteve, por exemplo, sob a responsabilidade dos ministérios do Interior, do Desenvolvimento Urbano e Meio Ambiente, da Habitação, Urbanismo e Meio Ambiente, da Habitação e Bem-Estar Social, do Interior novamente, da Ação Social, outra vez do Bem-Estar Social, do Planejamento, até alojar-se em 2003 no Ministério das Cidades, onde se encontra até hoje, representado na Secretaria Nacional da Habitação.

"Tanta instabilidade comprova a dificuldade que o governo federal vem encontrando para dar um mínimo de amarração à política habitacional no país", diz o arquiteto Renato Cymbalista, do Instituto Pólis. "Embora a gestão do BNH tenha sido cheia de defeitos, e em alguns períodos até mesmo bastante ruim, não há dúvida que havia uma direção, que com a extinção do banco acabou por se perder."

Diga-se que, à época, pouca gente pensou que a decisão de extinguir o BNH acabaria sendo um tiro pela culatra. Pelo contrário, pareceu uma ótima idéia, e não apenas devido à necessidade de descentralizar a administração pública no novo período civil. Criado pelo marechal Castello Branco quase que imediatamente após a tomada do poder pelos militares, em 1964, o BNH, 20 anos depois, lembrava um homem entrevado, corroído por doenças e vícios e incapaz de fazer algo de útil.

O BNH não apenas tinha deixado de cumprir a promessa algo messiânica de dar uma casa própria para cada família brasileira – um argumento que os militares a princípio usaram para tentar ganhar a simpatia da classe trabalhadora – como havia afundado na ineficiência. Exemplo maior dos erros em que o banco incorreu, nada menos do que um terço das unidades entregues teve a classe média brasileira como destinatária – e não poucas vezes a classe média alta. Os programas, gradualmente, começaram a atender mais as demandas do clientelismo político do que as necessidades reais do combate ao déficit.

O gerenciamento financeiro também nunca foi dos melhores, levando o BNH a uma grande crise na primeira metade dos anos 1980. Emparedado pelos altos índices de inflação do período, o banco viu-se obrigado a reajustar as prestações em 190%, fazendo com que 53% dos mutuários deixassem instantaneamente de pagar suas parcelas. O BNH tornara-se impopular entre mutuários, construtoras e governos estaduais e municipais (que executavam os programas por ele financiados), e ainda virou uma dor de cabeça para a administração federal, que não sabia sequer como sanear as finanças da instituição.

"Financeirização"

A extinção do BNH também criaria um problema inesperado, que com o tempo se revelaria dramático. A decisão de enfeixar todos os recursos do FGTS na Caixa Econômica Federal acabaria por aprofundar uma tendência que já estava em pleno florescimento na época do velho banco habitacional – a participação cada vez maior da classe média nos programas públicos de financiamento.

Dessa vez não exatamente por clientelismo, mas pelas próprias características da CEF, que, ao contrário do BNH – uma instituição típica de fomento, que nem mesmo tratava diretamente com o público, papel desempenhado pelos órgãos que financiava –, é um banco nos moldes convencionais, em tese não subsidiado, e que tem de fechar as contas no final do mês.

Ou seja, tudo o que a CEF investir deve dar retorno em alguma medida, mesmo que em longo prazo (que na Caixa não pode ultrapassar 20 anos). A questão habitacional brasileira acabou, por assim dizer, "financeirizada", para azar de quem não pode ter acesso às cartas de crédito da instituição por insuficiência de renda.

Deve-se lembrar que a CEF não poderia fazer diferente, nem que quisesse. Para usar os recursos do FGTS nos programas habitacionais, a Caixa tem de pagar juros aos donos desse dinheiro, os trabalhadores (uma operação que na época do BNH era parcialmente subsidiada). Não haveria maiores problemas se o governo reforçasse o montante destinado à habitação com verbas do orçamento – o dinheiro do FGTS se tornaria, então, apenas uma opção de financiamento. No entanto, a participação orçamentária decresceu ano a ano, até quase se transformar em uma contribuição praticamente simbólica.

Os investimentos em programas habitacionais com recursos do FGTS em 2004 foram, por exemplo, de pouco mais de R$ 4 bilhões, ao passo que aqueles disponibilizados pelo Orçamento Geral da União – leia-se francamente subsidiados – alcançaram cerca de R$ 700 milhões. De qualquer modo, as conseqüências foram quase nulas, naquele ano, no que diz respeito ao combate ao déficit, já que, por causa da origem dos financiamentos, perto de 70% dos recursos federais usados para habitação atenderam faixas acima de cinco salários. A população abaixo desse patamar, que compõe o grosso do déficit, ficou a ver navios.

O cenário foi ainda mais sombrio em anos anteriores. Segundo auditoria do Tribunal de Contas da União (TCU), de 1997 até junho de 2003 apenas 12% da verba destinada pelo governo federal à habitação chegou às famílias com renda de até três salários mínimos, as mais depauperadas de todas, e que compõem 83% do déficit.

"A política habitacional brasileira é mais do que ineficiente. Chega a resvalar na perversidade", dispara Geraldo de Paula Eduardo, diretor executivo da Associação Paulista de Empresários de Obras Públicas (Apeop). "Na verdade, não atende ninguém, nem mesmo a classe média, que praticamente não tem programas oficiais voltados para ela, e é obrigada, em boa parte, a recorrer ao crédito privado. Só que os bancos também não financiam como deveriam essas faixas de renda, que hoje mal conseguem se mexer dentro do mercado."

De acordo com o diretor da Apeop, a indústria imobiliária também vem sendo penalizada. Por falta de programas públicos consistentes para as camadas de menor poder econômico, e de financiamentos privados para os estratos um pouco mais bem situados na pirâmide social, o setor teve de confinar-se às faixas de renda A e B, para as quais há tempos é voltada a maioria dos projetos imobiliários brasileiros. "São as únicas que podem garantir ao setor um mínimo retorno financeiro", justifica.

Enquanto isso, o déficit continua a crescer.

 


Estímulos não faltam para a autoconstrução

Tida por engenheiros e urbanistas como um subproduto nocivo da falta de investimentos públicos em habitação social – pela precariedade quase geral das edificações e por certo caos urbanístico que estas costumam provocar nas cidades –, a construção informal, ou autoconstrução, ganhou um inesperado aliado no governo do presidente Luiz Inácio Lula da Silva e em várias administrações estaduais.

A maior oferta de crédito para a compra de materiais de construção, por meio de programas da Caixa Econômica Federal, com recursos do FGTS, fez disparar o movimento nas lojas e multiplicar a quantidade de casas construídas em autogestão, principalmente na periferia das grandes metrópoles. Hoje, cerca de 40% das vendas de itens de construção no país são feitas em parcelas. Acredita-se que a participação da autogestão na indústria de construção civil, já extremamente alta – por volta de 70% –, deva, por isso, aumentar ainda mais.

Outro estímulo também veio da redução – e até eliminação – da alíquota do Imposto sobre Produtos Industrializados (IPI) de certos componentes básicos de construção. Alguns governos estaduais, como os de Santa Catarina, São Paulo e Paraná, foram pelo mesmo caminho e diminuíram o Imposto sobre Circulação de Mercadorias e Serviços (ICMS) de diversos materiais.

A própria indústria está estimulando indiretamente a autoconstrução, com o lançamento de uma quantidade crescente de itens pré-fabricados cada vez mais baratos, por causa do aumento da escala de produção.

Em muitos canteiros informais, as pessoas têm usado, por exemplo, para a implantação de pilares e vigas, aço pré-cortado, pré-dobrado e pré-montado – que a princípio só era empregado, no Brasil, na construção de edifícios comerciais e industriais.

"O problema é que o construtor informal, ou mesmo seu pedreiro de confiança, quase nunca sabe mexer com esses materiais, cuja aplicação exige um mínimo de projeto", adverte o engenheiro Ubiraci Lemes de Souza, professor da Escola Politécnica da Universidade de São Paulo (Poli-USP). "A obra pode ficar não apenas ruim, mas insegura do ponto de vista construtivo."

 


 

Sobre os restos do BNH, um programa alternativo

Tentativas de remontar um plano de habitação abrangente, dotado de um sistema de financiamento menos leonino, foram feitas desde o começo da década de 1990. Apenas no ano passado, no entanto, foi finalmente colocado de pé algo próximo dos tempos do BNH.

Batizado justamente de Política Nacional de Habitação (PNH), o programa começou a ser formulado ainda durante o governo Fernando Henrique Cardoso (1995-2002) e, com modificações, acabou consubstanciado pelo atual Ministério das Cidades no Sistema Nacional de Habitação de Interesse Social (SNHIS).

A idéia do SNHIS, que claramente aproveita os restos conceituais do velho BNH, é articular em nível federal os programas habitacionais mais relevantes existentes no país para contemplar principalmente as faixas de renda de até cinco salários mínimos.

De acordo com o plano, o dinheiro viria do novo Fundo Nacional de Habitação de Interesse Social (FNHIS), composto de verbas orçamentárias reforçadas com recursos do FGTS e de fundos sócio-habitacionais já existentes. Caberá ao Conselho das Cidades, fórum integrado por representantes do governo, empresariado e entidades de moradores, administrar essas verbas e definir sua destinação.

O programa prevê também o estabelecimento de fundos similares nos estados e municípios, de modo a criar no nível financeiro a desejada articulação do planejamento habitacional entre a União, estados e municípios. Várias cidades brasileiras, como São Paulo, já contam com esses fundos e seus respectivos conselhos.

"Na verdade, trata-se de um modelo muito mais federativo do que o do BNH", afirma Inês Magalhães, secretária nacional de Habitação do Ministério das Cidades. "Ele terá mais fontes de recursos e uma gestão mais descentralizada e participativa, que impedirá os erros de enfoque que condenaram o banco à ineficiência no combate ao déficit."

Crédito

A idéia é também tirar a classe média dos programas públicos e empurrá-la de maneira decidida para o mercado privado. Diversas medidas para facilitar o crédito imobiliário (e dar maiores garantias aos bancos e às incorporadoras) já foram, inclusive, adotadas de dois anos para cá, a última delas dentro de um pacote baixado pelo governo no último mês de setembro.

Aparentemente, essas medidas estão dando resultados. A expectativa é que até o final deste ano sejam financiadas, pelo Sistema Brasileiro de Poupança e Empréstimo (SBPE), no qual estão os bancos privados, 80 mil unidades voltadas para a classe média.

Seria uma soberba recuperação. A média anual de moradias financiadas pelo SBPE no começo dos anos 2000 foi de 40 mil unidades. No início dos anos 1980, essa média era de 270 mil, e no começo da década de 1990, de 50 mil.

A mudança em relação ao BNH também se dará no nível dos projetos. A prioridade dos financiamentos não estará mais unicamente na construção de conjuntos habitacionais, mas também na urbanização de favelas, no reaproveitamento de áreas degradadas, na regularização de lotes com posterior urbanização, nos programas de mutirão e assim por diante.

Aliás, as primeiras ações concretas da PNH, desenvolvidas este ano, tiveram esse enfoque. Perto de R$ 900 milhões foram empregados na urbanização de favelas localizadas em áreas de palafitas em capitais do norte e do nordeste do país, e na Baixada Santista, em São Paulo.

Se a PNH irá ou não decolar é outra história, mas o fato é que a estratégia do programa parece ir ao encontro de políticas habitacionais que foram desenvolvidas, principalmente pelas grandes cidades, depois do curto período de otimismo que se seguiu à extinção do BNH, e assim pelo menos poderá reforçá-las.

Na verdade, do ponto de vista qualitativo, o período entre 1986 – o ano da extinção do BHN – e os dias de hoje não pode, nem de longe, ser considerado "perdido" em termos de política habitacional, embora tenha deixado muito a desejar do ponto de vista quantitativo, já que o déficit habitacional disparou. A transferência do grosso da responsabilidade pelo combate ao déficit para os estados e municípios fez o Brasil transformar-se, bem ou mal, em uma espécie de "laboratório" para diferentes experiências na área habitacional, fosse por necessidade de adaptar os programas aos recursos disponíveis, fosse pela adoção em maior escala de conceitos mais modernos de habitação social.

No bojo de todos esses programas, havia a necessidade não só de usar os recursos de maneira mais racional, mas também de contornar outro problema que se tornaria cada vez mais grave: o preço proibitivo dos terrenos nas grandes cidades e mesmo a escassez de áreas destinadas a finalidades habitacionais.

Os programas desenvolvidos desde 1986 mostraram que os projetos destinados às faixas de menor renda não precisam se traduzir necessariamente na construção dos tradicionais conjuntos habitacionais, modalidade mais cara e que sempre predominou no Brasil.

Eles não deixaram de ser construídos, é claro, principalmente pelos governos estaduais nas cidades do interior. E mesmo as administrações de grandes cidades mais tolhidas pela falta de recursos continuaram (e continuam) a erguer novas moradias. No entanto, a reciclagem de áreas já ocupadas por populações de baixa renda – muitas vezes com recursos provenientes de organismos internacionais – deu a tônica à política habitacional da maioria das prefeituras das metrópoles brasileiras de 15 anos para cá.

A cidade brasileira que investiu com mais energia nessas modalidades alternativas de política habitacional foi, sem dúvida, o Rio de Janeiro. Por conta de seu especialíssimo histórico de ocupação urbana – mais de 1 milhão de cariocas moram em favelas implantadas nos morros da orla marítima, exatamente atrás e acima dos bairros afluentes da zona sul –, a prefeitura local não encontrou outra maneira de tratar a questão habitacional senão tentando integrar as favelas à "cidade formal".

Programas como o Favela Bairro, criado em 1994, visam dotar as favelas de infra-estrutura urbana, serviços, equipamentos públicos e tratamento ambiental. O programa é abrangente – já atendeu cerca de 560 mil moradores em 143 comunidades – e o seu alto custo, US$ 600 milhões, vem sendo financiado pelo Banco Interamericano de Desenvolvimento (BID). Entre as favelas beneficiadas, estão as do Morro da Chacrinha, Lins de Vasconcelos, Rio das Pedras e Jacarezinho. Há ainda modalidades de "Favela Bairro" para comunidades de tamanho menor, como o programa Bairrinho.

Considerada tão importante como a urbanização – que no Rio inclui o registro topográfico das favelas, cujas áreas há dez anos ainda apareciam em branco nos mapas municipais –, a integração social e cultural dos moradores à cidade formal é prioridade do Favela Bairro. Embora tenha esbarrado na violência endêmica do Rio de Janeiro, provocada principalmente pelo tráfico de drogas, esse esforço já serviu para dotar as favelas de uma inegável aura de autenticidade cultural e até de atração turística.

"Na verdade, o que pretendemos é quebrar as barreiras que existem entre as favelas e os bairros ditos consolidados", resume o secretário da área da habitação da prefeitura carioca, Luiz Humberto Côrtes. "Política habitacional não pode ser considerada apenas a construção de casas, mas também a da cidade enquanto espaço urbano e de convivência."

Geografia

A tentativa de integração sociocultural-urbana também tem pautado os programas de urbanização de favelas de outras cidades brasileiras, mas com êxito e intensidade menor, justamente devido à razão pela qual ela vem sendo bem-sucedida no Rio de Janeiro: a localização geográfica.

Em São Paulo, por exemplo, as favelas ficam como que "escondidas" em distantes periferias ou em áreas mais centrais consideradas não aproveitáveis pela especulação imobiliária, como beiras de córregos. Mesmo assim, algumas grandes favelas paulistanas, como a de Heliópolis, já receberam benefícios semelhantes às de suas congêneres cariocas.

Foi em São Paulo, aliás, desenvolvido o modelo mais curioso de urbanização de favelas, nos anos 1990. Idealizado na gestão do então prefeito Paulo Maluf, o chamado Projeto Cingapura verticalizou algumas favelas com a construção de pequenos edifícios residenciais, destinados aos antigos moradores dos barracos. Muito caro, o programa não foi levado adiante pelas gestões paulistanas seguintes.

São Paulo fez ainda pequenas experiências com o chamado "aluguel social", modalidade bastante empregada, por exemplo, na Europa – a França conseguiu praticamente zerar o seu déficit habitacional nos dez anos seguintes ao final da 2ª Guerra Mundial (1939-45) graças a esse mecanismo.

Outras cidades também fizeram experiências nessa direção, ajudando a reverter uma estranha distorção do sistema habitacional brasileiro. O percentual de casas alugadas no total de domicílios do país é bem menor do que geralmente se imagina, perfazendo apenas 15%.

Porto Alegre – que apesar dos bons indicadores sociais ainda tem em seu território algumas centenas de cortiços e favelas – é outra metrópole que investiu firme na reciclagem urbana. Um dos programas mais bem-sucedidos da prefeitura local é o Entrada da Cidade, que prevê a reurbanização de 24 áreas na zona norte da capital gaúcha. O projeto inclui também a construção de novas moradias.

Como no caso do Favela Bairro, do Rio de Janeiro, parte da verba do Entrada da Cidade é originária de instituições internacionais: US$ 27,5 milhões virão do Fundo Financeiro para o Desenvolvimento da Bacia do Prata (Fonplata), e US$ 37,5 milhões serão liberados como contrapartida pela prefeitura porto-alegrense. "Ao todo, serão beneficiadas 3.775 famílias", revela o diretor-geral do Departamento Municipal de Habitação (Demhab), Nelcir Tessaro.

Praticamente em todos os projetos de reurbanização o trabalho tem sido precedido por um intenso processo de regularização fundiária, sem o qual ele seria inviável. As habitações "clandestinas", conseqüência desastrosa da ocupação desordenada das cidades, são milhões em todo o país, embora predominem nas grandes metrópoles.

De acordo com os últimos levantamentos oficiais, dos 4,4 milhões de moradias erguidas no Brasil entre 1995 e 1999, apenas 700 mil foram feitas dentro do mercado, ou seja, tiveram a planta aprovada na prefeitura. "Tirar todos esses brasileiros da informalidade habitacional é outro desafio que teremos de enfrentar sem meias medidas daqui para a frente", afirma Carlos Henrique Cardoso Medeiros, secretário adjunto de Habitação de Belo Horizonte.

Um dos programas em que o Ministério das Cidades, assim como as grandes metrópoles, mais apostam suas fichas prevê o uso de imóveis abandonados como arma de combate ao déficit. Estima-se que haja 5 milhões de moradias vagas no Brasil, cerca de 400 mil apenas na cidade de São Paulo – a maioria delas em áreas centrais e consolidadas. No Rio de Janeiro e no Recife, os domicílios vagos chegam a 18% do total.

"É uma quantidade que daria para suprir mais de 70% do déficit habitacional brasileiro", diz a arquiteta Raquel Rolnik, secretária nacional de Programas Urbanos do Ministério das Cidades. "Obviamente, nem todos esses edifícios poderão ser utilizados como habitação social, por causa de empecilhos jurídicos ou funcionais. Mas certamente boa parte deles poderia ser convertida para essa finalidade."

Ainda embrionária, a tentativa de devolver os imóveis fechados às cidades está começando, segundo Raquel, pelos edifícios vagos do próprio governo federal. Oito prédios vazios do Instituto Nacional do Seguro Social (INSS) localizados em São Paulo já estão garantidos no programa, e, na seqüência, poderão ser incluídos alguns edifícios pertencentes à extinta Rede Ferroviária Federal (RFFSA).

Outras localidades também já começaram a desenvolver programas com esse enfoque, como Rio de Janeiro e Recife. Nesta última, a ênfase na reutilização dos domicílios fechados está centrada no projeto Morar no Centro e em reformas pontuais de edifícios vazios espalhados pela cidade. "É grande no Recife a quantidade de construções ociosas, como nos bairros de Santo Amaro, São José e Santo Antônio", informa o secretário municipal de Habitação, Carlos Padilha.

 

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