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Fragilidades institucionais
Reforma política ou descrédito total
SÉRGIO F. QUINTELLA
Sérgio F. Quintella / Foto: Nicola Labate
O engenheiro e economista Sérgio Quintella, vice-presidente da Fundação Getúlio Vargas, esteve presente no dia 8 de junho de 2006 no Conselho de Economia, Sociologia e Política da Federação do Comércio do Estado de São Paulo, onde proferiu uma palestra a respeito do panorama político brasileiro. Reproduzimos abaixo sua exposição e o debate que se seguiu a ela.
Cheguei a pensar, quando fui convidado para esta palestra, que falar de política tinha saído de moda, e não seria necessário tratar desse assunto porque a população tinha, de certa forma, se cansado de um longo período de exposição das mazelas, seja do Poder Executivo, seja do Legislativo brasileiros. Mas o episódio grotesco da depredação do Congresso, liderada pelo coordenador-geral do MLST [Movimento de Libertação dos Sem-Terra], Bruno Maranhão, e outros tantos eventos a que assistimos durante um ano, como a crise do mensalão, que paralisou o Congresso e o governo federal, me fizeram mudar de idéia.
Na verdade, iniciada com as denúncias de que deputados federais recebiam pagamentos mensais do Partido dos Trabalhadores [PT], a crise política atingiu o ministro-chefe da Casa Civil, o titular da Fazenda, toda a cúpula do PT, presidentes e diretores de estatais. Parece não haver dúvidas, com base nos depoimentos feitos nas três diferentes comissões parlamentares de inquérito instaladas no Congresso e nas conclusões do Ministério Público Federal, que de fato parlamentares de vários partidos receberam, por indicação do PT, vultosas somas em dinheiro. Até o momento não está totalmente claro de onde provieram esses recursos, se de contratos superfaturados de serviços não prestados, de manipulação de títulos públicos e privados nas bolsas de valores ou ainda, muito mais sério, se de fontes externas, envolvendo até mesmo graves riscos à segurança nacional. Até o momento não houve punição de nenhum agente político ou de pessoas físicas e jurídicas que tenham participado desse enorme e abrangente esquema de desvio de recursos públicos.
A questão é se há ligação entre esses fatos. São casos isolados aqueles a que assistimos nessa relação estranha entre setores do setor privado e do Executivo, e a invasão que ocorreu no Congresso? Creio que tão importante quanto deslindar esses crimes e punir os culpados deve ser o entendimento das causas. É o que pretendo fazer nesta troca de idéias.
O sociólogo e fundador do PT César Benjamin, que hoje é candidato a vice da senadora Heloísa Helena, num artigo muito interessante assinala: "Mais uma vez reaparece a idéia de refundar o partido para que retorne a seu estado original de pureza, como se existissem apenas pontos de partida e de chegada, e não processos". É uma análise muito interessante, porque o novo presidente do PT, Ricardo Berzoini, e o atual ministro-chefe das Relações Institucionais, Tarso Genro, falam justamente em refundar o partido. Diz César Benjamin: "O caso do PT, por ser recente, é ainda mais claro. Os malfeitos que têm vindo à luz não começaram agora nem decorrem de equívocos individuais. O objetivo era criar uma rede sistêmica, planejada, coletivamente organizada. O passo seguinte, depois da anunciada reforma sindical, viria com a transformação das centrais sindicais em entidades financeiramente poderosas, capazes de gerenciar bancos, planos de saúde privados e planos de pensão. Estaria instalado não mais o sindicalismo de resultados, mas o sindicalismo de negócios". São afirmações textuais de um dos fundadores do PT.
Em oposição a esses conceitos, teses e constatações, Tarso Genro apresenta seus argumentos para explicar as origens da crise e do comportamento, classificado por ele como desastrado e imprudente, dos dirigentes que o antecederam na direção partidária. Lembremos que, quando ocorreu o desastre da cúpula do PT, o ex-deputado José Genoíno foi substituído na presidência do partido por Tarso Genro, que não resistiu no cargo senão 60 dias, já que suas idéias se confrontavam diretamente com as da direção do PT.
O ministro Tarso Genro, de todos os petistas que conheço, é aquele que tem idéias muito nítidas, muito claras sobre a visão do Brasil que deseja. Com a erudição e a formação ideológica que caracterizam seu pensamento político, assim se expressa em documento chamado "O PT, Ele Mesmo, como Crise": "A origem da crise que sacode o PT é histórica e estrutural, ela repousa fundamentalmente no fato de que a história tanto desconstituiu as experiências socialistas, estatistas, dirigistas e sem democracia, no caso regimes soviéticos, como constrangeu em termos conceituais e programáticos o desenho de uma nova utopia democrática". Vejam que construção interessante do ministro Tarso Genro: "À esquerda nada foi colocado, o PT, enquanto instituição, foi apanhado nesse vazio de paradigmas e, a despeito de as acusações serem pontuais contra alguns de nossos dirigentes, o abalo ético é visível em todos os nossos postos". Como se vê, em sua opinião a crise do partido não decorre de um articulado, ainda que incompetentemente executado, projeto de poder baseado na cooptação pela via da corrupção de agentes políticos e pela inserção na máquina pública de milhares de sindicalistas. A visão do ministro é a que acabei de mostrar. A crise seria conseqüência de um mal resolvido, ou não resolvido, dilema de natureza ideológica, e não de um projeto político de longo prazo como alguns crêem (e eu sou um dos que acreditam) estava em curso no país.
O Partido dos Trabalhadores nasceu em São Paulo numa reunião de intelectuais, setores progressistas da Igreja Católica e sindicalistas. Sua gênese foi a busca, pela vertente sindical, da melhoria das condições dos trabalhadores. O discurso, eminentemente ético, essencialmente moralista. A cultura, uma mistura de conceitos marxistas, ora sob a influência de Lênin, ora de Trótski e mais recentemente do sociólogo italiano Antonio Gramsci. A prática da direção do partido, até a saída de José Genoíno e José Dirceu, era de cunho stalinista. Dividido em alas, tendências e grupos que se mantiveram unidos enquanto buscavam o poder, o PT esteve durante pelo menos dez anos sob o comando centralizador e autoritário do denominado campo majoritário. Aliás, é curioso, rigorosamente essa palavra significa bolchevique, em tradução para o português. Quando deram o nome de campo majoritário, estava embutido na idéia o conceito original de bolchevique, como se vê no dicionário Aurélio.
Tive oportunidade de ler um livro notável de prática revolucionária, escrito em 1902 por Lênin, em exílio na Sibéria. É uma obra interessantíssima. Ensinava a forma pela qual devia se desenvolver o processo de ocupação do poder na Rússia czarista. Vejam como este trecho é interessante para o quadro em que vivemos hoje: "É preciso ter homens nossos em toda parte, em todas as posições do mecanismo estatal. Mas nosso militante ideal não é um dirigente sindical, já que esse apenas ajuda na luta econômica contra os patrões e o governo. Não é ele um verdadeiro socialdemocrata". Os comunistas da época, antes de assumir esse nome, se chamavam socialdemocratas. "Não é ele um verdadeiro socialdemocrata, na medida em que a energia da luta sindical é a busca apenas de vantagens imediatas." Continua Lênin: "É comum a crença de que a classe trabalhadora tende ao socialismo. Não é verdade. Na realidade, a força com que a ideologia burguesa se impõe sobre a classe é muito maior que a exercida pela socialista".
César Benjamin, o sociólogo marxista já citado, diz que estamos "diante de um fenômeno novo em nossa história". Ele tem várias dimensões. Uma delas é a introdução na esquerda brasileira daquilo que Marx chamava, em outro contexto, de poder dissolvente do dinheiro. A hegemonia obtida pela articulação, isto é, pelo campo majoritário no PT, não pode ser dissociada, diz ele, do uso sistemático dessa nova e poderosa arma. Ela acaba destruindo sonhos coletivos, torna desnecessária a batalha das idéias, transforma a militância em estorvo diante da docilidade dos cabos eleitorais remunerados e termina por engolir seus próprios executores.
Proféticas e sábias palavras, a meu ver, as de Lênin sobre a força da ideologia burguesa, que talvez não tenham sido lidas ou não foram compreendidas, e por isso delas não resultou nenhuma ação que poderia ter evitado a crise política que a nação vem atravessando, inclusive nesta fase pré-eleitoral e com possíveis conseqüências para o próximo mandato presidencial.
O jornalista Merval Pereira, que tem uma coluna diária de muita profundidade analítica na área política no jornal "O Globo", lembra que uma verdadeira república sindicalista foi sendo moldada à medida que decisões ampliaram o espaço de atuação e revitalizaram as finanças do sistema sindical brasileiro. O governo autorizou os sindicatos a criar cooperativas de crédito, que poderão funcionar como bancos, e planos de previdência complementar, conclusão também de César Benjamin. Na verdade, o processo de indicação de lideranças sindicais para a ocupação de cargos comissionados no governo federal, nas autarquias, nas sociedades de economia mista e empresas governamentais é muito extenso. São milhares de pessoas que ocupam posições-chave nessas instituições.
Creio que as evidências decorrentes de todo esse emaranhado de denúncias, confirmações e depoimentos levam à conclusão de que um projeto de poder de longa duração estava sendo montado. Permito-me fazer uma crítica a nós próprios, empresários, já que alguns entraram nesse processo. De um lado, o governo apoiava-se em parte importante do empresariado brasileiro e de investidores internacionais, pela via da adoção de políticas prudentes na administração financeira, do estímulo à produção agropecuária e dos incentivos às exportações. De outro lado, acolhia no seu seio os chamados movimentos sociais e os financiava, direta ou indiretamente.
A leitura de Gramsci parece ter exercido influência em inúmeros políticos e ativistas brasileiros de formação marxista, sobretudo na fase pós-queda do Muro de Berlim e derrocada do modelo soviético. Escrevendo durante as grandes crises que assolaram a Europa nos anos 20 e 30 do século passado, Gramsci intuiu que as práticas revolucionárias de Lênin somente seriam adequadas às chamadas sociedades do tipo oriental, onde ele incluía então a Rússia czarista. Para as do tipo ocidental, novos métodos deveriam ser adotados para ao final atingir o mesmo fim, uma sociedade pura, sem classes e sem Estado. O Brasil neste início do século XXI, já com uma economia diversificada e expressiva, estaria enquadrado nesse tipo de sociedade ocidental e por isso novas táticas, novos processos deveriam ser seguidos. De acordo com a concepção de Gramsci, a guerra de movimento que levou os bolcheviques ao poder em 1917 aqui deveria ser substituída pela guerra de posição, necessariamente longa e prolongada, admitindo-se nessa fase até mesmo a aliança com partidos adversários em certas circunstâncias. Tudo indica ter sido esse o projeto que estava sendo perseguido, embora executado de forma canhestra e incompetente. Foi assim que se buscou o controle da cultura, em seguida dos meios de comunicação e por fim do sistema universitário, as três tentativas abortadas pelo repúdio da sociedade civil.
De tudo isso, que lições podem ser tiradas, em particular sobre as nossas instituições políticas? Em palestra proferida na Confederação Nacional do Comércio em dezembro de 2004 tive ocasião de abordar, ainda que de forma sucinta, a situação político-partidária do Brasil. À época assim me manifestei: é fundamental para a democracia, não como a definida por Gramsci, mas como a desejavam Joaquim Nabuco, Rui Barbosa e Thomas Jefferson, que se identifiquem as verdadeiras causas da deterioração do ambiente político, para que, após sua remoção, possam as necessárias reformas levar ao convívio estável de formas plurais de representação. Estou convencido de que o sistema político-eleitoral brasileiro está na origem da corrupção pelo lado da demanda, para usar a expressão típica do sistema de mercado. A oferta vem dos provedores de meios, dos governos, quando o objetivo é eternizar-se no poder, e de setores do empresariado, quando buscam o enriquecimento ilícito. De fato, desse sistema atual resulta o elevadíssimo custo das campanhas eleitorais para os parlamentos nos três níveis, municipal, estadual e federal, e a total dissociação entre o eleito e sua legenda e respectivas propostas. A eleição proporcional em lista aberta para deputados estaduais e federais, por exemplo, obriga o candidato a buscar voto em todo o estado, tendo como principais competidores não seus adversários, mas os companheiros de partido. Em São Paulo, isso significa que o eleitorado a ser atingido pelo candidato a deputado é de 26 milhões de pessoas, não lhe bastando para ser eleito o público de sua cidade ou região, suas idéias ou projetos, mas a capacidade de mobilizar recursos para atingir o vasto e diversificado eleitorado de todo o estado. Há quem afirme que os recursos a ser conseguidos para as próximas campanhas para deputado federal ou estadual ascendam a cifras milionárias, somente compatíveis com a utilização de fundos de origem e intenções não republicanas, para usar uma expressão que ficou na moda quando o deputado Roberto Jefferson fez as acusações na Câmara.
A propósito de nosso sistema político, como engenheiro ocorre-me fazer referência a um documento preparado pelo senador Marco Maciel, que dizia: ao contrário do que ocorre na física, cuja característica é o equilíbrio, no campo social a estabilidade dos sistemas, pela sua complexidade, não é permanente. São sistemas entrópicos em que o agravamento dos desequilíbrios leva a desajustamentos e crises. Isso obriga a distinguir quais são as variáveis condicionantes e quais as condicionadas.
A representação no Congresso deve cumprir simultaneamente duas funções. A primeira, materializar representatividade, isto é, dar voz, voto e expressão política às diferentes correntes ideológicas, doutrinárias ou programáticas existentes na sociedade por intermédio dos partidos, atendendo-se assim um dos requisitos essenciais da democracia, que é o pluralismo político. A outra função, tão relevante quanto a primeira, é assegurar a governabilidade, a possibilidade de o governo tornar efetivas suas decisões imperativas.
Na verdade, a meu ver, no Brasil de hoje nenhuma das duas finalidades consegue ser atingida. Não há representatividade nem tranqüilidade para a governabilidade, e não haverá enquanto operarmos no sistema político-partidário em que vivemos.
Apenas como referência, busquei examinar os modelos políticos existentes no mundo e compará-los com o nosso. Encontrei 150 diferentes, frutos da cultura, da história, da demografia, da geografia, das etnias. A marca é a diversidade, existe tudo o que se possa imaginar. Na Austrália há o voto alternativo, em que o eleitor escolhe um candidato preferencial mas assinala outros, de cujo cotejo pode sair o vencedor. Em Israel vigora o voto de legenda em lista fechada, mas o primeiro-ministro é escolhido diretamente pelo povo e não pelo partido. A Índia, em função de suas diferenças sociais, destina 22% das cadeiras para algumas castas e etnias, uma espécie de cota reservada. A França, que inventou o sistema proporcional pela pena de Mirabeau em 1789, trocou-o pelo majoritário, mas guarda a singularidade de realizar a eleição dos 577 deputados da Assembléia em dois turnos. Estados Unidos e Reino Unido usam um sistema majoritário de maioria simples, no caso distrital, enquanto Alemanha, Itália e México adotam o misto. O sistema brasileiro proporcional de lista aberta vige exclusivamente em países de pequenas populações e eleitorado, como é o caso da Áustria, Bélgica, Costa Rica, Dinamarca, Finlândia, Grécia, Holanda, Noruega, Portugal, Suécia e Uruguai. Nós copiamos ou introduzimos um sistema que não é aplicável em nenhum país das dimensões, sejam territoriais, sejam demográficas, do Brasil, e reproduzimos modelos que estão vigendo com êxito em países de pequenas dimensões geográficas e eleitorais.
A questão é examinar, no caso brasileiro – excluídas do debate a forma de Estado, se unitário ou federativo, e a forma de governo, se monarquia ou república –, se o sistema eleitoral que mais nos convém nas eleições para os parlamentos é o proporcional, de lista aberta ou fechada, ou o majoritário. E em seguida quais as práticas e processos que num e noutro atinjam o máximo, simultaneamente, de representatividade e governabilidade.
Os últimos 50 anos produziram no país enormes e profundas modificações. Passamos de uma sociedade rural para outra eminentemente urbana, saímos de uma estrutura de produção agrícola e industrial simples e atrasada para outra mais sofisticada, mais aberta e mais competitiva. Evoluímos de uma população desinformada e de alto grau de analfabetismo para outra com acesso instantâneo à informação e ao debate, inclusive pela mídia eletrônica. Não obstante, estruturas de representação política absolutamente incompatíveis com esse novo país permanecem imunes às mudanças que vêm alterando para melhor a sociedade brasileira. O país está numa encruzilhada: ou encontra, dentro do regime aberto e democrático que se deseja construir e consolidar, a resposta aos desafios das reformas – e elas são muitas, no campo tributário, educacional, sindical, do Judiciário e aquela que a meu ver é absolutamente prioritária, que é a reforma política –, ou o dinamismo da economia brasileira será inexoravelmente atingido pelo descrédito e pela incerteza.
Não será possível conviver a médio e longo prazo com instituições políticas fragilizadas, de um lado, e de outro com a necessidade de um ambiente propício aos investimentos privados, fonte principal da geração de renda e redução das desigualdades sociais que a todos afligem. A crise política institucional por que vem passando o país parece ser um momento para tirar lições, e também motivo e razão para buscar respostas e soluções duradouras.
Debate
NEY LIMA FIGUEIREDO – O presidente Lula sofreu ataque frontal da mídia durante um longo período, desde julho de 2005. A revista "Veja" chegou a pedir seu afastamento. Na mesma linha seguiram todos os outros jornais, e a Rede Globo em determinado momento, quando o deputado Roberto Jefferson disse que José Dirceu tinha controle sobre a emissora, fez questão de mostrar o contrário e passou a fazer muito barulho contra o governo. Depois tivemos o relatório do procurador-geral da República, que apontou coisas inacreditáveis acontecendo na área política. Mais tarde a OAB [Ordem dos Advogados do Brasil] – assim como os relatórios da CPI – responsabilizou o presidente da República, embora deixando a desejar. Apesar de tudo isso, parece que a sociedade brasileira tem um relacionamento diferente com a corrupção, pois não condenou Lula, que continua competitivo, com grande aprovação de seu governo.
Parece-me que a sociedade brasileira tem uma forma diferente de lidar com a corrupção. Penso que isso faz parte da alma nacional. Gostaria de ouvir sua opinião a esse respeito.
QUINTELLA – Infelizmente, tendo a concordar com sua conclusão. O governo, nesse episódio, agiu como se se tratasse de prática disseminada, todos fazendo a mesma coisa. Tanto assim que o presidente Lula, em Paris, declarou que a prática do caixa 2 era natural, e procurou desse modo reduzir as dimensões do escândalo. Estou convencido de que existia um processo que foi desmontado pelas declarações iniciais de Roberto Jefferson, um ex-deputado com um número espantoso de defeitos, mas que prestou um grande serviço ao país.
Mas existe, sim, uma dose de aceitação da sociedade brasileira. Ela convive com o camelô, por exemplo, que vende CDs piratas. Há uma certa leniência, principalmente quando ela está convencida de que a classe política é assim mesmo.
A população brasileira convive realmente, sem grandes traumas, com um nível de corrupção muito elevado. E apóia aquele que faz um favor, aquele que ajuda. No caso desta eleição há um fato novo e muito importante, que são os 11,2 milhões de famílias que recebem um cheque todo mês. Ora, 11 milhões de famílias são 25 milhões de votos, se todos votarem em quem lhes deu o cheque. A capacidade de essas pessoas serem influenciadas por práticas assistencialistas é muito grande.
É por isso que insisto na reforma das reformas, que é a política, se quisermos viver num regime democrático.
JOSUÉ SOUTO MAIOR MUSSALÉM – Gilberto Freyre sempre defendeu a tese do tempo tríbio, ou seja, passado, presente e futuro ao mesmo tempo. Não podemos esquecer o passado porque está presente em nossa formação, e o futuro é resultado do que somos hoje. Com base nisso, reli 1964, Golpe ou Contragolpe?, em que Hélio Silva faz uma avaliação do movimento militar de 1964. E achei diferenças e semelhanças entre o Brasil de hoje e o daquele momento. Nas diferenças, uma coisa interessante. Naquela época havia um forte conteúdo ideológico esquerdista, e como contraponto havia certa liderança militar, os marechais Humberto de Alencar Castello Branco, Odilo Denis e o próprio Eurico Gaspar Dutra, que já estava na reserva, além de Osvaldo Cordeiro de Farias, que era um conspirador nato e chegou a ser governador de Pernambuco. E também havia corrupção, só que naquela época era pontual, não generalizada. E finalmente tínhamos uma segurança pública razoavelmente estável, porque apesar da agitação política não existia o domínio dos comandos de drogas.
Em 2006, percebemos uma anarquia institucional, com movimentos ilegais muito mais fortes do que eram, por exemplo, as Ligas Camponesas de Francisco Julião. As ações são hoje articuladas, com organização paramilitar. E ao mesmo tempo temos a corrupção generalizada, não só no Legislativo mas também no Executivo e algumas vezes no próprio Judiciário. Há insegurança pública por toda parte e corporativismo político arraigado, que leva à incapacidade de cassar um parlamentar corrupto.
A base de sustentação de Lula agora será o sistema financeiro privado brasileiro, e o presidente está se tornando imbatível porque é o Papai Noel desse setor. Existe uma fragilidade do PSDB [Partido da Social Democracia Brasileira] e do PFL [Partido da Frente Liberal], e fisiologismo do PMDB [Partido do Movimento Democrático Brasileiro], que é um partido grande, o que mostra que a reforma política que o senhor defende é muito difícil.
MARCOS CINTRA CAVALCANTI DE ALBUQUERQUE – Não acredito que haja um convívio estranho da sociedade brasileira com a corrupção, penso que é algo muito mais profundo. Nossa sociedade, principalmente no que diz respeito aos processos políticos, é corrupta e ajuda a corromper os políticos. O eleitor, os cabos eleitorais, os agentes do processo buscam vantagens pessoais, colocam o interesse particular acima do coletivo, dentro de uma visão que só expressa a carência do processo educacional e cultural dos brasileiros.
Acredito que, na crise que vivemos hoje, sem dúvida o PT é parte essencial, mas ele apenas explicitou um processo que sempre existiu. A corrupção deixa de ser um desvio de caráter ou de personalidade de um agente político para se tornar uma estrutura organizada, que vem se aperfeiçoando. Pergunto qual é a diferença entre o que está acontecendo agora, no esquema dos sanguessugas, e o que ocorreu no escândalo do orçamento de dez anos atrás. Qual a diferença, por exemplo, entre o movimento que aprovou a reeleição, que gerou um processo de compra de votos e de bancadas e sabemos que foi abafado, e o que está acontecendo hoje?
São coisas que reforçam nossa preocupação. A corrupção não é exclusividade da classe política, que é apenas um dos atores. Não diria vítima, mas partícipe do processo.
A reforma política é essencial. Você mencionou, Sérgio, a reforma eleitoral, voto majoritário, misto, proporcional ou não. São considerações importantes e respondem parte das dúvidas que temos com relação aos desvios da classe política. Não entendo como alguém possa gastar R$ 5 milhões ou R$ 6 milhões numa campanha a deputado federal de seu próprio bolso. E tampouco que 513 deputados despendam recursos próprios sem algum interesse, sem algum conluio ou algum tipo de organização por trás. Independentemente do sistema eleitoral, penso que o grande mal hoje é a profissionalização da política.
Você falou sobre a reeleição e concordo plenamente com a sua posição. Ela não deveria ter sido aprovada, não condiz com nossa tradição. Mas pergunto: por que um vereador pode ficar na Câmara Municipal por 40 anos, como aconteceu aqui em São Paulo até recentemente? Por que um deputado federal ou um senador pode ficar no Congresso por 20, 25, 30 anos? Ele se profissionaliza, passa a depender da política para sua sobrevivência.
Penso que a reforma política, independentemente do sistema eleitoral, precisa combater essa profissionalização, a estrutura em que pessoas, grupos e interesses ficam incrustados e se perpetuam de tal forma que hoje, 30 anos depois, ainda temos um José Sarney, um Antonio Carlos Magalhães mandando no país. E toda uma estrutura de parlamentares dependentes deles que apenas seguem a ordem-unida.
LUIZ HUMBERTO PRISCO VIANNA – Estou de pleno acordo em que a reforma política é efetivamente a mais urgente e a mais importante, porque dela depende a própria estabilidade da democracia. No país não há uma cultura partidária, os partidos não têm o apreço da população, não exercem sua função fundamental. Na verdade, isso decorre da fragilidade deles, pois se tornaram a peça menos importante do processo, quando deveriam ser a principal.
Fui deputado em oito legislaturas consecutivas, não me profissionalizei no sentido negativo do termo e entendo a profissionalização mais como uma dedicação exclusiva à atividade. Não creio que a reeleição para deputado explique as dificuldades que estamos enfrentando. Fui contra a reeleição, porque não me parecia conveniente ao país.
QUINTELLA – Temos 28 partidos políticos, com direito ao fundo partidário, ao horário de televisão, a nomear líderes, a sentar na mesa da Câmara, enfim, a exercer poder dentro do Legislativo. Alguma coisa, muito pouca, ocorreu de importante no processo, que foi a cláusula de barreira. Ela obriga as legendas a ter pelo menos 5% dos votos de todo o país e pelo menos 2% num determinado número de estados para ter direito ao funcionamento parlamentar. Se o partido não atingir a cláusula de barreira, seu deputado será eleito, mas não poderá ser representado na mesa, não poderá ser relator de processos, perderá direito ao horário gratuito de televisão e às verbas de fundo partidário. Haverá siglas tão enfraquecidas que provavelmente desaparecerão. Então, dos 28 partidos políticos vão resultar meia dúzia, se tanto. Isso torna o processo um pouco menos complexo. A etapa seguinte é obter a fidelidade partidária e em seguida acabar com as coligações para as eleições proporcionais, já que são uma excrescência.
Continuo acreditando, professor Marcos Cintra, que a corrupção está se entranhando, tomando forma e se organizando, mas há uma razão para isso. Quando alguém que é eleito deputado e chamado para fazer parte da base partidária escolhe em troca o diretor financeiro dos Correios, há algo de errado. A única razão pela qual um parlamentar pleiteia um cargo público é a compensação de gastos que teve na campanha. Então a corrupção não terminará. É preciso encontrar uma forma de baixar os níveis de dispêndio das campanhas eleitorais.
Depois que começou a vigorar no governo – e não sou eu que digo, mas o procurador-geral do Ministério Público Federal – um articulado sistema montado para se perpetuar, o empresariado não quer enxergar isso, continua cego para os desvios de dinheiro para os movimentos sociais.
Mas existem alguns sinais muito interessantes de como a sociedade reage. Curiosamente, há algum tempo tivemos o plebiscito sobre o desarmamento. Todos os governantes e toda a mídia diziam uma coisa, e a população votou outra. Existem novos sistemas de comunicação – internet, blogs, Orkut –, em que as pessoas trocam idéias e informações e vão formando opinião. Isso está presente na sociedade, ainda de uma forma não completa, mas já não desprezível. Esse é um movimento positivo.
Não sou pessimista de forma nenhuma quanto ao futuro. Mas penso que nós, sobretudo o setor empresarial, temos um papel relevante. Alguém falou que o setor financeiro provavelmente vai apoiar o governo. É possível, porém essa é uma visão imediatista, de quem não está querendo enxergar a realidade e se satisfaz com os ganhos de curto prazo, com uma política econômico-financeira prudente, razoável, que está sendo praticada já há alguns anos, mas não quer olhar o que está por baixo disso. É aquilo que, graças às denúncias, foi interrompido e provavelmente não será retomado com a mesma intensidade.
Foi uma opção que o governo fez entre ter o apoio de um partido político maior e mais organizado, que era o PMDB, ou usar o varejo. Este, mais vantajoso, redundou no mensalão, uma conseqüência da não-governabilidade por falta da fidelidade partidária.
A corrupção pontual a que assistimos no caso dos anões do orçamento não era um esquema político montado, era roubo puro e simples. O esquema dos sanguessugas é roubo. Aquele de Rondônia e de Roraima, o dos gafanhotos, não é um esquema político, aquilo é roubo. Roubo haverá sempre em algum lugar. O que é grave é o processo sistêmico, com o objetivo claro de formar um mecanismo político-partidário e de infiltrar no Estado brasileiro um número enorme de sindicalistas. Por sorte do Brasil, Lênin tinha razão. Os sindicalistas não estão lá para fazer a revolução, mas para tirar proveito do poder.
MÁRIO ERNESTO HUMBERG – Primeiro, gostaria de separar a corrupção da falta de ética no processo político. Concordo com Marcos Cintra e Ney Figueiredo em que temos um problema de origem, que é a flexibilidade ética. O brasileiro normalmente aceita a ética de seu vizinho, do primo, do parente, de sua família. É algo muito diferente do que acontece nos países anglo-saxões, por exemplo, em que isso não é bem aceito. Um cidadão norueguês me contou recentemente que, se uma pessoa em seu país comete alguma infração ética mais séria, dificilmente permanece na cidade, porque os demais passam a não falar com ela, excluem-na da sociedade. Aqui, não. Convivemos com ladrões amigavelmente, sabemos que fulano é sonegador, que sicrano está envolvido com o crime organizado, e os aceitamos simpaticamente. Essa flexibilidade estimula a corrupção e não tem necessariamente uma ligação direta com a área política.
Quanto à questão política, todo mundo concorda com a reforma, só que ela não avança. É como diz o ex-presidente José Sarney: a reforma política não anda no Congresso porque disso os deputados e senadores entendem, do resto não. Sou a favor do voto distrital misto, que reúne as qualidades dos dois sistemas e elimina seus defeitos, lista fechada e voto no distrito. Mas, seja o voto distrital misto seja o puro, eles criam a representatividade, o eleitor pode cobrar do eleito. Há uma pesquisa que mostra que depois de um ano só 45% dos eleitores lembram em quem votaram. Cinco anos depois são somente 15%.
A proposta que permitiria mudar o Brasil seria a constituinte exclusiva, formada por não-deputados e não-senadores, com o fim de retirar da Constituição itens que deveriam ser leis ordinárias e mudar o sistema político. Gostaria de ouvir sua opinião a esse respeito.
QUINTELLA – Vejo isso com muita preocupação. Se ela for exclusiva com fins específicos, tudo bem. Mas se for uma constituinte revisora sem fins determinados, penso que correremos muito risco.
NEY PRADO – Já está aprovada na Comissão de Constituição e Justiça e vai a plenário uma PEC [proposta de emenda constitucional] disciplinando a revisão constitucional, estabelecendo limites. Sem eles, não teríamos uma revisão, mas outra Constituição.
QUINTELLA – Nessa PEC os constituintes são os próprios deputados.
NEY PRADO – Não, ela separa, dá um mandato específico por um ano para que façam a revisão.
QUINTELLA – Mas o eleito não é constituinte exclusivo. É exclusivo num determinado período e em seguida se transforma num parlamentar normal.
LUIZ GORNSTEIN – Quando se fala em corrupção, se esquece o tamanho do Estado brasileiro, que é a origem disso tudo. Em 2006 o orçamento da Câmara Federal é de R$ 3 bilhões, do Senado R$ 2,4 bilhões, e as duas casas têm 35 mil funcionários. O senhor já viu alguma indignação contra isso?
QUINTELLA – Alguns desses dados não são muito conhecidos. Não posso garantir a precisão do número, mas o orçamento da Câmara dos Deputados, incluindo os aposentados, é maior do que o de todos os municípios, com exceção de São Paulo, Rio de Janeiro e, se não me engano, Belo Horizonte ou Porto Alegre. Isso é uma distorção monstruosa.
JOSEF BARAT – Há pouco tempo, peguei um táxi em Brasília e o motorista me disse que a reeleição era muito tranqüila porque o presidente conseguiu amarrar as pontas, em cima e embaixo, e que o meio, no qual ele se incluía e eu também, não tinha a menor importância na eleição. Essa explicação é muito boa, porque mostra como funciona o populismo, desde a época de Getúlio Vargas. É amarrar as pontas. Isso desestrutura a organização política do país. Não há possibilidade de ter partidos fortalecidos, simplesmente porque um presidente pode se eleger sem partido. Se não conseguirmos quebrar a força do populismo, dificilmente vamos ter partidos fortes.
Outra questão: tem ocorrido no mundo inteiro um processo de transformação da política, principalmente das eleições presidenciais, em grandes espetáculos. O candidato é um homem espetáculo, atende à necessidade que a população tem de um mito. Isso está enfraquecendo o conteúdo político, ideológico e partidário das eleições. Queria ouvir sua opinião sobre isso.
QUINTELLA – Realmente, se Lula for reeleito, será sem partido, porque sua legenda está muito fragilizada. O PT conquistou 91 cadeiras e provavelmente sairá desta eleição com um número muito menor, talvez 50 ou 60. O governador Mário Covas, um homem de convicções muito fortes, foi contra a reeleição. Quando ele próprio foi candidato à reeleição, licenciou-se, por não considerar correto disputar uma eleição no cargo. Se ocorrer a reeleição de Lula, será porque faz campanha o dia inteiro, porque tem 11 milhões de famílias que recebem uma verba todo mês, por esse conjunto de coisas. Se não mexermos nisso, vai acontecer de novo assim. Na verdade, temos um mandato de oito anos que se confirma no meio, o que os norte-americanos chamam de recall.
ADIB DOMINGOS JATENE – Estamos todos perplexos com as coisas que devem mudar e a impossibilidade de mudá-las porque o Congresso não o faz. Aprendi a olhar o Congresso como um grupo de deputados ou senadores que se elegem uma vez e não se reelegem mais e outro grupo que se reelege sempre. A diferença me foi mostrada por um deputado de seis legislaturas, que, quando eu lutava para aprovar a CPMF [Contribuição Provisória sobre Movimentação Financeira], me disse: "Ministro, o senhor me convenceu de que precisa desse recurso, quero votar ‘sim’, mas vai ter de me ajudar". Perguntei: "Como assim?" Ele respondeu: "O senhor conhece fulano de tal?" Era presidente de um banco em São Paulo. Disse-lhe que conhecia, era meu amigo. "Então consiga dele que me libere do compromisso, porque ele quer que eu vote ‘não’. Se eu votar ‘sim’, ele não me dá recursos e não me reelejo e os prefeitos que estou patrocinando não se reelegem". Então os financiadores dos que são permanentemente reeleitos é que poderiam comandar o voto dos que decidem no Congresso. Em outras palavras, a responsabilidade última é da elite econômica e financeira, que apóia pessoas que não têm a visão clara do que precisa ser mudado.
Tive outra experiência, esta na periferia e com outra elite, a criminosa. Temos na Fundação Zerbini 37 equipes de Saúde da Família, controlamos 160 mil pessoas. A mortalidade por homicídio era de 60 a 80 jovens por ano. No último ano caiu para 20 e pensei que fosse por eficiência da polícia. Mas fui alertado por alguém da área que me disse: "Não, doutor, é que os grupos que comandavam o tóxico aqui eram vários e pequenos e guerreavam entre si. O PCC [Primeiro Comando da Capital] organizou isso". Então acabou a matança. Ou seja, a elite criminosa é capaz de organizar o tráfico e nossa elite não é capaz de organizar a atividade política.
QUINTELLA – Seu comentário é interessante, isso não tinha me ocorrido. Até sua colocação eu imaginava que a única forma de reduzir a corrupção seria criar mecanismos em que o processo político-partidário eleitoral fosse modificado para que as pessoas pudessem se eleger sem precisar como hoje dos financiadores. Mas talvez, sob o ponto de vista absolutamente pragmático, devamos seguir sua idéia, ou seja, convencer os agentes financiadores e obter deles compromissos definidos e fixos para assuntos vitais. A economia brasileira, com todos os seus problemas, já chegou a um grau de sofisticação e importância em que cada vez mais se dissocia do Estado, são coisas que começam a se afastar de uma forma perigosa. Não é possível ter um Estado gigantesco, mas não é possível também ter um Estado ignorado pelo resto da população. Uma parcela importante da sociedade depende do SUS [Sistema Único de Saúde], depende da Previdência. Não é assim que se vai construir um país socialmente adequado, justo, rico, com distribuição de renda e com possibilidade de ascensão social.
ADIB JATENE – O senhor falou também nas nomeações de livre provimento, coisa que foi criada pela revolução de 1964, não existia antes. Isso destruiu o serviço público, porque toda a corrupção que há nele vem desses indivíduos que não têm compromisso, que são nomeados, sabem que não vão ficar por muito tempo e fazem a caixinha de quem os nomeou.
QUINTELLA – Convivi com setores do Estado e dizer que o funcionário público é essencialmente corrupto não é verdade. Acontece que ele pode ter um chefe que é, que ocupa um cargo comissionado. Foi indicado pelo deputado A ou pelo vereador B e assumiu com um objetivo definido, que é gerar recursos para pagar a conta. O senhor tem razão: a profissionalização do serviço público é uma necessidade. A reforma do Estado terá de estabelecer quais os pouquíssimos cargos de provimento livre.
Alguém falou em flexibilidade ética. Ela existe, mas pode ser reduzida. Temos que atingir suas raízes. De pouco vale uma Controladoria-Geral da União correndo atrás de ladrões, se as causas não são extirpadas. São mais de 500 deputados federais, 81 senadores, milhares de deputados estaduais e vereadores, todos eles gastam fortunas para se eleger e precisam receber o dinheiro de volta. Como acabar com esse processo?
NEY PRADO – A palavra "corrupção" é muito pobre para representar seu conteúdo. Ela não se restringe apenas ao aspecto político. Primeiro, é preciso saber se corrupção é algo que agride a legalidade e a ordem jurídica. Se for assim, todo indivíduo que transgredisse a lei seria um corrupto. Essa é uma visão puramente jurídica. Outra visão é a da legitimidade, saber se a sociedade realmente aceita ou está impregnada desse tipo de desvio de conduta, como foi abordado por Marcos Cintra. É uma visão política e sociológica. Uma terceira abordagem é ética e leva em conta as condutas que deveriam estar presas a determinados valores. A resposta para o problema da corrupção não está numa ética rigorosa, porque as escolas, pela quantidade delas, permitem essa flexibilidade. E precisamos também distinguir ética de moralidade. A moralidade é a ética em sua praticidade.
Mas há um dado importante, que é a funcionalidade da corrupção. Existem teorias imensas e provas empíricas de que a corrupção, sob determinados aspectos, é altamente benéfica. O que toca este país, por exemplo, é a informalidade, que está presente em todos os lugares. Não há ninguém no Brasil, desde o presidente da República, que direta ou indiretamente não esteja praticando a informalidade.
O segundo ponto deste comentário é o projeto de poder que foi salientado por você. O PT, em sua origem, tinha como objetivo derrubar o regime militar. Depois passou para a oposição ao governo. E posteriormente tornou-se governo. Pergunta-se então se a finalidade dele é permanecer no poder para produzir um novo regime ou apenas para se valer das vantagens e benesses desse mesmo regime. Temos uma dialética complicada, saber se prevalece o primado da ideologia ou o da fisiologia. Como o presidente se comporta diante dessa dialética? Penso que ele não tem o propósito de mudar o regime, porque, se tivesse, bastaria compor o Supremo Tribunal Federal [STF] com elementos radicais de esquerda. Temos visto que ele tem colocado no STF pessoas sensatas, ideologicamente neutras, um corpo confiável. Então pergunto se o governo, nesse projeto de poder, tem embasamento ideológico ou está apenas com um projeto de reeleição para gozar das benesses do poder e favorecer aqueles que o cercam.
QUINTELLA – Penso que você tem razão, o projeto do presidente da República é reeleger-se, e não alterar fundamentalmente o regime. Mas não estou convencido de que o governo pense o mesmo. Vamos admitir que efetivamente Lula não soubesse de nada do que estava acontecendo. O que estava em curso, sendo ele sabedor ou não, era um processo de ocupação do Estado brasileiro através da partidarização. Quem diz isso é o procurador-geral da República e também o do Ministério Público. Isso foi contido pela denúncia do mensalão. Não fosse isso, penso que haveria uma combinação de reeleição com tomada do poder para valer.
EDUARDO SILVA – Fiquei surpreso com a pesquisa que dá tantos votos para Lula em São Paulo. Será que ele tem a economia de seu lado? O que está acontecendo? Tenho a impressão de que é a linguagem dele que chega ao povo, e não são muitos os políticos que sabem fazer isso. Será que está faltando aos demais uma linguagem que a população possa entender?
FÉLIX SAVÉRIO MAJORANA – Sou extremamente pessimista em relação à situação brasileira. Lula será reeleito, porque vai ter o voto da população. E isso porque reduziu em 50% o preço do arroz, do feijão, a aftosa derrubou o valor da carne, o povo está comendo, os que não estudavam em universidade estão matriculados. É uma minoria insignificante, é uma gota de água, mas faz volume, porque aproveitam. O PT é especialista em transformar pedra em ouro.
Questiono a afirmação de que não há matemática no processo político. Entendo que de uma forma empírica ou teórica pode haver uma relação entre os fatos, que pode ser representada por uma equação. Praticamente a totalidade da estatística é composta de expressões empíricas que relacionam fatos sociais.
O PT julgou ter descoberto a equação, só que desconsiderou alguma variável e deu no que deu. Mas ninguém deve pensar que aprenderam a lição e serão bonzinhos. A blindagem do presidente, deixando o povo pensar que ele, homem simples e inocente, foi jogado em um meio corrupto em que há pouquíssimas exceções, tem o objetivo de elegê-lo novamente. Depois disso, com a força da reeleição e a deterioração moral das instituições, serão supridas as variáveis faltantes para que ele e o PT se eternizem no poder.
SAMUEL PFROMM NETTO – Há estudos recentes sobre a problemática da consciência moral do cidadão comum e dos que detêm uma parcela maior ou menor de poder. Entre nós isso não tem recebido, infelizmente, a divulgação e a repercussão que mereceria. É uma questão que em tom galhofeiro Capistrano de Abreu traduziu na fórmula de Constituição de um único artigo: "Todo brasileiro é obrigado a ter vergonha na cara". Infelizmente, o problema é muito mais sério e profundo.
A antropóloga Ruth Benedict dizia que entre os norte-americanos o sentimento dominante em relação à transgressão é a culpa, enquanto no povo japonês predomina a vergonha diante dos demais. Assim, quando se sente culpado, o norte-americano vai até o psicoterapeuta ou psicanalista e o japonês, ao sentir vergonha, pratica o haraquiri. Não lhe parece que talvez a tragédia política brasileira seja devida ao fato de que entre nós a transgressão não está produzindo nem sentimento de culpa nem vergonha?
QUINTELLA – A reforma universitária era estatizante, foi o governo atual que propôs. Foi barrada porque pessoas como os membros deste conselho saíram em defesa de um sistema aberto, democrático de ensino no Brasil. O empresariado, de modo geral, tem como primeira obrigação pensar em seu negócio, é isso o que garante o sucesso. Mas há momentos em que precisa dedicar uma parcela de seu tempo, interesse e capacidade a temas estratégicos que mais cedo ou mais tarde vão afetar seu negócio.
ISAAC JARDANOVSKI – Professor Quintella, mas quem é o governo?
QUINTELLA – São vários governos. O que está no Ministério da Educação, por exemplo, é um, diferente do que está na Saúde. Não há uma unidade como existia quando começou este mandato. Havia uma forma muito mais fechada, centralizadora, quase stalinista, era a prática que vinha do partido.
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