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A maior rejeição: fila e preconceito

Burocracia oficial e desconfiança da população prejudicam transplantes de órgãos

ANA PAULA SOUSA e LEONARDO FUHRMANN


Símbolo da VIII Campanha Nacional de
Doação de Órgãos / Foto: Célia Thomé

A mensagem talvez já tenha chegado ao seu endereço eletrônico, com algumas variações. A vítima levou um desconhecido para casa e, depois de tomar uma bebida suspeita, teria acordado numa banheira cheia de gelo, com o aviso de que um de seus rins havia sido retirado. A história é tão sensacional quanto falsa, uma das lendas urbanas que são repetidas em diversas regiões como se tivessem de fato acontecido. O roubo de órgãos mexe com o imaginário das pessoas e ajuda a disseminar preconceitos que trazem mais problemas a uma situação bem real: a necessidade de doentes de passar por um transplante e a possibilidade de retirar órgãos de pessoas vivas ou mortas.

O livre-docente em clínica cirúrgica Irany Novah Moraes, que em 1968 fez o primeiro transplante renal em hospital privado no Brasil, lembra que a retirada de um órgão de uma pessoa para colocá-lo em outra exige uma complexa seqüência de medidas, que envolvem diversos profissionais especializados. Segundo ele, o procedimento inicial consiste na comunicação, pelo hospital, da morte à central estadual de transplantes, que, caso a família autorize a doação, providenciará a retirada e depois o transporte do órgão até onde está o paciente que vai ser submetido à cirurgia. "Qualquer erro compromete o órgão de maneira irremediável", explica ele.

No caso de doador vivo, o mais comum é a retirada de um rim, desde que a pessoa seja saudável, para ser transplantado num parente doente (segundo os médicos, a compatibilidade desse órgão é uma das mais difíceis). Todo mundo tem dois rins, mas é possível levar vida normal com apenas um. Partes do pâncreas e do fígado também podem ser doadas. No caso de órgãos que não são duplos e não podem ser secionados, existe a necessidade de retirá-los de alguém que tenha morrido de tal forma que não os tenha afetado. Depois de efetuada a doação, não há nenhum controle ou interferência da família do morto sobre as etapas subseqüentes.

Para Moraes, é nesse momento que se apresenta uma das questões mais delicadas da medicina: o conceito de morte. "Morrer é um processo, começa pelo cérebro, passa pelo encéfalo, chega às células nervosas da coluna e assim por diante", explica ele. "O momento de retirar os órgãos é aquele em que eles ainda podem ser reativados, mas não há mais possibilidade de vida do doador. Qualquer procedimento diferente desse é eutanásia, o que constitui crime." Por isso, ele faz questão de destacar que são obrigatoriamente distintas as equipes de socorro e de realização de um possível transplante. "A missão dos que tratam do paciente é salvar sua vida, trabalho que não pode ser confundido com o de quem vai buscar um órgão para curar outra pessoa" acrescenta.

Os médicos consideram que a idéia da possibilidade dessa confusão dá motivo a um dos maiores temores das famílias, devido ao desconhecimento dos procedimentos envolvidos na situação. Os parentes de um paciente que chega ao hospital em estado grave imaginam que pode não haver empenho em salvar sua vida, e que os médicos talvez passem a considerar as possibilidades de cada órgão daquela pessoa. "Ainda existem barreiras em relação à doação, porém as equipes separadas garantem a defesa da vida no pronto-socorro. Os familiares do doador têm preconceitos, mas não enxergam a situação do receptor. Um dia elas poderão também depender da doação de um órgão para continuar vivas", alega Moraes, que integra o grupo de médicos que entendem que diminuir as filas por órgãos e aumentar o número de doações é um desafio que só será vencido com uma mudança cultural.

Desconhecimento dos médicos

Os problemas relativos à doação de órgãos, no entanto, não são apenas de origem cultural. Um estudo da Sociedade de Terapia Intensiva da Bahia (Sotiba) mostra que ainda há dúvidas entre médicos e enfermeiros sobre os procedimentos após a morte encefálica, momento em que começa a luta para viabilizar o transplante. Somente 19,1% dos profissionais pesquisados sentiam-se seguros em realizar o exame clínico de morte encefálica. Apenas 52,8% acreditavam que não se devem desligar os aparelhos de suporte de vida após o diagnóstico de morte encefálica – a permanência dos aparelhos ligados é fundamental para permitir o aproveitamento dos órgãos para transplante. Além disso, não mais que 26,1% identificaram a necessidade de notificar a central de transplante de órgãos, o que é compulsório por lei. Do lado dos médicos, a principal queixa refere-se à legislação brasileira sobre o assunto, que consideram vasta, desatualizada e incompleta.

O Ministério da Saúde admite que tem dificuldades para assegurar que os brasileiros tenham acesso a transplantes em todo o território nacional, mas garante que está trabalhando para melhorar o sistema. O coordenador do Sistema Nacional de Transplantes, Roberto Schlindwein, aponta uma evolução a partir de 2004, quando o Tribunal de Contas da União (TCU) realizou um levantamento que resultou em um relatório apresentado em abril deste ano. "Conseguimos diversos aprimoramentos de lá para cá", afirma. Segundo ele, as dez principais centrais do país contam atualmente com um sistema único de informações em tempo real – que melhora as condições de aproveitamento dos órgãos –, e, até o final deste ano, o ministério pretende que todas as demais estejam integradas.

Schlindwein considera que um dos grandes desafios da política de transplantes é garantir que todo o território nacional tenha o padrão de qualidade encontrado nas regiões sul e sudeste. "No Rio Grande do Sul e em Santa Catarina temos um contingente de doadores semelhante aos de países desenvolvidos", cita. É uma realidade muito diferente daquela encontrada em estados que não contam sequer com uma central própria. Para começar a corrigir essa situação, foram criadas neste ano centrais estaduais em Rondônia, Amapá e Acre. Ficam faltando ainda Roraima e Tocantins. "Descentralizar não depende apenas da vontade do ministério, é preciso ter recursos e médicos com condições de fazer a captação e depois o transplante", explica Schlindwein.

No ano passado, o Ministério da Saúde investiu R$ 400 milhões no Sistema Nacional de Transplantes (SNT), que ainda está muito longe de receber o número necessário de doações. A Espanha, por exemplo, que ocupa o topo na lista de países com mais doadores, chega perto do padrão tido como ideal pelos especialistas: 36 doadores por milhão. Já o Brasil tem apenas seis para cada milhão. "Existem problemas, mas eles serão solucionados. O maior é a grande disparidade entre as centrais estaduais; além disso, investimentos com o objetivo de aumentar o número de doadores são fundamentais", afirma Maria Cristina Ribeiro de Castro, presidente da Associação Brasileira de Transplantes de Órgãos (ABTO). "Cerca de 95% dos transplantes são custeados pelo Sistema Único de Saúde (SUS), assim como a distribuição de medicamentos imunossupressores (para evitar que o órgão transplantado seja rejeitado pelo organismo), durante toda a vida do paciente. É um investimento muito grande, poucos países têm uma cobertura como essa", explica Maria Cristina.

Mudanças na lista

Em 1997, quando surgiu o Sistema Nacional de Transplantes, foi criada uma lista única para cada tipo de órgão. Posteriormente, os critérios que definem a colocação do paciente na fila foram alterados, passando a considerar, além da ordem de chegada, a gravidade do caso. O Ministério da Saúde vem procurando aumentar, cada vez mais, o número de situações em que uma pessoa pode passar à frente das demais devido à gravidade de seu caso. Para evitar favorecimentos indevidos, no entanto, é usado um programa de informática que possibilita fazer a avaliação das condições dos doentes.

Na opinião de Carmen Rosa Pujol, coordenadora da Associação dos Pacientes Transplantados da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp), embora essa mudança tenha dado maior agilidade ao sistema de transplantes e melhorado a qualidade de vida de muitos pacientes, é preciso considerar também o caso das pessoas que estavam há muito tempo na fila e acabaram sendo prejudicadas.

Além disso, mesmo com essas alterações e apesar de a fase de transplante ser de total responsabilidade do SUS, quem é atendido por médico particular é privilegiado em relação a quem já começa o tratamento dentro do serviço público. Um levantamento feito pela Associação Brasileira dos Transplantados de Fígado e Portadores de Doenças Hepáticas (Transpática) mostra que, em São Paulo, quem se trata na rede pública, entre a marcação da consulta inicial e a colocação na fila, perde de nove a dez meses em relação ao paciente particular, e isso, por vezes, representa uma desvantagem de 400 a 500 lugares na fila de espera.

Os problemas não param por aí, uma vez que nem os principais centros do país estão livres de entraves que impedem que um órgão doado chegue até o receptor, como foi retratado em uma reportagem publicada em meados do ano passado no jornal "Folha de S. Paulo". Assim que a morte encefálica de Antônio, de 9 anos, foi confirmada, os publicitários Teresa Cristina Rodrigues Lima e Sérgio Lima acionaram a Central de Transplantes do Rio de Janeiro para doar os órgãos do filho. Foram informados de que, por conta dos sedativos que a criança havia tomado – que poderiam interferir no diagnóstico de morte encefálica –, seria necessário esperar 180 horas para fazer a captação dos órgãos. Preocupados com a possibilidade de que os rins, o coração e o fígado do garoto entrassem em falência antes desse prazo, os pais procuraram a central de São Paulo e a de Brasília e descobriram que nada poderia ser feito: havia discrepâncias entre as regulamentações estaduais. Seguiram-se dias de aflição, até que a retirada dos órgãos de Antônio fosse autorizada pela central do Rio de Janeiro. Devido à demora, o coração do menino não pôde ser aproveitado. Apenas duas válvulas foram transplantadas em outro paciente.

Exemplificando um grave problema que o SNT enfrenta – o subaproveitamento de órgãos –, esse caso lamentável mostra quanto o sistema precisa ainda ser aperfeiçoado. Dados do Ministério da Saúde revelam que, no ano passado, foram registrados 5.050 casos de morte cerebral, dos quais apenas 1.417 resultaram em transplante. Além da negativa das famílias e das más condições de alguns órgãos, pesam nessa conta diferenças de regulamentação entre as centrais, deficiências na estrutura dos hospitais cadastrados como transplantadores e a falta de capacitação das equipes médicas para fazer a captação de órgãos – falhas que, entre outras, já tinham sido identificadas pela auditoria do Tribunal de Contas da União.

Investimento e evolução

O relatório do TCU aponta um aumento no número de transplantes, de 4.134 em 1995 para 9.062 em 2004, e destaca algumas medidas que colaboraram para esse crescimento, como a viabilização da distribuição de órgãos entre as centrais estaduais, graças ao funcionamento ininterrupto da Central Nacional de Notificação, Captação e Distribuição de Órgãos (CNNCDO), instituída pela portaria GM nº 901, de agosto de 2000, e sediada no Aeroporto de Brasília. Em janeiro de 2001, o Ministério da Saúde também firmou um termo de cooperação com 15 afiliadas do Sindicado Nacional das Empresas Aeroviárias (SNEA). Como resultado desse acordo, tem sido possível o transporte gratuito de órgãos e tecidos, bem como de profissionais médicos, quando se trata de localidades onde não existem especialistas nesse procedimento.

Além de instituir medidas para organizar o SNT e criar os organismos necessários à sua implementação, desde 1998 o Ministério da Saúde vem adotando iniciativas com o objetivo de tornar mais adequada a remuneração das atividades relacionadas aos transplantes. Houve a inclusão de novos procedimentos nas tabelas do SUS, assim como a revisão dos valores daqueles já existentes. Outra providência do ministério foi a criação, em 1999, do Fundo de Ações Estratégicas e de Compensação (Faec), que passou a financiar todos os procedimentos de transplante e, com isso, deixou de onerar estados e municípios. O relatório do ministro Marcos Vinicios Vilaça, presidente do TCU, destaca ainda que o Brasil tem o maior sistema público de transplantes do mundo e é o segundo em número de cirurgias desse tipo no geral.

O ministro afirma que o investimento do governo federal nessa área é muito maior do que pode indicar uma análise fria dos gastos. Segundo seu relatório, no Orçamento Geral da União de 2004, apesar de terem sido consignados cerca de R$ 17,6 milhões à realização de transplantes, o montante aplicado atingiu cifras muito superiores. Se tomarmos por base o dispêndio com as cirurgias realizadas em 2004, que totalizou R$ 154.907.138,35, e, além disso, considerarmos o que foi consumido com procedimentos associados e medicamentos, o total salta para R$ 402.934.929,61. Nessas despesas estão incluídas as viagens de pacientes que viviam em estados em que os transplantes ainda não estavam disponíveis e a estadia na cidade em que foram operados.

Caso de polícia

Uma das tentativas frustradas de aumentar as doações consistiu em incluir nos documentos de identidade de quem não queria que seus órgãos e tecidos fossem doados a expressão "não doador" (lei 9.434, de 1997). Dessa forma, as demais pessoas seriam automaticamente doadoras. A chamada "doação presumida", no entanto, acabou não surtindo os efeitos desejados e, com a lei 10.211, de 2001, a autorização passou a depender dos familiares. Assim como a prática anterior, entretanto, esta última apresenta inconvenientes. "Em um momento de dor, exigir que os parentes tomem uma decisão dessa natureza pode parecer uma afronta, uma vez que a abordagem nem sempre é feita de maneira correta pela comissão inter-hospitalar de transplantes", alega Renato Gomes, coordenador da regional carioca da Aliança Brasileira pela Doação de Órgãos e Tecidos (Adote-RJ). "O atendimento muitas vezes é péssimo. Uma vítima de traumatismo craniano chega ao pronto-socorro e fica lá fora na fila, sem ser atendida, e o quadro evolui para morte cerebral. Então alguém vai perguntar à família se deseja doar os órgãos da pessoa que acabou de morrer. É claro que dessa maneira ninguém vai concordar", complementa.

Além dos problemas regionais e burocráticos, em algumas situações o transplante de órgãos virou caso de polícia. Em 2003, foi constatado que moradores de uma favela do Recife, possíveis doadores de rins, estavam sendo aliciados por uma quadrilha formada por 11 pessoas, entre brasileiros e estrangeiros. O valor pago pelos órgãos poderia chegar a US$ 10 mil. Os doadores eram levados para a África do Sul para fazer a retirada do rim, caso este estivesse em condições de ser transplantado. Segundo a Polícia Federal, os criminosos conseguiram aliciar pelo menos 30 pernambucanos. Um outro episódio, em que pode ter havido tráfico para Israel, está sendo investigado pelo Ministério Público Federal em São Paulo.

Mais comuns que os casos que envolvem tráfico de órgãos são, no entanto, as denúncias de fraude relativas à lista. Em reportagem publicada no jornal "O Globo", em julho deste ano, um paciente, que ocupava o 227º lugar na fila de transplantes de fígado, afirmou que um cirurgião havia ameaçado tirar seu nome da lista, caso ele não pagasse pela operação. O médico negou a acusação, e o caso ainda está sendo investigado. 

 

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