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Insegurança pública

Como andam as pesquisas sobre a violência no Brasil

PAULO DE MESQUITA NETO


Paulo de Mesquita Neto 
Foto: Nicola Labate

O coordenador da área de monitoramento de direitos humanos do Núcleo de Estudos da Violência da Universidade de São Paulo, Paulo de Mesquita Neto, esteve presente no dia 10 de maio de 2007 no Conselho de Economia, Sociologia e Política da Federação do Comércio do Estado de São Paulo, Sesc e Senac, onde proferiu uma palestra que teve como tema crime, violência e insegurança no Brasil, sob a perspectiva dos direitos humanos.
Reproduzimos abaixo sua exposição e o debate que se seguiu.

A segurança pública no Brasil, ante a perspectiva dos direitos humanos, é hoje uma das linhas de trabalho do Núcleo de Estudos da Violência, um dos dez centros de pesquisa, inovação e difusão da Fapesp [Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo]. A fundação abriga dois centros de excelência na área de humanidades e ciências sociais, o Centro de Estudos da Metrópole, do Cebrap [Centro Brasileiro de Análise e Planejamento], e o Núcleo de Estudos da Violência. E, como em todos os centros de pesquisa e inovação, trabalhamos em três direções: pesquisa, transferência de conhecimento e difusão de informações. Pesquisa na área de democracia, transição e consolidação democrática e direitos humanos. No que se refere a políticas públicas, atuamos com a questão de segurança, justiça criminal, administração penitenciária e prevenção do crime e da violência. Minha área específica é a da segurança pública e prevenção do crime e da violência.

A transferência de conhecimento se dá de diversas maneiras, tanto no tocante às organizações governamentais, quanto às não-governamentais. Temos atuado com desenvoltura aqui, e um dos trabalhos mais recentes diz respeito a dois cursos de gestão organizacional para policiais, promotores e juízes, com professores da Escola Politécnica e da Faculdade de Economia, Administração e Contabilidade, da Universidade de São Paulo, e da Fundação Getúlio Vargas. E há todo um trabalho de disseminação de informação por meio de relatórios, publicações, participação em debates, etc. Tanto o trabalho de pesquisa quanto o de intervenção, transferência de conhecimento e difusão do núcleo, por lidar com a questão da democracia e dos direitos humanos, são apoiados e orientados pelas normas internacionais que dão as diretrizes básicas sobre o assunto.

Qual é a relação de todo esse trabalho com a questão da democracia e da segurança pública? O artigo 3º da Declaração Universal dos Direitos Humanos diz que todo homem tem direito à vida, à liberdade e à segurança pessoal. A questão da segurança pessoal é a menos definida teoricamente e se debate muito sobre ela. Tem uma dimensão que é física e outra patrimonial, uma dimensão de segurança social mesmo, de bem-estar social. E há uma questão que é de segurança humana. Muitos conflitos se misturam nesse conceito de segurança pessoal, mas é aí que se ancora a questão da segurança pública. O importante é que se está tratando de segurança pessoal e não de segurança do Estado ou do governo.

O que se contrapõe à segurança do Estado e do governo, no entanto, ainda é uma questão aberta. Há várias perspectivas sobre esse assunto. O principal instrumento que guia as ações do Núcleo de Estudos da Violência, nossas pesquisas e intervenções, é o Pacto Internacional dos Direitos Civis e Políticos, que ressalta o direito à vida, que deve ser protegido por lei. Ninguém poderá ser arbitrariamente privado de sua vida, ninguém poderá ser submetido à tortura e à escravidão. Esses são os três temas-chave, e do ponto de vista do direito internacional são indiscutíveis, não constituem uma questão que se possa deixar para amanhã. Os três são imperativos. A questão da liberdade e da segurança pessoal está no artigo 9º, onde se lê que ninguém poderá ser privado de liberdade, salvo por motivos previstos em lei e em conformidade com todos os procedimentos nela estabelecidos.

Há um ponto que vem ganhando importância no Brasil. Pela primeira vez, duas pesquisas nacionais, a do IBGE [Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística] e a da "Folha de S. Paulo", divulgadas há pouco tempo, mostraram que, hoje, a insegurança é a principal preocupação dos brasileiros, deixando para trás o desemprego. O Instituto São Paulo contra a Violência, por exemplo, foi criado em 1997, motivado, em parte, por uma pesquisa realizada em São Paulo pela Rede Globo, que, já naquela oportunidade, destacava a violência como uma das principais preocupações dos paulistas, particularmente os moradores da Região Metropolitana. Ficamos sabendo que a maioria das pessoas (75% dos entrevistados) acredita piamente que a principal causa do problema da violência não são as questões econômicas e sociais, mas a atuação ineficaz do Estado no combate ao problema. O foco de nosso trabalho, então, é a questão da insegurança pública, que se reflete muito nos índices alarmantes de homicídios. Dispomos de dados e informações mais qualificados sobre essa grave questão e, por isso, ela ganhou destaque dentro de nosso trabalho, estando, portanto, diretamente relacionada àquela afirmação do direito à vida.

Número de homicídios

De meados dos anos 1980 para cá, o Brasil experimentou um crescimento contínuo nas taxas de homicídios. Nos últimos anos, porém, houve uma pequena inflexão para baixo. Na realidade, o recuo começou em 1999, com São Paulo (estado e capital), exatamente onde o aumento das taxas de homicídios primeiro ganhou vulto. Na verdade, o que está acontecendo é que o estado de São Paulo e a capital paulista, que tinham taxas superiores à média brasileira, estão voltando a exibir índices iguais à média brasileira. Discutiu-se no princípio se estávamos de fato diante de uma queda, se aquilo era uma tendência e se haveria continuidade, ou se os dados estavam sendo manipulados. Mas, com o passar dos anos – e já são oito –, e graças ao advento de outras fontes da área da saúde que também mostram o recuo do número de homicídios, as pessoas se convenceram de que as estatísticas são verdadeiras.

Entendemos que houve oscilações nesses anos, alguns movimentos são cíclicos, e o pico pode ser um resultado excepcional, da mesma maneira que a baixa. Se compararmos os números de 2004 com a média dos últimos 18 anos, verificaremos uma queda de homicídios em São Paulo da ordem de 27%, o que também é bastante significativo.

Em 2004, em termos de Brasil, a taxa de homicídios se achava 61% acima do índice mais baixo dos últimos 18 anos. Como explicar isso? Componentes adversos têm de ser levados em conta porque, na redução do pico de 1999 para 2004, houve fatores conjunturais que afetaram mais do que a queda registrada no decorrer do longo prazo e que é mais sustentável. Como tal, devem ser considerados diferentemente de quando o cálculo é feito pelo pico. Com base no sexo, por exemplo, verificamos que a maioria das vítimas são homens. E assim por diante. E quanto mais o tempo passa, mais jovens estão morrendo por homicídio. Hoje, perto de 40% dessas vítimas têm entre 15 e 24 anos. Até 1999, não havia muitos dados baseados no nível de escolaridade das pessoas assassinadas. A partir daquele ano, passamos a dispor de mais informações, mais apuradas. Na realidade, começamos a fazer um acompanhamento mais sistemático. Sabemos que quase 30% das vítimas têm entre quatro e sete anos de escolaridade, menos que o ensino fundamental, e quase 20% exibem apenas três anos de escolaridade. As informações por cor e raça também só se tornaram disponíveis a partir de 2000. A participação da população parda e preta entre as vítimas é um pouco superior, entre cinco e dez pontos percentuais. Esse é o quadro de quem morre vítima de violência no Brasil, e nossa situação não é muito diferente da de outros países da América Latina.

Comparativamente a outras democracias em desenvolvimento, o Brasil, na realidade, tem taxas altas de homicídio. São novas democracias que se debatem com problemas de violência estatal. Novas democracias que fizeram a transição de regimes autoritários e de situações de guerra civil, existindo aqui, pois, um problema de violência estatal persistente, um aumento do crime interpessoal, do crime organizado, do tráfico de drogas e do comércio ilegal de armas de fogo. Elas têm em comum, muitas vezes, o baixo crescimento econômico, a desigualdade social e a alta discriminação racial e étnica. Isso retrata muito bem os países da América Latina, são traços próprios de muitas nações do continente, relacionados aos problemas da segurança pública. Como entender tudo isso?

Há uma série de mudanças, inovações políticas e administrativas no procedimento de transição para a democracia, mas, ao mesmo tempo, existe um processo de adaptação e de persistência de muitas das práticas antigas herdadas de regimes autoritários. Isso faz com que o processo de democratização tenha alcance limitado, muito parcial e, por isso mesmo, descontinuado. São avanços e recuos. Avanços em determinadas áreas, mas recuos em outras. Isso significa que, apesar do aparente estado de direito, os direitos civis não são propriamente garantidos à grande maioria da população. Como explicar o problema da insegurança e da violência dentro dessa perspectiva?

A análise dos problemas de segurança pública tem a ver com fatores e mudanças que acontecem no médio e no longo prazos, alterações estruturais na sociedade. Há três questões fundamentais aqui. Uma diz respeito à demografia: a maior parte das vítimas da violência são jovens entre 15 e 24 anos de idade, e isso, historicamente, não ocorre apenas no Brasil. A segunda é a questão da economia, que tem a ver com a problemática da distribuição de renda, da desigualdade. Algumas pessoas, por visão política e por ideologia, entendem que esses fatores são mais importantes do que os estruturais. Outros pensam exatamente o contrário. Uma série de estudos procura demonstrar que, dependendo do que se quer explicar, deve ser atribuído um peso maior às questões conjunturais, ao trabalho da polícia e às políticas de segurança pública no tocante às mudanças de médio e longo prazos. Nos últimos anos, registrou-se um grande recuo nos índices de homicídios e de outros crimes nos Estados Unidos, mas a queda foi dobrada em Nova York. Nessa cidade e em algumas outras, concentraram muita atenção no trabalho da polícia e nas políticas de segurança pública. Aqui, depois de um período em que o trabalho da polícia foi muito desacreditado, nas décadas de 1970 e 1980, a corporação experimentou uma série de reformas que tentamos impulsionar, mas com grande dificuldade.

Crime organizado

A terceira questão está ligada às drogas e às armas. Ela é bastante polêmica e tem de ser analisada sob o enfoque das mudanças experimentadas no passado e seus efeitos no futuro, assim como acontece com as duas questões anteriores.

Boa parte da oscilação das taxas de criminalidade e da sensação de insegurança se deve, realmente, a fatores chamados aleatórios, acidentais ou cíclicos, e eles são inexplicáveis. O ataque do crime organizado à capital paulista, em maio de 2006, é um bom exemplo do que estou tentando esclarecer.

A partir desse tipo de análise, procuramos delinear uma série de estratégias para a promoção da segurança pública. O trabalho do Núcleo de Estudos da Violência, do Instituto São Paulo contra a Violência e de uma série de outras instituições das quais participamos tem demonstrado que o processo é muito difícil, e, como já frisei anteriormente, temos avanços e retrocessos. Depende de muitos fatores, mas ao longo dos últimos 20 anos conseguimos trabalhar muito bem com a comunidade de segurança pública em quase todo o Brasil. No estado de São Paulo, esse relacionamento é bastante satisfatório, e tem produzido alguns bons resultados. Basicamente, investimos muito na garantia do estado de direito, na defesa dos direitos civis e políticos e na promoção da transparência. Cada um desses itens é, na verdade, uma pequena guerra, porque tudo é muito difícil. O progresso nessas áreas é comedido, mas avançamos na gestão de políticas públicas e de organizações públicas, particularmente nas questões de recursos econômicos, humanos, científicos e tecnológicos. Temos trabalhado também, ainda que menos, com as questões da desigualdade social, idade, raça e cor. Trabalhado menos por causa da ênfase nos direitos civis e políticos, que precisam ser garantidos, tanto numa perspectiva de consolidação da democracia, quanto na de promoção da segurança pública e dos direitos humanos.

Diante da percepção de que os recursos são limitados, como poderiam ser geridos eficazmente a fim de produzir resultados mais positivos? Isso é particularmente importante na área da segurança pública, porque ela tem menos transparência, e os governos têm menos vontade política de intervir nela do que, por exemplo, na educação e na saúde. Estes dois segmentos não apenas rendem mais benefícios políticos como também dispõem de muito mais dados e informações e mais profissionais engajados na promoção de melhorias e aperfeiçoamentos, ao contrário do que se vê nas áreas de segurança pública, justiça criminal e administração penitenciária. Então, é certo afirmar, a gestão na área de segurança pública é particularmente difícil. Até 2006, em São Paulo, foram investidos R$ 8,9 bilhões em segurança pública e administração penitenciária. Nos últimos anos, os recursos destinados à primeira ficaram mais encorpados e sobrou pouco para a segunda. Isso certamente vai gerar uma série de problemas mais à frente. Não aumentaram os investimentos no sistema prisional, mas sua população cresce a olhos vistos – o que se deveu, justamente e em grande parte, ao incremento dos recursos endereçados à segurança pública, que levou mais gente para trás das grades. De 30% a 40% desses presos são provisórios porque não estão condenados. A ausência de investimentos fez com que o número de detentos para cada agente penitenciário passasse de dois para cinco.

Há aqui um problema de gestão, e não simplesmente no âmbito da administração penitenciária, mas do Estado, que investe na segurança de encarceramento, mas não dispensa a mesma atenção à política penitenciária.

Convém esclarecer que o Núcleo de Estudos da Violência foca seu trabalho nos programas nacionais de direitos humanos e de segurança pública, juntamente com o Instituto São Paulo contra a Violência e o Fórum da Cidadania contra a Violência, este último criado em 2006, depois da crise de maio. Elaboramos uma série de documentos, análises e propostas que são entregues ao governo estadual e a diversos de seus secretários, como os da Justiça, da Segurança e da Administração Penitenciária. E fazemos contato com o Ministério Público e com o Poder Judiciário. O Fórum Brasileiro de Segurança Pública é uma organização da sociedade civil que reúne profissionais da polícia – representantes das polícias civil e militar de quase todas as regiões do país, mais a polícia federal –, pesquisadores e representantes de organizações não-governamentais, com a finalidade de discutir propostas e políticas para a área de segurança pública no Brasil. É uma experiência que já existe em outros países e que agora ganha vida entre nós. Graças a esse trabalho, a distância entre a segurança pública, a sociedade civil e o pessoal de direitos humanos encolheu bastante nos últimos 20 anos.

Debate

ISAAC JARDANOVSKI – A queda acentuada da taxa de homicídios nos Estados Unidos é uniforme ou mais acentuada em alguns estados? Existe realmente uma relação entre a legalização do aborto em alguns estados e a queda de homicídios?

MESQUITA – É notório nos Estados Unidos, entre os estados e as principais cidades, que há uma certa homogeneidade na queda, com pequenas oscilações para mais ou para menos. A oscilação maior foi mesmo em Nova York. A referência feita à legalização do aborto como possível causa da queda dos homicídios já tem uns dez anos, mas o melhor trabalho desenvolvido nessa direção, particularmente em relação a Nova York, foi publicado há alguns meses por um pesquisador da Universidade de Berkeley, na Califórnia. Ele procura explicar por que o número de homicídios nos Estados Unidos encolheu, uma queda mais ou menos geral, e por que foi maior em Nova York. E frisa que, se a legalização do aborto teve algum efeito, ele foi pequeno, muito pequeno.

NEY PRADO – Como você conceitua o aborto em suas conseqüências? Porque ele tem uma dupla faceta: o crime contra a vida do nascituro e a agressão à gestante. Será possível, num levantamento estatístico, apurar onde incide a violência e em que condições?

MESQUITA – Quando falamos de homicídio, o aborto não entra nas estatísticas. Voltando aos Estados Unidos, muita gente diz que o número de abortos de lá não mudou muito. Eles apenas passaram a ser feitos legalmente. Então, estamos diante de uma questão controversa.

ISAAC – Nos Estados Unidos, é considerado homicídio o aborto de feto com mais de 24 semanas.

MESQUITA – A conclusão do pesquisador de Berkeley indica a existência de uma boa parcela de fatores por trás da queda dos homicídios. Fatores, segundo ele, que não foram totalmente explicados. É difícil quantificar, existem mudanças demográficas, sociais e econômicas que esclarecem até determinado ponto. Por exemplo, afirmam que em Nova York e em algumas outras cidades onde a queda foi mais acentuada o crédito cabe à política de segurança pública e ao trabalho mais eficaz da polícia.

NEY PRADO – Em Nova Orleans acabaram com a polícia, pura e simplesmente. Trocaram tudo, começaram do zero, porque ela se especializara em seqüestros e homicídios. Ou seja, o centro gerador da violência era a própria polícia.

MESQUITA – Também em Nova York a polícia passou por uma depuração, um programa anticorrupção. Posteriormente, houve uma expansão significativa do efetivo policial e se investiu no aperfeiçoamento da gestão da polícia. Isso está associado não tanto à idéia da "tolerância zero" do ex-prefeito Rudolph Giuliani, mas ao sistema computadorizado de gestão e mapeamento de informações criminais. O mais importante, nesse caso, não é exatamente a metodologia de mapeamento e a identificação de áreas de risco. Essencial mesmo é a responsabilização do chefe de polícia e de outros dirigentes pelo que acontece em suas áreas. Tentamos introduzir o sistema de mapeamento aqui. São Paulo já avançou um pouco nesse aspecto, mas ainda não conseguimos estabelecer a outra ponta, que é a da responsabilização.

NEY PRADO – Precisamos reformular o conceito de poder de polícia. Não o poder da polícia, mas o poder de polícia. Não existe polícia mais violenta do que a americana. Mas, explica-se: desde que ela sofra resistência por parte daquele que está cometendo o delito ou a infração. Se o sujeito reagir, eles partem para a violência. Aqui não temos esse conceito, a polícia não exerce seu poder de polícia. Nos conflitos de rua ela recua para esperar maior confrontação, ao contrário do que se vê lá, onde a iniciativa é da polícia, desde que advertida a parte agressora. Vemos em nossa polícia certo temor de punições em função do excesso de suas ações. Isso é um problema seriíssimo. O episódio de Carajás é típico. Fosse nos Estados Unidos, os policiais não seriam nem processados, porque ficou nitidamente caracterizada a iniciativa da agressão.

MESQUITA – Nos Estados Unidos, assim como em outras partes, está muito claro para o policial o que pode e o que não pode fazer. Existe uma legislação concernente e cada um tem um manual de procedimentos operacionais, ao contrário do que ocorre no Brasil. É bom dizer que lá também há casos de corrupção e de violência, como em todo lugar. Aqui há uma legislação, mas os procedimentos não são padronizados, então o policial não sabe o que tem de fazer.
Ainda em relação aos Estados Unidos, dependendo do trabalho realizado pela polícia, bom ou mau, um sistema de responsabilização promove ou não promove, recompensa ou não recompensa o policial. No Brasil não temos nada disso. Por causa das regras do funcionalismo público, a possibilidade de responsabilização é bastante limitada, e o policial é promovido ou transferido para o fim do mundo em função de questões que não são exatamente atinentes à competência profissional. Mesmo que o policial americano tome uma atitude mais agressiva em certas situações, ele estará amparado pela lei e pelos regulamentos, ele sabe até onde pode chegar e que, se for mais longe, vai sofrer as conseqüências.

JOSUÉ MUSSALÉM – Penso que há uma correlação muito clara entre o aumento da criminalidade a partir de meados dos anos 1980 e o fim do antigo regime militar. Talvez não pelo regime militar em si, mas pelo afrouxamento dos dispositivos legais. A Constituição de 1988 foi muito abrangente na questão da liberdade política, mas a legislação infraconstitucional terminou afrouxando dispositivos que condenam os criminosos, além de criar outros como o indulto de Natal e assim por diante.

JANICE THEODORO – O problema está mesmo na transição. Por meio da ética, o indivíduo sabia identificar o que era justo. No período autoritário, porém, delegou-se essa particularidade ao Estado. Com a democratização, o indivíduo perdeu sua bagagem. Ocorre que o Estado também não estava preparado. Então o lugar do justo e do injusto ficou indefinido e as instituições políticas não se mostraram capazes de sustentar os limites entre norma e sanção.

MESQUITA – Entendo que o aumento da criminalidade nos anos 1980 tem muito a ver com o processo de transição política e de mudança constitucional e legislativa. A nova Constituição criou obstáculos à atuação da polícia e da justiça criminal em termos de uma efetiva capacidade de condenar as pessoas responsáveis por crimes. Temos um processo de transição e de mudanças de natureza legal, mas é notória certa resistência das instituições a se adaptar às transformações em curso. Então, independentemente do sentido das mudanças políticas, legais, constitucionais, há mesmo um descompasso e um conflito acerca de como as novas leis vão ser aplicadas. Vemos juízes, promotores e policiais que trabalham num determinado sentido e outros que agem no sentido inverso. Isso dificulta o processo.

MUSSALÉM – No Brasil, a criminalidade guarda uma correspondência muito grande com as drogas. Não sei se existe algum estudo que faça uma correlação entre crime e PIB brasileiro. Será possível fazer isso? Por exemplo, qual o gasto com a segurança do patrimônio e a segurança pessoal?

MESQUITA – A antropóloga Alba Zaluar afirma que o tráfico de drogas e de armas tem uma importância muito grande no aumento da criminalidade. Ela é uma das mais experientes pesquisadoras dedicadas ao estudo da violência urbana no Brasil, com uma visão particular do Rio de Janeiro. De maneira geral, no Brasil dispomos de poucos dados para fazer o tipo de estudo que os americanos realizam sobre os motivos que levam à queda da criminalidade em seu país. As dificuldades são grandes aqui. Um trabalho divulgado recentemente pelo IPEA [Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada] mostra os altos custos da violência. No passado, tínhamos o estudo do BID [Banco Interamericano de Desenvolvimento], que estimava esse valor em aproximadamente 10% do PIB. Depende muito do peso dos itens que se colocam nesses custos, mas ele é alto.

NEY PRADO – É a diferença entre custo humano e custo material.

MESQUITA – É. O estudo do IPEA tenta fazer esse cálculo, da perda de anos de vida, tudo isso, e parece um trabalho bastante sério. É uma das questões sobre as quais se debruça o Instituto São Paulo contra a Violência. Vários economistas já tentaram incluir esse componente na discussão do problema da segurança pública, cônscios de que isso sensibilizaria as autoridades. Infelizmente, trata-se de um argumento que, por ora, não conseguiu condoer os homens do poder. É muito mais uma discussão política, ideológica, moral, corporativa em parte, porque a questão de ter duas polícias torna a discussão muito corporativa. As visões das duas corporações são diferentes, assim como os interesses.

MALCOLM FOREST – Tenho uma pergunta que tem a ver com a questão de saúde mental. No Brasil, 47% da população sofre de alguma patologia, como alcoolismo, dependência de drogas, psicopatia, esquizofrenia, demência precoce e depressão. Nos Estados Unidos, as estatísticas talvez sejam até piores do que as nossas. Dá-se pouca importância à saúde mental, a despeito de existir uma correlação estreita com a violência e o homicídio. E o suicídio, que é uma conseqüência da depressão e já se apresenta como a segunda causa de óbito por patologia no mundo, caminhando para o primeiro lugar – ele também está contemplado no estudo da violência?

MESQUITA – Não temos trabalhado com a questão do suicídio, pelo menos no caso do Núcleo de Estudos da Violência, e não conheço quem esteja tratando especificamente disso no Brasil. É um problema maior nas nações ricas. Nos países em desenvolvimento ou não-desenvolvidos o homicídio é mais grave.

NEY PRADO – No livro Psicanálise da Sociedade Contemporânea, Erich Fromm prova que nos países nórdicos a taxa de suicídios é infinitamente superior à dos países subdesenvolvidos.

MESQUITA – Em muitos países a taxa de suicídios é superior à de homicídios. Não é o nosso caso. No tocante aos problemas de natureza psicológica relacionados a abuso de álcool e de drogas, ressalte-se que essa é uma questão muito complicada, porque a exposição à violência e à insegurança do ponto de vista social e econômico também agrava o problema da dependência em relação ao álcool e às drogas.

JOSÉ ROBERTO FARIA LIMA – Outro dia, no Incor [Instituto do Coração], enquanto esperava para ser atendido, ouvi uma senhora de Angola que se dizia apavorada com o que via na televisão sobre a cidade de São Paulo. Ela tinha a impressão de que estava envolvida num ambiente pior que o da guerra civil que assolou aquele país africano. Esse é um aspecto que gostaria de levantar, a violência na mídia eletrônica. Em alguns filmes de Hollywood, só na apresentação já matam uns 50.

ZEVI GHIVELDER – Queria saber se há algum estudo sério sobre a relação entre cinema, televisão e violência e, principalmente, qual é sua visão a esse respeito.

MESQUITA – A questão do conteúdo dos programas de televisão e rádio e da imprensa em geral é muito controvertida e não conheço nada muito definitivo sobre isso. E determinar o conteúdo do que deve ser divulgado ou não sempre esbarra na questão da liberdade de expressão. No tocante à sensação de insegurança que afeta as pessoas, vários estudos mostram que a mídia pode até exercer um impacto, mas pequeno.

JOSEF BARAT – A propósito do crime organizado, que acredito ser o maior problema de todos, há uma frase de Millôr Fernandes que se encaixa bem. Ele diz que no Brasil não há crime organizado, o que há é Estado desorganizado. Então, é mais fácil o crime se infiltrar no Estado do que o contrário. Hoje, o crime está muito mais preparado tecnologicamente do que o próprio Estado. Qual é a perspectiva disso, como você vê o futuro? A tendência é de agravamento desse confronto?

MESQUITA – Temos de considerar duas estratégias: investir contra o crime e aperfeiçoar os mecanismos de gestão democrática do Estado. Precisamos conhecer o crime organizado e combatê-lo, mas o Estado deve estar institucionalmente preparado para isso, bem gerido. O argumento dos que são contrários ao emprego das forças armadas na segurança pública baseia-se no fato de que elas não estão preparadas para executar esse trabalho. Então, nas condições em que nos encontramos, a prioridade é a institucionalização, no Estado, e o aperfeiçoamento dos mecanismos de gestão.

BARAT – As forças armadas são tão conscientes disso que nunca quiseram entrar nesse combate. O que acontece é que, assim como houve a contaminação das polícias, o que os militares mais temem é a contaminação das forças armadas. Vira e mexe tomamos conhecimento de movimentos demagógicos que pedem a presença dos militares como se isso fosse resolver o problema. O fortalecimento institucional vai pelo caminho de especializações, de ações bem-estruturadas. Aparentemente, a polícia federal tem agido dessa forma.

MESQUITA – No início dos anos 1960, o governador paulista Carvalho Pinto encomendou nos Estados Unidos e o presidente Jânio Quadros na Inglaterra estudos sobre a polícia brasileira com o intuito de diagnosticar problemas e ditar recomendações. Os estudos foram realizados, só que o inglês foi engavetado, não teve desdobramento. No caso do americano formou-se um convênio, não me lembro agora qual o órgão financiador, com vistas a uma série de reformas na polícia paulista. O resultado principal foi a estruturação da polícia federal, em 1964, com verbas desse convênio. Não houve mudanças nem na polícia civil, nem na polícia militar do estado, que era o objeto principal do trabalho. Interessa dizer que muitas das recomendações desses estudos de 40 anos atrás continuam atuais. 

 

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