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A questão do crescimento
O papel das reformas micro e macroeconômicas no desenvolvimento
SAMUEL PESSÔA
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O professor Samuel Pessôa, pesquisador nas áreas de economia regional e crescimento econômico, esteve presente no dia 12 de abril de 2007 no Conselho de Economia, Sociologia e Política da Federação do Comércio do Estado de São Paulo, Sesc e Senac, onde proferiu uma palestra sobre a recuperação da economia argentina e a situação atual da economia brasileira.
Reproduzimos abaixo sua exposição e o debate que se seguiu. Os gráficos exibidos durante a apresentação constam apenas na edição impressa da revista.
A recuperação da economia argentina levanta algumas questões sobre as quais vale a pena pensar. Quando ocorreu a forte crise da Argentina e o país interrompeu o pagamento da dívida externa e adotou uma série de políticas, diversos analistas imaginaram, como eu, que a recuperação seria menor e muito menos aprofundada do que de fato foi. Pensávamos desse modo porque a perda de produto no período da crise foi muito acentuada. Mas o crescimento fez com que o país atingisse e até superasse o nível anterior à grande crise por que passou. Isso significa que alguma coisa a mais estava acontecendo.
Alguns economistas avaliavam que esse crescimento adicional devia-se essencialmente a um mix de política macroeconômica correta, que contrastava fortemente com as escolhas que estávamos fazendo no Brasil. Portanto, deveríamos olhar para o país vizinho e aprender. Qual seria esse mix? Era uma política que instituía uma taxa real de juros muito mais baixa e desvalorizava o câmbio. Isso fazia com que a demanda sobre os bens produzidos internamente fosse muito maior, o que gerava um crescimento de tipo keynesiano. Os economistas diziam: "E, no Brasil, o que estamos fazendo? A política monetária está muito apertada, a taxa de juros muito elevada, o câmbio valorizado. É por isso que não crescemos. A gente tem de olhar para a Argentina e aprender com eles".
Essa explicação não procede, e nossa interpretação é completamente diferente. Não acredito em crescimento sustentável estimulado por demanda agregada. A maneira como interpretamos John Maynard Keynes é um pouco excessiva, particularmente no caso dos economistas brasileiros. Crescimento econômico no longo prazo é sempre uma questão de oferta. Afinal, a preocupação básica do mundo é a escassez, não a abundância. Vivemos o problema da escassez. Há, evidentemente, períodos de abundância por manejo da política econômica. Na situação normal das economias de mercado, o crescimento no longo prazo é sempre ligado à oferta e aí temos de olhar as determinantes da oferta, avaliar o que está acontecendo com o marco institucional, com os marcos regulatórios, com a estrutura tributária e principalmente com o sistema educacional do país para vislumbrar o que acontecerá no longo prazo.
Modelo chileno
Nossa interpretação sobre a recuperação argentina tem certo paralelismo com a evolução da economia chilena de uns 15 anos atrás. No período Carlos Menem-Domingo Cavallo foi adotado um plano de estabilização com âncora cambial, câmbio fixo e muitas outras medidas microeconômicas. Foi realizada uma reforma trabalhista muito mais profunda do que tudo o que fizemos no Brasil. Eles também avançaram muito nas privatizações. Abriram a economia e fizeram uma reforma tributária e previdenciária profunda. Hoje 50% dos trabalhadores argentinos estão no regime de capitalização. Transpuseram o modelo chileno para a Argentina. A teoria econômica diz que com essas reformas a economia deve crescer. No entanto, não observamos naquele período uma aceleração do crescimento. Por quê? Porque a política macro estava errada, pois o câmbio fixo foi adotado num momento em que a economia internacional produzia inúmeros choques externos. Pode-se adotar o câmbio fixo quando há certa bonança ou quando a economia do país está ligada a um vizinho forte, com o qual possui uma relação econômica muito consistente, e esse não era o caso da Argentina naquele período. Assim, as políticas microeconômicas corretas não puderam mostrar sinais positivos. Após a crise, mudaram o padrão cambial e, mesmo com uma política monetária errada, diversos outros pilares macroeconômicos foram consertados. Em particular e de forma muito importante, para o nosso caso, a política fiscal argentina é extremamente conservadora. Néstor Kirchner, apesar de seus arroubos meio populistas e do jeito espalhafatoso, do ponto de vista fiscal é extremamente conservador.
A Argentina tem produzido superávits primários nos últimos anos e a relação dívida-PIB está caindo. É claro que isso se deve também aos juros artificialmente baixos, mas esse erro está mostrando sua cara com o aumento da inflação. O principal é que, ao compor minimamente um mix de política macroeconômica, criou-se um espaço para que se apresentassem aquelas alterações institucionais que aumentaram a eficiência da economia. Portanto, minha interpretação é que esse fôlego adicional, surpreendente para diversos analistas, é fruto de reformas institucionais feitas anteriormente.
No Chile, logo após o golpe militar, ocorreu uma dinâmica parecida. Quando Augusto Pinochet assumiu, iniciou uma série de reformas microeconômicas, adotando simultaneamente um padrão cambial rígido no final dos anos 1970, início dos 1980, período em que o mundo estava produzindo muitos choques externos. Com política macroeconômica errada e microeconômica certa, o Chile ficou estagnado. De repente, em meados dos anos 1980, apareceu o milagre, que veio das reformas microeconômicas que tinham sido feitas.
No Brasil, no período do marechal Humberto de Alencar Castello Branco também houve muitas reformas institucionais. Quando o ajustamento macro terminou, o país cresceu, o que se chamou depois de milagre econômico. Hoje temos evidências empíricas de que é perfeitamente possível atribuir o milagre a diversas mudanças institucionais, às reformas microeconômicas feitas por Roberto Campos e Octávio Gouvêa de Bulhões.
A hipótese básica deste estudo é que existe uma relação estável entre o produto agregado e o emprego dos fatores de produção. Vou avaliar não o produto da economia, mas o produto por trabalhador. Tenho interesse no que está ocorrendo ao longo do tempo com a produtividade do trabalho nas economias. Para isso suponho que exista uma relação estável entre a produtividade no trabalho e os fatores de produção. Os fatores de produção que vou considerar são a relação capital-trabalho e o capital humano embutido no trabalhador – o capital físico e a educação. O que se deve observar nos países é o capital por trabalhador, a escolaridade média da população economicamente ativa, medida em anos de estudo, o produto por trabalhador e a produtividade no trabalho. Por meio de técnicas estatísticas, consegue-se estimar o impacto da relação capital-trabalho sobre essa produtividade. Posso calcular, em média, quanto uma unidade a mais de capital vai gerar de aumento de produtividade no trabalho. Também consigo avaliar o impacto da elevação da escolaridade sobre esse aumento. A partir desses dois parâmetros, posso saber quanto o produto de uma economia deve crescer.
Produtividade
Ao analisar a produtividade total dos fatores na América Latina dos anos 1950 até hoje verificamos que o padrão entre os maiores países é muito parecido. Há uma elevação dos anos 1950 até meados dos anos 1970 e depois uma queda – neste caso, com exceção do Chile. Entre 1980 e 1984 houve a queda que mencionei e depois temos o milagre chileno, até hoje. O Brasil segue o padrão latino-americano. Começou em 1950 muito abaixo dos vizinhos, mas depois os alcançou e passamos pelo processo de redução da produtividade a partir dos anos 1980.
Já com os Tigres Asiáticos ocorreu exatamente o contrário. Eles eram muito pouco produtivos nos anos 1950, mas houve um processo contínuo de aumento dessa produtividade.
O que quero dizer é que o crescimento econômico depende de alguma coisa que não sei direito o que é. Pego a evolução do produto, tiro o que é devido à acumulação de capital e o que se refere à evolução da educação e sobra uma coisa enorme que não sei explicar. Então o que a produtividade total dos fatores representa? Ela pode representar recursos naturais. Isso talvez explique a produtividade dos países do leste asiático. Sabemos que a Ásia é uma região muito pouco dotada de recursos naturais, ao contrário da América Latina. Mas é possível refazer essa conta. Em vez de considerar o produto por trabalhador, podemos destacar o produto líquido do valor adicionado no setor mineral, alguma medida de recursos naturais, e os resultados não vão mudar muito. Então a evidência que temos, pelo menos dos anos 1980 em diante, com algumas exceções, como a Arábia Saudita e a Venezuela, é que esses números não vão mudar muito se tivermos uma medida de produto por trabalhador que exclua o valor adicionado no setor mineral ou agrícola.
A produtividade pode ainda representar a má alocação de fatores, e acredito que esse é o parâmetro mais importante. Hoje é quase consensual entre os economistas uma volta para Adam Smith, esquecido durante algum tempo no século 20. Keynes trouxe um pouco desse efeito ruim ao pensamento econômico.
Hoje temos a visão de que o desenvolvimento econômico é um fenômeno institucional. As instituições são um conjunto de regras que vigoram em certa economia num dado período. Essencialmente elas estabelecem as regras do jogo que vai coordenar a interação entre os agentes econômicos. Regras que fixam os retornos privados, que são os benefícios líquidos dos custos privados das ações dos agentes econômicos. Ora, sabemos que qualquer ação de um agente econômico numa economia de mercado vai ter retorno social, um impacto na sociedade. E sabemos também que ela vai ter um retorno privado, que é a forma como o indivíduo se apropria daquele retorno. Sempre que as regras que vigoram numa economia tornam os retornos sociais, conseqüentes das ações dos agentes econômicos, muito distantes dos retornos privados, essa economia apresenta problemas de desempenho. E haverá um grande número de pessoas e de fatores de produção alocados em atividades que geram retorno privado, mas não social, desde a atividade criminosa até a corrupção, a burocracia e coisas assim.
Existe hoje uma forte evidência de que os países subdesenvolvidos têm instituições ruins, que organizam a maneira de abrir e fechar negócios. O custo do Judiciário para mover uma ação de recuperação de um cheque sem fundos ou para entrar com uma ação de despejo contra um inquilino inadimplente não depende de o país ser rico ou pobre, mas minimamente de um juiz e de alguns procedimentos. A evidência que temos é que esses procedimentos são muito piores nas economias pobres do que nas ricas e que essa falta de qualidade não se deve ao fato de a economia ser mais pobre. Pode haver barreiras à adoção de tecnologia, problemas de qualidade de capital e ineficiência. Por exemplo, os impostos em cascata fazem com que duas empresas que estejam em posições sucessivas na cadeia de produção achem ótimo juntar-se, promovendo uma verticalização, mesmo que do ponto de vista tecnológico e de negócios não seja mais eficiente fazê-lo. O produto social vai cair, mas o retorno privado das duas aumentará, porque deixarão de pagar um imposto.
É nesse sentido que a má estrutura tributária pode produzir dessintonia entre o retorno privado e o social. Ou quando há uma legislação que estimula a rotatividade no mercado de trabalho, que faz com que trabalhadores e empresas negociem ex post, ou seja, depois de findo o contrato de trabalho, todas as questões. Então há uma rotatividade grande que tem conseqüências sobre a acumulação de capital humano específico e sobre a evolução da qualificação do trabalhador. Tem impacto também na produtividade, pois aquele trabalhador ficará menos produtivo do que se tivesse uma relação profissional mais estável.
Todos esses fatores têm influência sobre aquele resíduo que não sei dizer exatamente o que é. O que podemos analisar hoje é uma base de dados suficientemente sofisticados que permitem associá-lo a fatores microeconômicos dessa natureza.
Como então elevar a produtividade total dos fatores? É preciso fazer reformas – administrativa, do mercado de trabalho, trabalhista – e retomar o processo de parcerias público-privadas. Onde for possível, privatizar mais, fazer mais concessões. Esse é o marco conceitual que norteia esta análise, como norteou aquela feita sobre a Argentina.
Nacional-desenvolvimentismo
Vejamos a experiência de crescimento do Brasil nos últimos 50 anos. Podemos separar essa trajetória em três períodos. O primeiro, de 1950 a 1980, é o do nacional-desenvolvimentismo. Não acredito que o regime militar tenha introduzido qualquer inovação muito forte no projeto de desenvolvimento econômico do pós-guerra. É surpreendente, há uma continuidade. O único período de alteração foi o do presidente Castello Branco, que na verdade foi uma exceção, pois logo depois voltamos ao mesmo padrão de política econômica que vigorava desde o pós-guerra, o do nacional-desenvolvimentismo. Depois veio a década de redemocratização e, mais tarde, o período que vivemos hoje, de reformas e de avanços na área social.
O nacional-desenvolvimentismo era essencialmente um conjunto de políticas que incentivavam a acumulação de capital físico, com carência de estímulo à pesquisa em agricultura tropical. O setor público estatizou os serviços de utilidade pública, que eram privados na primeira metade do século passado. A economia era muito fechada, com desequilíbrio macroeconômico recorrente. Houve um descuido brutal com a educação, principalmente a básica, e com a saúde pública. Ocorreu forte intervenção na economia, principalmente no mercado financeiro. Havia políticas de estímulo à indústria, mas setoriais. Surgiram inúmeros projetos faraônicos, com taxa de retorno extremamente duvidosa. Além dessas características, foi um período em que o Brasil enfrentou a transição demográfica.
Os resultados foram uma forte migração para os centros urbanos, favelização e, após 1980, aumento da criminalidade. Restou uma elevadíssima dívida social e a industrialização, que foi bem-sucedida no intento inicial, de nos tornar auto-suficientes e independentes do mundo, não gerou progresso social. Em 1955, mais da metade da população infantil estava fora da escola. A sociedade era absolutamente maluca, esquizofrênica. É até difícil achar adjetivos para ela. De lá para cá, o Brasil melhorou muito. Quando provavelmente 50% ou mais das crianças de 7 a 14 anos estavam na rua, a sociedade preferiu colocar dinheiro público na transferência da capital do Rio de Janeiro para Brasília.
A partir de 1930, o Brasil tornou-se uma economia muito mais fechada aos imigrantes e a população cresceu devido ao aumento da natalidade e à redução da mortalidade. Foi um processo de transição demográfica, que começa em 1930 e tem seu auge em 1955, quando a taxa começa a cair. No período em que decidimos deixar crianças fora da escola e construir Brasília, estávamos no pico da transição demográfica, período em que mais nasciam crianças.
No que tange aos gastos públicos com educação em relação ao PIB, a esquizofrenia da sociedade brasileira novamente se faz presente. De 1951 a 1970, gastávamos apenas 1,5% do PIB em educação – e, até 2001, os dados permanecem inferiores a 5%.
Quanto à criminalidade, uma forma de entender sua progressão é analisar dados demográficos. No censo demográfico de 1980, levantamos a natalidade por município, a quantidade de mães adolescentes e o número de crianças de zero a 5 anos que viviam sem o pai, sem a mãe ou sem os dois. São indicadores de desajuste social que ajudam a explicar 50% da variabilidade. Há uma indicação forte de que crime violento é produzido por desajustes sociais décadas antes. Não dá para fugir disso. Assim também, quando se cometem erros de política econômica, hoje, haverá resultados muito persistentes décadas à frente.
Por que embarcamos no nacional-desenvolvimentismo? Os economistas dão em geral duas explicações para isso. Uma é de economia política, ou seja, grupos que vão se beneficiar fazem pressão para que as escolhas sejam feitas dessa forma, mesmo que não sejam mais interessantes para a sociedade como um todo. Penso que só a economia política não explica um erro tão dramático como aquele. Há uma coisa que chamo de ideologia ou visão de mundo, que o historiador de economia Douglass North, um intelectual que trouxe Adam Smith de volta para a teoria do desenvolvimento econômico, chama de modelos mentais compartilhados. Por algum motivo difícil de entender, sociedades que têm uma evolução comum formam certas maneiras de interpretar os acontecimentos. O fato econômico é extremamente sofisticado e fica difícil estabelecer aí relações de causa e efeito. Então a sociedade tem certos modelos mentais simples para canalizar os fatos. Penso que existia uma visão de mundo, principalmente entre as elites na América Latina, em que a industrialização tinha de ser feita a qualquer custo, porque os países centrais nos exploravam de alguma forma. Isso era uma ideologia, segundo a qual, essencialmente, nossos problemas estão no tipo de interação que estabelecemos com o resto do mundo, não dentro de nós.
Vejamos o exemplo da Light, responsável, entre 1910 e 1940, por geração de energia elétrica, transportes urbanos, telefonia. Houve um lento processo de estatização nesse setor. Na época, não havia sinais evidentes de falta de oferta. A partir dos anos 1950, começamos a observar sinais da carência de oferta e redução da qualidade dos serviços. A partir dos anos 1960, a geração tornou-se quase que totalmente pública. Em seguida à estatização da empresa, não houve redução das tarifas nem melhora significativa dos serviços. Nos anos 1990, a Light foi novamente privatizada.
Marcelo Jourdan, um aluno meu que acabou de fazer uma brilhante dissertação de mestrado, calculou a taxa interna de retorno da Light. Será que os acionistas canadenses exploraram os consumidores brasileiros? Entre 1899 e 1978, a média foi de 3,5% em dólares constantes ao ano. É uma taxa medíocre, e os acionistas não ficaram ricos. No período da República Velha, tirando a 1ª Guerra Mundial, quando houve uma depressão internacional, o marco regulatório era de uma rentabilidade relativamente alta, alguma coisa como 7,5% ao ano, que ainda é pouco. A partir do Estado Novo, começou o controle tarifário e a rentabilidade despencou. Foi esse fato que obrigou o setor público a assumir as áreas de utilidade pública. O problema é que estávamos no auge da transição demográfica, com uma quantidade grande de crianças para cuidar. Houve então uma clara deterioração da rentabilidade da empresa a partir do Estado Novo. Na República Velha, havia um marco regulatório – a cláusula ouro –, que vinculava 50% da tarifa ao preço do ouro. Era uma maneira de ter garantia cambial, já que o capital que havia dado origem àquele investimento era externo. Meio parecido com os contratos assinados no governo Fernando Henrique Cardoso, que tinham como indexador o IGP [Índice Geral de Preços], que tem muito a ver com o câmbio.
O plano de Gudin
Havia modelo alternativo ao nacional-desenvolvimentismo? Podíamos ter adotado o modelo da Coréia, que é parecido, mas com características diferentes. Houve lá muita interferência do setor público, como aqui, mas os coreanos fizeram três coisas diferentes: mantiveram a economia aberta, a macroeconomia em ordem e promoveram forte investimento na área social. Para adotar aqui o modelo coreano, devíamos produzir uma taxa de poupança muito acima daquela que a sociedade estava disposta a fazer naquele momento. Teria de ser 50% maior, o que significa que a carga tributária seria muito superior ao que foi. Uma alternativa era a linha proposta por Eugênio Gudin, um economista 50 anos à frente de seu tempo. Ele dizia: dadas as restrições que o Brasil tem, o melhor a fazer é colocar a macroeconomia em ordem, investir em progresso técnico na agricultura tropical, desenhar um marco regulatório e deixar para o setor público somente as utilidades públicas. Mais: forte investimento na área social, principalmente em educação, e alguma proteção à indústria. Esse era o plano de Gudin, infelizmente não adotado.
A década de 1980 é um período de transição, choque de juros, crise externa, redemocratização, planos de ajustamento e Constituição cidadã, fatores que vão afetar a política econômica nos anos seguintes. Na década de 1990, tivemos a liberalização comercial e da conta de capital, privatizações e concessões e a estabilização da economia. E começamos a conviver com o problema fiscal latente, fruto da nova Constituição. Ele foi resolvido inicialmente com o endividamento externo, depois interno, e em seguida com a elevação da carga tributária. Mas avançamos em alguns pontos, como na universalização da educação, no sistema público de saúde, na aposentadoria rural, no Bolsa Família e em outros programas sociais. Na questão atuarial da previdência, principalmente no INSS [Instituto Nacional do Seguro Social], houve forte redução de investimento público e, apesar disso, o Estado não é perdulário, mas é muito ineficiente.
No início de 2006, a imprensa acreditava que havia muita gastança no governo Lula. Às vezes um jornalista usava um dado como este: o gasto do Planalto multiplicou por dez no governo atual em comparação com o anterior. Ou escolhia um gabinete ou ministério e registrava despesas com passagens aéreas e coisas dessa natureza, dizendo que haviam triplicado. Esse tipo de análise não pode ser feito com fatos pontuais. Por exemplo, no caso do Planalto ocorreu uma opção organizacional do governo, que não sei se é correta ou não, provavelmente não, de concentrar a coordenação técnica dos ministérios na Casa Civil, no período de José Dirceu. Diversos funcionários foram transferidos para esse ministério, por isso o gasto do Planalto subiu tanto. Isso não é gastança. Outra dificuldade é que, quando se olham as contas públicas, há uma rubrica chamada OCC, que significa "outros custeios de capital", que é uma caixa-preta. Ela mistura gastos de naturezas muito diferentes, desde custeio propriamente dito – compras de material, passagens aéreas, ligações telefônicas – até alguns programas sociais como o Bolsa Família. Isso aumenta muito o gasto da rubrica. Essa é uma questão a ser debatida, mas não posso dizer que aumentar despesas com o Bolsa Família seja gastança, porque é um gasto finalístico e tenho de concordar com o governo. Muitas das contratações que o governo Lula fez no primeiro mandato foram fruto de decisão judicial, que não permitiu que diversos serviços terceirizados no governo anterior continuassem dessa forma. O Estado brasileiro é muito caro, mas não é perdulário. Para alterar isso, é preciso mudar a lei. Com o marco institucional vigente, seja quem for o presidente, não vai melhorar muito.
Crescimento baixo
Portanto, vivemos hoje um ciclo que chamo de baixo crescimento. O gasto público eleva-se, a carga tributária sobe e o investimento público cai para manter o resultado primário elevado. O aumento do gasto público pressiona a demanda agregada, que tem impacto sobre a inflação. Vimos isso em 2004. Por outro lado, a elevação da carga tributária e a diminuição do investimento público reduzem a rentabilidade do investimento privado, desestimulando-o e gerando baixo crescimento. Dadas as regras existentes, isso faz com que o gasto público como fração do PIB aumente e a carga tributária segue atrás para que o resultado primário não caia e para que a inflação não volte. E estamos patinando há um bom par de anos nesse ciclo.
Em 2006, aconteceu uma coisa engraçadíssima. O presidente do Peru, Alejandro Toledo, terminava seu mandato de quatro anos, período em que o país cresceu 10% ao ano, e tinha apenas 10% de popularidade. Em contrapartida, Lula, que havia produzido um crescimento de 3,2%, tinha enorme popularidade. Como se explica isso? A sociedade tem um sistema político democrático que funciona bem e a demanda popular é pela redistribuição e não pelo crescimento. Toledo produziu crescimento sem redistribuição, Lula produziu estagnação com redistribuição.
O desafio que temos é expandir os avanços sociais, quebrando o círculo vicioso do baixo crescimento. Lamentavelmente, não tenho resposta para isso. Algumas pessoas têm uma saída simples, como a senadora Heloísa Helena, que como candidata à presidência defendia o corte no gasto com juros. Ao cortar essa rubrica do orçamento público, todos os nossos problemas estariam resolvidos. Não é só ela que pensa assim, uma boa parte da sociedade tem essa visão. Então, existe um bode na sala, que é o custo fiscal de rolagem da dívida pública. Lamentavelmente, esse custo é muito menor do que gostaríamos que fosse. Imaginemos uma relação dívida-PIB de 50% (hoje sabemos que é de 45%) e uma taxa de juros de 15%, que é a taxa média. Sabemos que o governo acumulou muitas reservas, que reduzem a dívida líquida, porque são o ativo. Mas elas têm um custo de carregamento grande, porque rendem para o governo muito menos do que ele paga nos títulos públicos. Então a taxa média de juros que o governo paga é maior do que a da Selic. Quero fazer um exercício hipotético para descobrir quanto vai sobrar no orçamento se os juros caírem. Primeiro, tenho de tirar a correção monetária. O que o governo gasta com juros nominais na correção monetária não é gasto público. E tenho de descontar o IOF [Imposto sobre Operações Financeiras] e a CPMF [Contribuição Provisória sobre Movimentação Financeira], ou seja, a carga tributária, porque o governo paga com uma mão e recebe com a outra. Tenho de ver juros líquidos de inflação e de impostos recebidos. Para tornar a conta ainda pior, esses impostos incidem sobre o juro nominal e não sobre o real. Fazendo a conta, com uma inflação de 4,5%, que é a meta, e IOF de 10%, porque alguns setores são isentos, para um juro nominal de 15%, teremos um juro real, exclusive impostos, de 8,6%. Se aplicarmos 8,6% numa relação dívida-PIB de 50%, vou ter 4,3%. Então, se os juros baixarem de 15% para10%, os encargos vão cair para 2% do PIB. O bode na sala é alguma coisa da ordem de 2% do PIB, não é muito maior do que isso. Essa é a má notícia que tenho para Heloísa Helena.
Juros e inflação
Por que os juros são tão elevados no Brasil? É evidente que nossa economia tem vivido um período de forte restrição de oferta. Qualquer expansão da demanda pressiona a inflação e os juros. Hoje, essencialmente, os juros não são formados no mercado de ativos, porque existe o medo de calote, de as pessoas retirarem os recursos do país. O excesso da demanda sobre a oferta é que mantém os juros altos. Mas temos uma notícia muito boa. Existe um componente do IPC [Índice de Preços ao Consumidor] que se refere a produtos não-comercializáveis, como o serviço de empregada doméstica, serviços pessoais, manicure, corte de cabelo, restaurante, serviços médicos e de utilidade pública. Refazemos as ponderações e construímos esse subitem do IPC incluindo só os serviços. É uma medida de bens e serviços, cuja inflação não está associada ao câmbio, mas ao equilíbrio entre oferta e demanda internamente. Quando o câmbio varia, a inflação sobe ou cai, porque há uma arbitragem de preços entre o mercado doméstico e o externo. De 2000 até maio de 2006, houve uma estabilidade, com exceção do pico provocado pelo medo de Lula em 2001, que gerou uma desvalorização muito grande e contaminou um pouco o índice de bens não-comercializáveis. Então tivemos seis anos de juros reais extremamente altos e a inflação paradinha em torno de uns 4,5%. A partir de janeiro, ela começou a ceder. Isso é uma mudança estrutural na inflação brasileira. A inércia inflacionária está sendo vencida. Existe espaço para a redução de juros nos próximos dois anos. Se o governo não fizer muita bobagem na área fiscal, poderá beneficiar-se desse fato e reverter de vez a dinâmica da dívida pública, e daqui a três anos poderemos chegar a uma relação dívida-PIB abaixo de 40%.
A previsão que eu tinha para o final do segundo mandato de Lula era de uma carga tributária próxima de 40% do PIB. O crescimento médio nos quatro anos seria em torno de 2,5%, a inflação ficaria estável e a relação dívida-PIB se reduziria para algo como 46%. Nesse momento estaríamos prontos para discutir o crescimento e para ter uma campanha eleitoral em que essa questão fosse enfrentada pela sociedade, o que não ocorreu na última eleição. Não se discutiram as questões difíceis, como os custos do desenvolvimento econômico.
Sendo bem conservador, quando olho de 1985 para cá, digo que a economia brasileira tem um potencial de crescimento 0,5% maior. Então, em vez de 2,5%, que é o que estou defendendo aqui, pode-se chegar com folga a 3 ou 3,2%. Há sinais de que nos últimos quatro anos o potencial de crescimento da economia brasileira aumentou um pouco. Então dá para dizer com certo conforto que nossa economia hoje tem um potencial de crescimento de 3,5%. Uma excelente notícia, porque melhora muito as condições de rolagem da dívida pública. Como o indicador de solvência importante é a relação entre dívida e PIB, se o PIB está 1% acima do que imaginamos, isso gera uma folga para o governo melhorar de vez a dinâmica da dívida pública.
Debate
JOSUÉ MUSSALÉM – A questão do nacional-desenvolvimentismo está presente em nossa formação ibérica, que nos faz pensar que o empreendedorismo cabe ao governo. No Brasil, seu pensador foi Celso Furtado. Quanto à criminalidade, ela tem a ver em alguns aspectos com o afrouxamento da legislação repressiva no Brasil, que veio com a Constituição de 1988, em contraponto ao que aconteceu no regime militar.
Uma pergunta: você disse que câmbio controlado só seria possível numa época de bonança na economia internacional. Será que está na hora de mexer na política cambial?
SAMUEL – Num país com as dimensões que temos, mesmo em situações de bonança internacional, o regime de câmbio fixo não se adapta muito bem, principalmente neste momento em que a comunicabilidade entre os países é muito grande. Penso que não é o caso de adotar o regime de câmbio fixo, o flutuante está funcionando bem. As séries macroeconômicas, após a mudança do regime cambial, mostram que a variabilidade da economia brasileira caiu muito. A valorização do câmbio provoca sempre um grande debate. Delfim Netto, por exemplo, um economista de primeira grandeza, diz que o grosso da valorização cambial é fruto do diferencial dos juros. Temos um superávit na balança comercial muito grande. A valorização cambial é compatível com o que está ocorrendo com esses valores.
Penso, diferentemente de outras pessoas, que está acontecendo uma reinvenção da economia brasileira em produtos primários. Temos grandes áreas agriculturáveis e muitos recursos naturais. Uma reespecialização da economia brasileira em produtos básicos me parece quase impossível de evitar, a menos que adotemos políticas tributárias e tarifárias muito radicais, que teriam impacto ruim. Há aspectos positivos nessa reespecialização, comparativamente ao período anterior, quando dependíamos do café. Hoje há grande diversidade de produtos, inclusive primários, minerais, animais e vegetais. Isso reduz o risco da economia. Por outro lado, para a produção desses bens existe uma estrutura econômica complexa, como usinas, indústria de bens de capital, implementos agrícolas, biotecnologia.
ROBERT APPY – No caso da Argentina, havia a Venezuela para ajudar o país a resolver o problema de seu calote internacional. Isso foi determinante, porque sem essa ajuda a situação seria diferente. Quanto ao Brasil, minha preocupação diz respeito ao câmbio. Se ele mudar, a inflação no Brasil também mudará. Penso que é essencial uma reforma tributária ligada a mudanças na previdência.
SAMUEL – Com relação ao câmbio e à inflação, é possível que a taxa real de juros esteja mais baixa do que estaria se não tivéssemos sofrido esse choque positivo de termos de troca. Se esse choque for revertido, o câmbio vai se desvalorizar e isso implicará uma subida da taxa Selic. E se o Banco Central fizer isso, a inflação vai subir, terá um período de alta e depois se estabilizará. Mas penso que o choque externo não será revertido integralmente, pois os chineses vão continuar trabalhando, estudando, poupando e investindo como loucos. Enquanto fizerem essas quatro coisas, vão precisar de nossos produtos. Mesmo que a economia americana desacelere, o preço das commodities não vai voltar aos níveis pré-choque.
JULIAN CHACEL – O exemplo da Argentina é didático. De fato, para conseguir um índice de crescimento acima da taxa realizada é preciso estabelecer uma sincronia entre as políticas micro e macroeconômica. Essa é uma lição importante que o professor Samuel Pessôa nos traz. Quanto à produtividade total dos fatores, que ao não poder demonstrar econometricamente ele denomina resíduo, o palestrante dá como explicação o marco institucional de um país, e aí surge uma forma de advogar as reformas para que esse resíduo possa se materializar.
Quanto ao nacional-desenvolvimentismo dos anos 1950, talvez não existisse naquela época a percepção acerca da importância dos estudos sobre educação. Na concepção de Robert Solow, a teoria do resíduo com outra conotação só se materializou entre nós a partir do fim da década de 1960 e se cristalizou nos estudos de Carlos Langoni.
SAMUEL – A percepção do papel da educação no desenvolvimento começou no final dos anos 1950, com o trabalho do Jacob Mincer, seguido por Gary Becker, em 1960, e Theodore Schultz, em 1961. Outros países tiveram essa percepção de alguma forma, mesmo sem os trabalhos desses pesquisadores, como a Coréia e o Japão, este cem anos antes. Mas é possível entender o fenômeno. Celso Furtado, nascido no sertão da Paraíba, foi um economista dos mais bem-preparados que tivemos. É estranho não ter percebido o papel da educação. Por que cometeu esse erro? Não encontramos a educação em nenhum de seus livros, mesmo nos mais recentes. Houve essa falha, dele e da sociedade brasileira. Essa é a tragédia do Brasil, hoje, pelo fato de não termos enxergado isso lá atrás.
ISAAC JARDANOVSKI – Será possível encarar qualquer mudança no país sem uma reforma política?
SAMUEL – Tenho opinião super-heterodoxa sobre esse assunto, pois penso que nosso sistema político funciona melhor do que se imagina. Tenho medo, portanto, de reformas profundas e preferiria mexer no sistema político pelas bordas. Como todo economista institucionalista, acredito que desenvolvimento institucional é incremental e as sociedades sofrem de miopia. De fato, nosso sistema político tem um problema que os cientistas chamam de democracia consensual, que produz no meio do processo muitos agentes com poder de veto. Portanto, ela gera uma forte tendência ao status quo, o que torna as mudanças muito difíceis e causa certa aflição em todos nós, que queremos reformas implementadas mais rapidamente para que o país cresça.
Por outro lado, certo conservadorismo no sistema político é bom, porque significa que as instituições são estáveis, mesmo que ruins. Então há uma estabilidade de regras, embora confusas e complexas. O Judiciário é extremamente estável em seus procedimentos. Temos de melhorar, sim, mas eu faria isso a partir de onde estamos, sem adotar o sistema majoritário simples, que é muito complexo. Precisamos diminuir o tamanho do distrito eleitoral, principalmente nos estados maiores. Um distrito como São Paulo, com 70 deputados, é muito grande. Poderia ser transformado em dez distritos de sete deputados ou sete distritos de dez deputados.
NORMAN GALL – Samuel, o mundo está flutuando num oceano de liquidez. Se houver um recuo e se Lula não reduzir as transferências para os estados e municípios, não mexer na previdência e não demitir funcionários públicos para produzir um drástico ajuste fiscal, quais são as possibilidades de aumento real da inflação?
SAMUEL – Em 2004, aprendemos que a economia brasileira tem uma crônica carência de oferta e o forte crescimento na demanda gera pressões inflacionárias. Estamos sofrendo um choque externo positivo e uma série de bens que vendemos estão valendo muito mais lá fora. Acredito que, se houver uma reversão, a taxa de juros real vai subir. Temos evidências de que ela está caindo. Se nada mudar, se continuarmos com a situação externa muito favorável, a Selic real daqui a um ano e meio estará em torno de 6%. Mas eu concordo, Norman, que se o cenário internacional se deteriorar, a Selic terá de subir, o resultado primário vai aumentar e a sociedade se defrontará com esse problema.
Acredito que na próxima transição governamental vamos ter mais quatro anos de semi-estagnação, mas com juro real baixo. Isso vai melhorar a qualidade do debate e chegará o momento de a sociedade voltar os olhos para si mesma e pensar um pouco mais nessas questões. Sou otimista, acredito que haverá um processo de reconhecimento desses problemas estruturais, associados a um marco institucional mal desenhado, que é fruto do contrato social assinado na Constituição de 1988. Feito esse reconhecimento, a sociedade dará um passo adiante.
MICHEL ALABY – É muito complicado comparar Brasil com Argentina, já que são países de tamanho muito diferente, sem falar na grandeza de nossa economia e na dependência argentina de poucos produtos comercializáveis. Concordo que estamos mudando a especialização do país para produtos agroindustriais. Mas deveríamos aproveitar este momento para dar um upgrade em nossa economia. A opção da política dos pobres é problemática, porque é preferível ser o último dos ricos a ser o primeiro dos pobres.
ISAAC – O Brasil deu um calote em 1988 e viveu por uns 15 anos uma situação de pária no sistema financeiro internacional. A Argentina deu um calote mais profundo há quatro ou cinco anos e o risco-país das duas nações é praticamente o mesmo. Como se explica isso?
MUSSALÉM – A liquidez excessiva pode ser um fator.
SAMUEL – Minha explicação é fiscal. Depois do calote, os argentinos adotaram uma política fiscal muito conservadora. Os investidores olham para a frente, não para trás. Uma política fiscal conservadora é o melhor sinal de que a economia não vai dar calote no futuro. Essa é a diferença. O Brasil, depois do calote, não mudou sua política fiscal, continuamos com hiperinflação e com diversos outros problemas.
ALABY – O que preocupa na Argentina é a intervenção muito forte do Estado, a manipulação no controle de preços. Concordo que alguns investimentos estrangeiros aportaram no país, mas, analisando esse portfólio, na maioria são de manutenção e não dinheiro novo. Tenho recebido notícias de que a maior parte das grandes corporações quer sair da Argentina. É um dado preocupante, mas os argentinos têm superado o Brasil, principalmente em relação ao trigo e à farinha, e têm nos atrapalhado no mercado mundial de carne.
NEY PRADO – Naquela explosão demográfica de 1950, tivemos dois fatores. Um, de cunho psicossocial, foi a mentalidade existente principalmente no nordeste de que a única proteção seria a proliferação, garantindo o futuro através dos filhos. O outro, um fato jurídico pernicioso, foi o salário-família. Será que o Bolsa Família não vai favorecer novamente a proliferação, como estímulo à produção de filhos? Isso não cria um problema sério no futuro?
SAMUEL – Existem evidências anedóticas de que isso está acontecendo, há uma ou outra reportagem a esse respeito. Quando conversamos com demógrafos, eles dizem que esse problema está resolvido, que a fecundidade está muito associada à educação da mãe, que aos trancos e barrancos nós universalizamos a educação e estamos melhorando, mesmo com inúmeras deficiências, o nível médio de escolaridade das futuras mães, e que isso vai resolver o problema lá na frente. Quanto ao dado novo que é a associação das políticas sociais ao número de filhos, não existem evidências empíricas, vamos ter de esperar o censo de 2010 para descobrir.
ADIB JATENE – Quando fui ministro da Saúde, disse no Senado que quem fazia o orçamento eram as grandes empresas. Você afirmou que Juscelino, em vez de aplicar em educação, construiu Brasília. Foi nessa época que se constituíram as grandes empreiteiras. Parece natural que o orçamento fosse deslocado para obras grandiosas e não para a população, que se urbanizou desordenadamente.
SAMUEL PFROMM NETTO – Minhas indagações são duas, a primeira sobre a universalização da educação no Brasil, mencionada em termos positivos. Há, no entanto, apreensões, dúvidas e até certo pessimismo a esse respeito, quando passamos dos indicadores exclusivamente quantitativos para a qualidade desse ensino. Existem indícios de que ocorreu uma indiscutível deterioração dos padrões em praticamente todos os níveis. Não seria exagero afirmar que presentemente estamos formando analfabetos e semi-analfabetos.
A segunda indagação diz respeito à criminalidade. Parece que entre nós predomina uma visão do crime individualizado, dando-se pouca ou nenhuma atenção ao gangsterismo corporativo no mais largo sentido dessa expressão e que envolve não só empresas, mas também órgãos públicos, aparelho jurídico policial, ONGs, etc. Há um livro de Michael Woodiwiss, Capitalismo Gangster, que acaba de sair em tradução brasileira pela Ediouro, que trata desse tema. Gostaria de levantar esse problema, que lá fora está sendo objeto de muita atenção, tanto na Europa como nos Estados Unidos e no Japão. Entre nós parece não encontrar muito eco.
ÁLVARO MORTARI – O senhor não mencionou o aspecto cultural dos latinos, a permissividade, o jeitinho, a Lei de Gérson, coisas incrustadas na sociedade, muito difíceis de mudar. Outra coisa: o presidente Lula costuma dizer que em time que está ganhando não se mexe. Como ele tem um percentual de aprovação popular muito grande, qual seria seu interesse em fazer reformas? Na verdade, estamos vivendo numa república populista sindical. A classe política, os sindicatos, os funcionários públicos não querem nenhuma mudança. Isso poderia gerar uma crise institucional, criando problemas até nas condições macroeconômicas. O senhor é muito otimista. Eu sou pessimista, porque estou vivendo o dia-a-dia.
SAMUEL – Com relação à educação, de fato existe um problema de qualidade. Mas temos de avaliar com cuidado a queda verificada no ensino médio. Antes ele era de altíssimo padrão para 1% ou 2% da população, tinha qualidade média para uns 10% e qualidade zero para quase todo mundo. O que havia de boa qualidade era para a elite. Então o ensino melhorou. É que nós temos a miopia de olhar aquele Estado que oferecia serviços, escolas e hospitais excelentes para 2% da população. Há outro aspecto: uma parte muito significativa da educação é fruto de casa. O conhecimento que as crianças levam do lar tem um impacto muito grande na escola. Tenho de separar a qualidade da escola da qualidade do aluno. Em geral, a escola pública de antigamente era muito boa, não só porque era pequena e atendia a uma fração muito reduzida da população, mas porque essa fração era composta por abastados, pessoas que chegavam aos bancos escolares já com muita bagagem.
PFROMM NETTO – Desculpe discordar. Toda a minha formação se fez em escola pública. Sou de família modesta e assistia às aulas ao lado de crianças de condições sociais e econômicas tão modestas quanto as minhas. Portanto, isso de dizer que era educação só para os filhos de famílias abastadas não é bem assim.
SAMUEL – Eu não disse isso, mas na sua época 60% das crianças estavam fora da escola. E desse número não há como escapar. Então não pode ser uma escola pública boa aquela que deixa 60% da clientela na rua.
NEY – Quer dizer que a quantidade qualificou?
SAMUEL – Não, o que estou dizendo é que existe certa nostalgia daquela escola. Temos de olhar aquele passado com visão mais crítica. Estou dizendo que aquela educação não era boa por dois motivos. Primeiro, por deixar 60% da clientela na rua e, depois, porque seus alunos eram provenientes dos melhores lares. Os imigrantes que chegaram ao Brasil, a São Paulo, particularmente, apesar de serem pessoas de baixo nível de escolaridade em relação à média de seus países, eram muito mais educados do que a média da população brasileira.
NEY – Por causa da cultura e não da educação.
SAMUEL – Não. A Europa universalizou o primário na segunda metade do século 19. Eles chegaram aqui pelo menos alfabetizados. Ora, uma pessoa alfabetizada no Brasil no começo do século 20 era muito culta para o padrão médio do país. Aliás, foi esse um dos motivos que fez com que os cafeicultores paulistas deixassem de lado a mão-de-obra brasileira e importassem trabalhadores da Itália. Houve uma terrível queda de qualidade por causa da expansão do ensino. O sistema educacional começou a absorver pessoas que vinham de um background familiar de gerações e gerações muito ruim em termos de conhecimento e cultura. O que é ensinar uma pessoa que chega à escola com um vocabulário inferior a 400 palavras?
A questão da educação me é muito cara. Existe mesmo um problema de qualidade. Uma boa notícia é que o atual ministro tem esse diagnóstico, diferentemente dos dois ocupantes da pasta antes dele. Ele lançou um programa de apoio à educação, em que está escrito: precisamos melhorar a gestão, existe um problema de accountability. Hoje temos a Prova Brasil, um grande instrumento, porque é censitária, atinge todas as escolas. Você consulta o Ministério da Educação, vê o nome e a nota da escola de seu filho. Então estamos com os elementos para melhorar a qualidade do ensino. Mas para isso teremos de enfrentar uma briga dura, pois será preciso mexer no contrato de trabalho do professor público.