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Maioridade penal
Conselho Superior de Direito discute redução de idade para responsabilidade criminal
Convocado para discutir a questão da redução da maioridade penal para 16 anos, o Conselho Superior de Direito da Federação do Comércio do Estado de São Paulo (Fecomercio) ampliou o debate para outros temas relativos à reforma da legislação penal, incluindo o próprio conceito de segurança pública e aspectos que dizem respeito a garantir, de fato, os direitos dos cidadãos contra o avanço da criminalidade e da violência.
A maioridade penal, a reforma da legislação e a maior eficiência da segurança pública enquanto questão de Estado sempre foram objeto de debates e tema de mudanças, mas passaram a fazer parte do dia-a-dia da população a partir de maio do ano passado, com a onda de ataques perpetrados pelo PCC e sua esteira de quase 50 vítimas, e a morte do menino João Hélio, no Rio de Janeiro, arrastado por vários quarteirões com o corpo preso pelo cinto de segurança. A ampla divulgação desses eventos causou comoção nacional.
As opiniões contrárias e favoráveis à redução da maioridade penal tiveram como base a Constituição e as interpretações que seu texto permite. O próprio presidente do conselho, Ives Gandra Martins, na condição de constitucionalista, disse que se, na Constituição de 1988, para decidir os destinos do país o menor (de 16 anos) pode votar, por analogia ele também pode ser punido. Assim, "se houvesse um movimento de jovens de 16 a 18 anos, com uma sólida liderança de alguém vocacionado para a política que criasse um partido, poderíamos ter um presidente da República escolhido por jovens dessa faixa etária. O que corresponde a dizer que para decidir o destino do país o jovem pode votar, mas em caso de uma decisão menor, não do destino do país, mas para cometer uma contravenção, um crime de maior ou menor importância, ele seria considerado inimputável, isto é, irresponsável".
Do debate, realizado na Fecomercio no dia 25 de junho de 2007, também participaram o deputado federal Arnaldo Faria de Sá (PTB-SP) e os conselheiros Damásio de Jesus, Bernardo Cabral, Cid Heráclito de Queiroz, Paulo José da Costa Júnior, Américo Lacombe, Antonio Penteado Mendonça, Ana Prudente, Antônio Nicácio, Rogério Gandra Martins e Marilene Talarico.
ARNALDO FARIA DE SÁ – O ano passado, por ocasião daquela onda de atentados provocada pelo PCC, houve tentativas de mudanças apressadas –com o Senado e a Câmara disputando o privilégio entre si –, que não deram resultado. A questão da redução da maioridade penal será um debate difícil no Congresso. É emenda constitucional, exige maioria de três quintos, será difícil aprová-la e o problema da criminalidade entre os menores é acirrado pela falta de educação e emprego. Se reduzirmos a maioridade para 16 anos, quem usa o menor para se esconder do crime passará a usar os de 15, e se reduzirmos para 15 usarão os de 14, etc. De todo modo, coloco a Comissão de Segurança Pública da Câmara à disposição e subscreverei a proposta do Conselho Superior de Direito para transformá-la em projeto, porque é urgente. Demorar significa correr o risco de não ter mais nenhuma liberdade, em razão da insegurança pública.
IVES GANDRA MARTINS – Como constitucionalista estou convencido pessoalmente de que já na Constituição de 1988 poderia constar a menoridade em 16 anos, a punibilidade a partir dos 16 anos, pois esse próprio texto admitiu que o menor poderia votar. Se houvesse um movimento de jovens de 16 a 18 anos, com uma sólida liderança de alguém vocacionado para a política, que criasse um partido, poderíamos ter um presidente da República escolhido por jovens dessa faixa etária. O que corresponde a dizer que para decidir o destino do país o jovem pode votar, mas em caso de uma decisão menor, não do destino do país, mas para cometer uma contravenção, um crime de maior ou menor importância, ele seria considerado inimputável, isto é, irresponsável. Minha posição era de que se deveria fixar a menoridade em 16 anos. Prevaleceu a tese de que ele poderia votar com 16, mas no artigo 228 passou a ser direito e garantia individual que o menor seria irresponsável penalmente até os 18 anos. Agora, entretanto, não posso aceitar a alteração da Constituição por emenda constitucional, porque é indiscutivelmente direito e garantia individual do menor e, pelo artigo 60, parágrafo 4º, inciso IV, não pode ser emendado de modo a abolir direitos individuais. Entendo, portanto, que se trata de cláusula pétrea. Dessa forma, mesmo acreditando que o menor hoje efetivamente amadurece com muito mais rapidez, não vejo como modificar a lei. É minha única posição – não convencido da tese de mérito mas da tese constitucional – que não há possibilidade de uma emenda constitucional alterar o artigo 228 da Constituição. A grande dificuldade é como enfrentar o problema de uma cláusula pétrea originária colocada como direito individual sem provocar uma comoção nacional, pois se ela cair poderemos fragilizar o sistema constitucional brasileiro.
DAMÁSIO DE JESUS – A redução da maioridade ou da menoridade penal para efeito de crimes e contravenções se liga à criminalidade no sentido genérico. A criminalidade infantil ou juvenil é apenas uma face dessa tragédia. O problema não é de legislação. Se fosse assim, bastaria impor pena de cem anos para qualquer crime e ele estaria eliminado. Isso é absurdo. Não é solução alterar a lei penal criando novos tipos, aplicar penas cada vez mais severas, extinguir direitos do acusado durante o inquérito, o processo e a execução, a questão. O tema é prático, do dia-a-dia. O problema não é a maioridade penal, mas a falta de responsabilidade, de eficiência, de aplicação da lei. A lei existe. O Brasil é o país com maior número de leis penais. O Código Penal tem 361 artigos e milhares deles em leis esparsas, todas visando reduzir a criminalidade. Se o número de leis fosse importante para reduzir o crime, o Brasil seria o país com a menor taxa de criminalidade. É preciso levá-la a índices razoáveis, toleráveis. O que a diminui é a certeza e o medo da punição. A criminalidade aumenta porque não há receio de punição. Existem mais foragidos do que presos, mais fugas que detenções. Não há onde abrigar as pessoas e o número de criminosos é grande porque têm certeza de que não serão presos. No Brasil, depois do inquérito policial, do processo, da condenação e da execução, a dúvida é se em qualquer dessas fases existe um sistema criminal responsável, sério, eficiente, que realmente trabalhe. A resposta é não. A questão está menos na diminuição da criminalidade por meio da redução da maioridade penal, e mais em um contexto de educação, trabalho e distribuição de renda. Segundo a Constituição e o Código Penal, os menores de 18 anos são inimputáveis e, por isso, sujeitos ao Estatuto da Criança e do Adolescente. Inimputável é quem não consegue entender e saber. Com os meios de comunicação disponíveis há milhares maneiras de conhecer e saber. Em direito penal a capacidade de entender diz respeito ao conhecimento comum do certo e do errado, do que se pode ou não fazer. Assim, do ponto de vista do que o homem entende ou não, a menoridade pode ser discutida.
Sob o aspecto de imputabilidade, pode-se defender a redução da maioridade penal. No Código Penal de 1969, que nunca entrou em vigor, havia uma faixa entre 16 e 18 anos em que o adolescente podia ser imputável, dependendo de exame clínico. Se a Constituição for alterada e o Código Penal também, baixando a maioridade penal, como aplicar isso, se não conseguimos aplicar nem a lei penal ao maior de 18? Não há condição. Seria submeter os menores a um inquérito que não funciona, a um processo que não anda, a uma condenação que não é executada e a uma execução da pena que também não funciona. É a realidade de celas onde cabem apenas dez e há 80. Essa é uma maneira desumana de tratar o homem. Um criminoso ainda assim é um ser humano, que deve ser tratado com dignidade. Colocar um jovem de 16 anos no sistema criminal não vai resolver nada. As penitenciárias são escolas de criminalidade. Os grandes estelionatos se aprendem na penitenciária. É uma realidade. Em suma, no sentido técnico se pode discutir a redução da maioridade penal, mas não devemos aplicá-la, nem este é o momento. Isso pode valer em alguns países pequenos e de tradição milenar, mas não em uma nação em desenvolvimento e em que as idéias ainda estão sendo discutidas. O nosso conselho não é um conselho legal, mas jurídico, e o jurídico é muito mais que a lei. Por isso, minha argumentação foge ao plano da Constituição.
BERNARDO CABRAL – Quando estávamos saindo de uma excepcionalidade institucional para o reordenamento constitucional, surgiu esse problema, e defendeu-se a possibilidade de o jovem de 16 anos escolher o presidente da República. Àquela altura, o menor infrator já tomava conta do país – imaginem hoje, quase 19 anos depois. A assimetria entre quem vota e tira a vida de uma pessoa foi um lobby contra o fato de colocar um menor na mesma cela de um criminoso. Eu concordo com Ives, porque não se pode tirar uma garantia constitucional, e com Damásio, quando diz que as penitenciárias são depósitos de presos. O que fazer?
O problema sai um pouco da área penal, passa pela área constitucional, chega à jurídica, mas a população está perplexa. Não sei o que fazer para estancar o crime de uma hora para outra. Um dos vícios de origem do Brasil é a explosão populacional não controlada. Ela levou para a rua essa meninada, que, sem compromisso com a sociedade, enveredou para o crime.
CID HERÁCLITO DE QUEIROZ – O código de 1969, mencionado por Damásio, estabelecia como limite o 18º aniversário para a responsabilidade penal, e um dia antes a imputabilidade, mas condicionada a um exame clínico e provavelmente a uma decisão final de um juiz.
PAULO JOSÉ DA COSTA JÚNIOR – Uma das funções da pena é retribuir o mal com o próprio mal. A Lei de Talião impedia que a pena superasse o mal causado. A pena deveria redimir, deveria recuperar, mas lamentavelmente não o faz. Não conheço casos de recuperação. A pena não redime, e corrompe. A função verdadeira da pena é funcionar como um espantalho para atemorizar o delinqüente a praticar o crime. Não fosse pelo Judiciário, seria a favor da pena de morte e da pena de prisão perpétua. E como intimidar o jovem de 17 anos, se a pena não o atinge? É preciso reduzir a maioridade. Há muito luto por isso. O grande, fabuloso e inigualável Nelson Hungria me deu razão e mudou o código. Todos são iguais perante a lei? Não. O jovem de 17 anos pode votar e pode cometer qualquer fraude eleitoral. Só não é punido. Então nem todos são iguais. Um menor de 17 anos escolhe o presidente e não responde a crime? Não entende o caráter criminoso do fato? Não sabe que estupro é estupro? Ah, doutor Damásio, essa, não. Isso é ilógico, é inaceitável. Eu não vejo como não se possa retroceder. Ah, mas as penitenciárias estão cheias? Estão, mas é preciso esvaziar o Código Penal. Com sanções alternativas, penas administrativas pecuniárias, por exemplo, esvaziamos as cadeias. Sou favorável à punição, mas os menores devem cumprir pena dura separadamente, para a recuperação. É preciso fazer a pena funcionar intimidando o adolescente: "Se você fizer, vai para a cadeia". E esvaziar as cadeias dessa maneira. Não vejo como o direito constitucional retroage, o direito civil também, e o penal não. Não aceito. O grande Hungria se convenceu disso. Espero que Damásio se convença.
AMÉRICO LACOMBE – Não tenho a menor dúvida de que a maioridade penal poderia ser reduzida para os 16 anos porque quem vota para presidente, tem plena maioridade política, funda partidos políticos, participa da vida política da nação tem condições de ser responsável penalmente. Do ponto de vista lógico nada impede. Mas isso não resolve a questão criminal no Brasil. Nosso problema é educação, e não se investe nisso.
Sob o aspecto constitucional, é difícil aceitar por que a Constituição fixou a maioridade penal em 18 anos e deu aos menores entre 16 e 18 a garantia de um direito individual que é cláusula pétrea. A não ser que se construísse a inconstitucionalidade das normas constitucionais, que não tem a menor possibilidade de ser implantada e pegar no Brasil. Emenda constitucional, sim. O STF [Supremo Tribunal Federal] já declarou algumas emendas inconstitucionais. Mas a inconstitucionalidade das normas originárias da Constituição, porque contrariam princípios? Ora, temos na Constituição diversos conflitos entre regras e princípios. O que são as regras? São, evidentemente, exceções a princípios. Há o princípio geral da igualdade, todos são iguais perante a lei. Há o princípio da igualdade na lei e não perante a lei. Não há como voltar atrás no direito e garantia individual consagrados na Constituição. Só vamos resolver o problema da criminalidade no país com educação, desenvolvimento, distribuição de riqueza.
ANTONIO PENTEADO MENDONÇA – O Brasil tem 50 mil assassinatos por ano – mais do que houve em quatro anos de guerra no Iraque –, a imensa maioria desses mortos na faixa entre 15 e 25 anos de idade. Morrem 30 mil jovens em acidentes de trânsito em razão do consumo de bebida alcoólica por ano. A idéia da cláusula pétrea na Constituição é um absurdo. Um artigo da Constituição, por exemplo, impede que ela seja revogada em caso de golpe de Estado. É patético: cai o regime, modifica-se o sistema e por um artigo da Constituição ela continua sendo Constituição. Quanto custam socialmente 80 mil mortes de jovens por ano? O Brasil precisa fazer cumprir a pena. Se ela for de um ano e o condenado cumprir um ano, vai pensar duas vezes antes de cometer um determinado delito. Precisamos descobrir como o Brasil entra no mundo real e sai da teoria. Não temos educação, saúde, nada. Mas não é porque não se tem o resto que se vai permitir o crime.
ANTÔNIO NICÁCIO – Com a tecnologia da informação e a internet não se pode admitir que o jovem de 16 anos seja menor. Menores somos nós, eles são muito mais vivos do que a gente. Eu cumpro sempre a lei e não discuto problema constitucional. É preciso mudar a Febem [Fundação Estadual do Bem-Estar do Menor], para onde só deveriam ir aqueles recuperáveis. A legislação penal dos menores deveria ser refeita. É um absurdo: um menor comete um crime e continua sendo menor, apesar de ser maior. O Código Civil baixou a maioridade de 21 para 18 anos e não aconteceu nada. É preciso uma legislação penal específica, adaptável à realidade.
ROGÉRIO GANDRA MARTINS – Talvez seja um consenso a diminuição da menoridade, mas há a cláusula pétrea. É muito difícil quebrar essa barreira. A solução do problema criminal no Brasil é a educação, mas ela não gera dividendos políticos. Uma vez admitindo, por hipótese, que se baixasse a maioridade e se inserisse o menor hoje como maior imputável, teríamos um grande problema em termos de política penitenciária. Talvez seja possível reavivar a discussão da privatização de presídios, o que não significa que isso vai melhorar ou resolver o problema da criminalidade.
MARILENE TALARICO – A redução da menoridade não vai solucionar a situação. Talvez resolvesse mais uma ação integrada de educação, assistência social, desenvolvimento econômico e empregos e assistência à família desses menores.
DAMÁSIO DE JESUS – A privatização é conveniente desde que o poder de execução permaneça com o Estado. O que é possível é o poder público terceirizar determinadas tarefas, de modo que aqueles que trabalham nas penitenciárias não sejam necessariamente funcionários públicos. Mas advirto: se fizermos isso, não se abriria caminho para a corrupção?