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Farra do boi, uma brincadeira polêmica
Festa popular do interior de Santa Catarina divide opiniões
CELIA DEMARCHI
O pequeno município catarinense de Governador Celso Ramos, a 80 quilômetros de Florianópolis, está se tornando uma espécie de núcleo de resistência dos adeptos de uma prática centenária e altamente polêmica dos nativos do litoral do estado: a farra ou brincadeira do boi. Com 15 mil habitantes, espalhados ao longo de suas 23 lindas praias de areias finas e claras, por onde a top Gisele Bündchen costuma desfilar no verão, a cidade vive basicamente da pesca.
No início de junho, o auge da safra da tainha – que bateu todos os recordes em 2007 –, Santa Catarina fala pouco da farra do boi, que ocorre principalmente na Semana Santa. Mas neste ano foi diferente: enquanto os pescadores desembarcavam suas abundantes e vistosas cargas do peixe, a prefeitura de Governador Celso Ramos discutia a regulamentação da lei 542, que organiza a manifestação popular no município. Ao mesmo tempo, comunidade, ambientalistas, intelectuais e o Ministério Público do estado concentravam-se em encontrar novos argumentos favoráveis ou contrários a sua legalização.
Quem defende a farra do boi recorre à tradição e a descreve como um ritual quase inocente – embora de risco –, em que homens, mulheres e crianças divertem-se ao "desafiar" um boi bravo por horas até amansá-lo ou cansá-lo. Expõem-se desarmados à fúria do animal, correm do bicho e vão ao seu encontro, fustigando-o. Para seus opositores, além de perigosa, a prática resume-se a um ritual de puro sadismo contra animais indefesos, que são no mínimo expostos a um grande estresse e, no limite, agredidos e feridos pelos farristas.
Origem
As raízes da tradição que hoje divide a população catarinense, com ecos pelo Brasil inteiro, estão no arquipélago dos Açores – 2,4 mil quilômetros quadrados de ilhas transatlânticas, que os portugueses colonizaram no século 15 por sua importância estratégica à navegação, uma vez que o arquipélago se situa entre os continentes americano, africano e europeu, mais próximo deste último.
Em meados do século 18, Portugal enviou algumas centenas de casais açorianos ao Brasil, num esforço para melhor ocupar sua fatia do território sul-americano e cumprir o disposto no Tratado de Madri, assinado em 1750. Pelo acordo, os acidentes geográficos passavam a determinar as novas fronteiras entre as colônias portuguesa e hispânica, antes demarcadas pela linha reta do Tratado de Tordesilhas.
Entre 1748 e 1756, milhares de açorianos desembarcaram ao longo da costa de Santa Catarina e do Rio Grande do Sul, um contingente humano suficiente para suplantar a população local da época, segundo historiadores. As brincadeiras do boi seriam, assim, uma versão das touradas-a-corda, trazidas na bagagem cultural daqueles imigrantes, como relata o antropólogo Eugênio Pascele Lacerda, autor do estudo Bom para Brincar, Bom para Comer, baseado em trabalho de campo realizado em 1993 e considerado a primeira etnografia sobre a farra do boi.
Os descendentes dos nativos dos Açores mantiveram a prática, com pequenas variantes, dependendo da comunidade, ao longo das décadas. Eram camponeses e pescadores encenando, no espaço amplo e bucólico dos campos e das praias, um rito ancestral que Luís da Câmara Cascudo classificou em seu Dicionário do Folclore Brasileiro, de 1962, como uma das manifestações folclóricas da cultura do boi no Brasil.
Confronto
Na segunda metade do século passado, moradores de 60 comunidades espalhadas por 24 cidades litorâneas catarinenses, de Laguna a São Francisco do Sul, promoviam a farra do boi, até então praticamente desconhecida e sem repercussão alguma fora da região. A polêmica em torno da manifestação começou nos anos 1980 e cresceu a ponto de gerar, em 1997, um acórdão do Supremo Tribunal Federal (STF), que a caracteriza como crime e penaliza os participantes com multa e detenção, com base no artigo 225 da Constituição Federal, parágrafo 1º, inciso 7. E, em 1998, foi criada a lei federal 9.605, que dispõe sobre crimes ambientais, cujo artigo 32 se refere a maus-tratos a animais silvestres, domésticos ou domesticados. Desde a promulgação dessa lei, é ela que normalmente ampara as ações impetradas contra a farra.
O marco da disputa entre os farristas e seus críticos foram as tumultuosas comemorações da Páscoa de 1988, em Governador Celso Ramos. "O pessoal estava brincando com o boi no canto da praia, veio a polícia, matou o bicho e o levou arrastado", conta o jovem Michel Libânio, de 28 anos, repetindo relatos dos farristas da cidade, incluindo toda a sua família. Motorista de um mercado local, Michel é filho e neto de pescadores da comunidade de Calheiros. "Soltaram bombas de efeito moral, muita gente se machucou", lembra Gilma Libânio, de 45 anos, mãe de Michel.
Segundo a manchete do jornal local "O Estado", de 2 de abril de 1988, transcrita no estudo de Lacerda, a polícia militar deslocou 500 de seus homens para conter a confusão na pequena cidade, desmembrada do município de Biguaçu em 1963 e antigamente conhecida como Ganchos. Um grupo de farristas foi preso. A partir dessa data, a imprensa adquiriu um tom decididamente crítico em relação à farra do boi, amplificou a voz de seus opositores, especialmente os ligados a movimentos ecológicos, e projetou a brincadeira nacionalmente como um ritual selvagem de violência contra os animais.
Ambientalistas
Halem Guerra Nery, presidente do Instituto Ambiental Ecosul e, segundo afirma, fundador da primeira organização de proteção aos animais de Santa Catarina, em 1981, é um dos líderes do movimento contra a tradição, que também encontra resistência especialmente forte entre os gaúchos. "Criamos a entidade no rastro das crueldades verificadas na farra do boi, que se degenerou ao longo do tempo, refletindo a tendência à violência verificada em todo o planeta", diz ele.
Neste ano, o Ecosul e outras 49 organizações nacionais e internacionais subscreveram um manifesto, dirigido ao governo do estado de Santa Catarina, no qual pedem repressão à farra nos termos do acórdão do STF, comparando-a a rodeios e rinhas de galos e cães, e afirmam que sua prática denigre a imagem do estado. Numa outra frente, divulgam imagens de animais feridos ou mortos, que teriam sido martirizados em farras do boi, numa tentativa de comprovar que a tortura é a regra e até mesmo o pilar filosófico da manifestação.
As estatísticas da polícia militar de Santa Catarina, no entanto, desmentem essa tese. "Quando os farristas ‘brincam’ muito com o animal, podem feri-lo, mas isso não é comum", diz o tenente-coronel Anselmo Souza, chefe do Centro de Comunicação Social da corporação. "No máximo 10% dos animais que recolhemos apresentam sinais de maus-tratos, mas podem ser recuperados. Casos de sofrimento extremo, em que precisamos abater o boi, acontecem uma ou duas vezes por ano", acrescenta. "A finalidade dos farristas é brincar, e não maltratar o animal", diz uma policial.
Ao contrário do que alegam os ambientalistas em seu manifesto, os dados da polícia sugerem também que a farra do boi está em declínio em Santa Catarina: a corporação foi acionada e atuou, até maio deste ano, em 327 ocorrências em 22 comunidades, 19% menos que as 406 registradas no ano passado. Os números mostram ainda que os farristas concentram-se basicamente em Florianópolis (onde a polícia interveio em 166 manifestações, em 2007), Biguaçu (43), Itapema (24), Governador Celso Ramos (24) e Porto Belo (20).
Comunidades
A redução explica-se principalmente pela repressão policial, que inclui a apreensão de animais em trânsito, antes de chegar ao local da brincadeira, nos meses em que mais se realizam manifestações – de fevereiro a maio. Os ambientalistas também tentam minar a farra pelas bases: fazem campanhas nas escolas, segundo Nery, do Ecosul, com o apoio do Ministério Público, para estimular "o respeito a todas as formas de vida".
Mas a repressão gera um forte ressentimento nas comunidades e desperta resistência especialmente entre os pescadores: "Distribuem panfletos para as crianças nas escolas, onde aparecem um idoso com um pau, uma mulher com uma vassoura e um jovem com uma pedra agredindo um boi. Rasgamos tudo isso, que retrata uma mentira", diz Michel Libânio. "Fui criado nessa tradição, sempre brincamos com o boi. Não é farra, mas brincadeira. Quem mudou o nome para farra foi a RBS [Rede Brasil Sul]", afirma, referindo-se à rede de televisão gaúcha. "As pessoas que vêm até aqui e participam reconhecem que não existe a barbaridade mostrada na TV."
Segundo Libânio, a mídia veicula quase exclusivamente as imagens dos eventuais excessos ocorridos durante as farras, e não costuma exibir a manifestação como tradição cultural da comunidade catarinense. "Nesta Páscoa, vieram mais de 60 mil turistas para a cidade, a maioria por causa da brincadeira do boi. Brincamos quatro dias e não aconteceu nada de mais aqui. Quem se opõe à farra deveria se concentrar em assuntos mais importantes, como a onda de crimes em São Paulo, as crianças de rua", diz Libânio.
Os moradores de Pântano do Sul, antigo reduto farrista de Florianópolis, não promovem farras há cerca de dez anos: "Desde que a Hebe [apresentadora da rede de TV SBT] mostrou um boi invadindo o bar de um gaúcho", explica o motorista e filho de pescador Alcione Alcides Arsênio, de 48 anos. "Aqui havia bastante espaço aberto, mas veio muita gente de outros cantos. Se o boi entra na casa de alguém de fora, chamam a polícia. A comunidade sabe brincar com o boi, mas os de fora atiram galho, garrafa, puxam o rabo, perseguem de moto", diz Arsênio. "Tem quem faça isso, sim, mas aqui nós expulsamos essas pessoas da brincadeira", garante o pescador Lenírio Francisco Maria, de 37 anos, de Gancho de Fora, praia de Governador Celso Ramos. "O fato é que criticam a manifestação porque é coisa de gente humilde", opina Valmir Farias, de 67 anos, aposentado de São José, cidade da Grande Florianópolis.
Preconceito?
Para o antropólogo Lacerda, a rejeição à farra do boi se intensificou e passou a ser "tribunalizada" a partir da urbanização das praias catarinenses, consolidada nos anos 1980. Barulhenta e alvoroçada, a brincadeira incomoda os novos habitantes da costa, que não se identificam com esse modo de se divertir, a seu ver estranho e perigoso, e ainda temem eventuais danos materiais ou acidentes mais sérios que um boi enfurecido possa causar num ambiente urbano.
Lacerda oferece ainda uma outra pista para explicar a empedernida oposição aos farristas: "A farra foge aos padrões estéticos aceitos pela população urbana. A demanda cultural desses novos moradores é outra, algo como cinema, teatro. Daí o choque".
De fato, as tradições mais adocicadas têm a complacência dos críticos da manifestação: "Temos o boi-de-mamão, que é maravilhoso, o terno-de-reis e as oficinas de renda de bilro. É isso que devemos incentivar. Cultura é aquilo que é bonito", diz Nery, do Ecosul. "Ocorre que muitas vezes as mesmas pessoas envolvidas nesses tipos de manifestação também participam das farras", diz Lacerda. "A defesa da farra do boi reflete uma necessidade de reconhecimento da identidade da população costeira."
Caminho do meio
Governador Celso Ramos tenta assegurar um espaço legal para os farristas darem prosseguimento à tradição açoriana, que remete mais a um momento de descontração do que a um rito religioso. A farra acontece num dos períodos de entressafra da pesca, antes do início da captura da tainha, entre maio e junho: depois de meses embarcados e com dinheiro no bolso, os pescadores ficam em terra por um longo período, que também aproveitam para o lazer: "Aqui não há cinema, teatro, shows de música. Temos o direito de nos divertir do nosso modo", diz Michel Libânio.
No ano passado, o prefeito de Governador Celso Ramos, o peemedebista Anísio Anatólio Soares, resolveu ouvir a população para decidir o destino da manifestação na cidade. Criou uma comissão com um representante do Executivo, dois vereadores, advogados, historiadores e o antropólogo Lacerda. O grupo promoveu debates em cada bairro, de onde saíram representantes dessas comunidades para integrar a comissão.
"A população defendeu a regulamentação e decidiu adotar o nome ‘brincadeira do boi’, transformando a manifestação numa festa oficial do município. Foi o primeiro projeto de lei popular da cidade", conta Alcemir João Alves, secretário de Planejamento e Desenvolvimento Urbano de Governador Celso Ramos. Em março deste ano, a proposta, subscrita por 1,6 mil moradores do município – cerca de 15% de seu eleitorado –, foi aprovada pela Câmara e sancionada pelo prefeito.
Basicamente, a lei restringe a realização da brincadeira aos dez dias anteriores ao domingo de Páscoa, em local aberto mas delimitado, com bois bravos comprovadamente saudáveis e por apenas duas horas por animal, de modo a não cansá-lo exageradamente. Também obriga os farristas a se cadastrarem na prefeitura e os responsabiliza pela integridade física dos animais e participantes e ainda pelo patrimônio público e privado envolvido na festa.
O esforço não convenceu os ambientalistas e opositores da farra do boi. Eles são contra a manifestação, de qualquer modo, e prometem continuar lutando por sua extinção: "Não existe maneira de fazer a farra do boi sem maltratar o animal. Estressá-lo já caracteriza maus-tratos", resume Cristina Costa da Luz Bertoncini, promotora de Justiça da Defesa do Meio Ambiente da Comarca de Biguaçu. "A lei de Governador Celso Ramos é inconstitucional."
Em junho, a promotora abriu no Superior Tribunal de Justiça (STJ) de Santa Catarina uma ação direta de inconstitucionalidade com pedido de liminar – pede deferimento urgente, antes do julgamento do mérito.
Atração turística
O motorista e filho de pescador Alcione Alcides Arsênio nasceu e continua morando no bairro Pântano do Sul, em Florianópolis, onde já não se pratica a farra do boi. Hoje, ele participa das manifestações em Governador Celso Ramos. Na Semana Santa, a cidade que tenta legalizar a festa recebe até 60 mil visitantes de várias partes do país, especialmente de outras localidades catarinenses, e já transformou a "brincadeira do boi", como a denomina, em atração turística.
"Lá, a correria é diferente porque soltam um animal a cada meia hora. Muitos grupos levam boi, tem até grupo de mulher que compra e solta boi. Mas não perde a graça porque a farra é soltar o bicho e correr atrás dele", diz Arsênio.
Ele descreve a festa, que antigamente se realizava em Pântano do Sul, remetendo às presenciadas pelo antropólogo Eugênio Pascele Lacerda e relatadas em seu estudo "Bom para Brincar, Bom para Comer".
Segundo Arsênio, a brincadeira, em seu formato original ainda praticada em várias comunidades, começa quando um grupo de 10 a 12 homens se cotiza e, na noite de Quinta-Feira Santa ou Sexta-Feira da Paixão, sai em busca de um boi bravo (o mais bravo que encontrarem) para soltar no bairro, na manhã seguinte. Atualmente, um boi de campo não sai por menos de R$ 2,5 mil a R$ 3 mil, nessa época, na região.
Enquanto isso, as mulheres preparam comida para o consumo na madrugada e no dia seguinte – canjica, amendoim torrado, batata-doce, aipim, peixe. Assim, livres da cozinha, também elas terão tempo de participar da correria.
Os homens retornam em carreata com o animal. O momento da "soltura" é o mais aguardado: todos, inclusive as crianças, de modo mais ou menos ousado, querem persegui-lo e testar a própria destreza para escapar de seus ataques. "Às vezes, o boi entra no mato e passa a noite escondido. Todos desejam encontrar o bicho, mas ninguém quer ir na frente e quando o acha finge que não viu nada, que é para continuar o suspense", conta Arsênio.
No fim da brincadeira, o boi é pego no laço e rifado entre os participantes. O ganhador pode vendê-lo novamente. No passado, repartia-se a carne do animal entre os sócios da festa – era o momento da ceia, que fechava o ciclo da Semana Santa.
Hoje, os farristas chegam a brincar, anos seguidos, com o mesmo boi. Em Governador Celso Ramos, por exemplo, "sua majestade, Vermelhinho" entrou para a história da brincadeira – já completou 28 anos. Também são famosos os bois Anogueiro, Quebra-Canela e Fumaça. "Esses nunca amansaram", diz Michel Libânio, da comunidade de Calheiros.