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REVISTA E - PORTAL SESCSP

 

DURMA BEM

por Flávio Aloé

 

 

 

O sono causa curiosidade e já inspirou cultos de diversas civilizações antigas, até mesmo daquelas que o consideravam irmão da morte. Assunto rico em imagens visitadas ao longo da história da literatura e das artes em geral, esse estado de inconsciência já serviu de inspiração para as mais fabulosas histórias. Desde A Bela Adormecida até a Julieta de William Shakespeare, que engana a todos, fazendo-se passar por morta. Mitos e lendas à parte, o que persiste é o enigma que ronda o tema e que já manteve muitos médicos e cientistas acordados na busca por respostas. Até que os avanços da segunda metade do século 20 levaram luz a esse quarto escuro. Em 1953, é descrito pela primeira vez o chamado rapid eye movement (REM) - ou movimento rápido dos olhos -, que caracteriza um dos estágios do sono. Segundo o neurologista Flávio Aloé, coordenador do Centro Interdepartamental para os Estudos do Sono do Hospital das Clínicas, e convidado da seção Encontros desta edição, essa área da medicina pode ser considerada "relativamente jovem" em todo o mundo. Talvez por isso, continue a suscitar tantas dúvidas. Na conversa que teve com o Conselho Editorial da Revista E, Aloé esclareceu algumas delas e falou ainda sobre a insônia, mal que chega a atingir 30% da população. A seguir, trechos.

 

Um termo que achei muito feliz é "sonorexia". Existem a anorexia, um transtorno psiquiátrico em que se tem uma sensação errônea da imagem corporal - ou seja, a mulher jovem e magérrima que ainda se acha obesa e continua a tentar emagrecer -, a vigorexia, ligada a pessoas viciadas em exercícios, e a ortorexia, diagnóstico para as pessoas que têm obsessão por dietas naturais, vegetais ou que não comem comida com agrotóxico. Daí, por analogia, começou a se falar em sonorexia para se referir aos hábitos que levam as pessoas a trocar suas horas preciosas de restauro mental e físico do sono por outras atividades de trabalho ou lazer. A privação de sono é uma pandemia. Dados da National Sleep Foundation [Fundação Nacional do Sono], um órgão supra-institucional norte-americano, mostram que 65% da população dos Estados Unidos dormem menos que sete horas diárias e que 25% dormem menos que seis horas por dia. Isso é uma realidade na nossa sociedade industrial, capitalista, competitiva. Muita gente trabalha o terceiro turno. Ou seja, trabalha em um local, toma conta das crianças e às vezes tem de trabalhar no computador em casa ou fazer uma faculdade à noite. E a privação de sono causa o que todo mundo conhece: cansaço, sonolência, irritabilidade e desatenção. As conseqüências da privação de sono levam a um sofrimento psicológico e também resultam na diminuição da qualidade de vida - a pessoa fica sempre cansada e sem disposição. Isso sem contar que nossas crianças, pré-adolescentes e adultos jovens de hoje cultuam a internet, o que também pode causar privação de sono - uma vez que a luz emitida pelo computador é um estímulo de alerta. Adolescentes em formação escolar, com o cérebro em desenvolvimento, também sofrem com a privação de sono.

 

SONO NÃO SE REPÕE
Caso você durma quatro horas diárias durante três dias, no dia seguinte você não pode repor o sono perdido. O que você perdeu de horas de sono está perdido. E, com isso, seu organismo deixou de secretar fatores imunológicos, fatores de restauro celular, fatores como o hormônio do crescimento, tudo isso está perdido. Tenho um colega médico que costuma dizer que dormir pouco não só não emagrece como também emburrece e envelhece. Emburrece porque seu cérebro fica lento, tal como semi-alcoolizado pela pressão de sono subjacente, não emagrece porque você deixa de secretar uma série de fatores reguladores do apetite, que aumenta na intensidade e na duração, e envelhece porque coloca o organismo sob estresse. Além disso, a privação de sono deixa o indivíduo mais vulnerável ao estresse, à ansiedade, à depressão. Trabalhos mostram que pessoas que não dormem o necessário - oito horas é o recomendado - apresentam maior tendência para a obesidade e o diabetes. Trata-se de um fator para a alteração da liberação de hormônios como o cortisol, a adrenalina. Estudos norte-americanos dizem que a sonolência, seja por privação de sono, seja por medicamentos, é uma das maiores causas - senão a maior - de acidentes nas estradas não relacionados ao uso de álcool ou a falhas mecânicas.

 

DISTÚRBIOS
Há uma coisa muito curiosa que chamamos de sunday blues, a tristeza do domingo à noite. Quer dizer, a pessoa dorme a mais no fim de semana porque não tem a pressão do horário comercial de trabalho no sábado e no domingo de manhã, e dorme tarde nos dias da semana por diversas razões. Isso vai acumulando privação de sono, e aí a pessoa tem um desequilíbrio do controle do humor por dormir menos e por variar muito os horários de sono e vigília. Outro tipo de transtorno do sono é a insônia. Segundo dados da National Sleep Foundation, a pessoa que dorme mal, mas ainda não tem problemas durante o dia, tem sintomas de insônia. Já o indivíduo que dorme mal e tem problemas para ficar bem durante o dia tem uma insônia mais intensa, que acomete sua atividade durante o dia também. Uma pergunta supersimples que fazemos no consultório ou no ambulatório é se o paciente está satisfeito com seu sono. Se ele disser que não, isso já basta para começar uma investigação. Outro caso é a insônia crônica, que dura mais do que dois meses, geralmente causada por um transtorno emocional ou psiquiátrico, ou pela junção desses dois elementos. Caso o funcionamento emocional, físico e intelectual do indivíduo durante o dia não esteja 100%, isso já é um sintoma.
Entre as conseqüências da insônia estão a depressão e a ansiedade. É notório na classe médica que depressão causa insônia e vice-versa. A importância da insônia na depressão é tão grande que ela faz parte dos critérios de diagnóstico das classificações internacionais de depressão - 90% das pessoas com depressão também têm sintomas de insônia. E não é muito diferente para os casos de ansiedade. Um grande problema para a pessoa que tem insônia é acabar descobrindo que o álcool ajuda - porém não cura. Ela começa a usar o álcool como medicamento sedativo para dormir, mas aí se cria um segundo problema: a dependência do álcool para dormir. O mesmo acontece com a automedicação. Alguém da família usa um remédio por qualquer razão, ou pela mesma razão, e diz para a outra pessoa tomar esse "remedinho" para resolver o problema. Quantos e quantos casos a gente recebe lá no ambulatório do Hospital das Clínicas de pessoas que há 20, 30 anos fazem uso de remédio para dormir! Muitos começaram como curiosos, mas também há os que passaram por diversos médicos que acabaram endossando o uso do medicamento por falta de qualificação técnica - ou por falta de tempo para uma consulta médica mais longa. A insônia também está relacionada com doenças cardíacas, respiratórias, digestivas - toda e qualquer doença que cause desequilíbrio físico e psicológico, como um câncer, pode levar à insônia.
Outro transtorno extremamente comum são as pausas respiratórias, a apnéia do sono. De 4% a 5% da população do sexo masculino entre 35 e 60 anos de idade e 1% do sexo feminino têm esse problema. A prevalência, ou seja, a freqüência de roncos é praticamente o dobro. Parar de respirar quando se está dormindo interrompe o sono, diminui sua continuidade e qualidade. Essas interrupções afetam a fisiologia cardiovascular, pois cada vez que o indivíduo pára de respirar ocorre uma falta oxigênio na circulação, e isso causa impacto no cérebro e no sistema cardiovascular. Com isso, o risco de doenças cardiovasculares é amplificado.


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