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REVISTA E - PORTAL SESCSP

A VOZ CONTINUA A MESMA, MAS OS CABELOS...

 

Muito mais do que uma questão de moda, as madeixas assumiram diversas formas ao longo da história como símbolo cultural, de classe social e de fé religiosa

 

 

Ao longo dos tempos, o cabelo é um tema recorrente tanto na mitologia quanto nas fábulas e na própria história da humanidade. A figura bíblica Sansão possuía força descomunal graças a suas madeixas - cortadas por sua amada Dalila num ato de traição enquanto o herói dormia. Outro exemplo é a personagem Rapunzel, dos irmãos Grimm, dona de uma longa cabeleira jamais cortada, que serviu como meio de o príncipe encontrá-la e libertá-la da torre onde estava aprisionada. Já Maria Antonieta (1755-1793), a rainha da França decapitada durante a Revolução Francesa que teve sua vida contada recentemente no cinema pela diretora norte-americana Sofia Coppola, ficou conhecida pelos vistosos penteados que ostentava e faziam moda na corte. "O cabelo é um traço do ser humano e também um depoimento claro de sua conexão com o mundo", afirma a jornalista Leusa Araujo, que está debruçada sobre o assunto para a elaboração da obra O Livro do Cabelo, a ser publicada pela editora Cosac Naify. "É uma forma de expressão corporal, por isso é muito importante como identidade." A jornalista conta ainda que mesmo em sua versão artificial, como a peruca, o cabelo era um modo de a aristocracia se diferenciar da burguesia, uma oposição simbólica ao mundo do trabalho. "Se você pensar do ponto de vista lógico, realmente, se alguém passa tanto tempo cuidando do cabelo é porque essa pessoa não está no mundo do trabalho braçal, tem criados para fazer isso", explica.
Além de expressar a identidade e mostrar a posição social que o indivíduo ocupa em uma sociedade, o cabelo é também um reflexo da cultura de cada civilização ou época. "Em vários povos, o luto de uma viúva está relacionado com o corte do cabelo, até para sinalizar que ela não vai mais se casar", declara Leusa. "Quando a indiana se casa, por exemplo, usa o cabelo dividido ao meio com um pó vermelho. Já o cabelo feminino solto e longo, para diversas culturas, é tido como um signo de atração, às vezes até de pecado." Ainda segundo a jornalista, é comum em algumas culturas o marido sentir-se dono do cabelo da mulher. "Havia leis nos Estados Unidos e no Japão que proibiam a mulher casada de cortar seus cabelos sem a autorização do marido."
Mas não são somente as melenas femininas o alvo dessas "mensagens" históricas e culturais. No universo militar, é trivial que os soldados, mesmo dos povos subjugados em uma guerra, tenham as madeixas raspadas. No livro Minha História das Mulheres, lançado em 2007 no Brasil pela editora Contexto, a historiadora francesa Michelle Perrot diz: "Os militares são raspados 'a zero', por motivos de higiene, mas também de disciplina; os escravos na Antiguidade são submetidos à tosquia, assim como os prisioneiros". A jornalista Leusa Araujo conta que justamente pela imposição do cabelo raspado, um grupo de "descabelados" se rebelou na China. "A dinastia chinesa Qing obrigou o seu povo a raspar a cabeça e a deixar aquele tufinho, em uma época que os chineses prezavam muito o cabelo. Então, um grupo de guerreiros se revoltou, de 1851 a 1864, e deixou os fios crescerem - mais ou menos como a cultura hippie, só que 100 anos antes."

 

A REBELDIA DO CABELO
Até cerca de 60 anos atrás, o cabelo curto era um padrão para os homens ocidentais contemporâneos. Conhecido como corte escovinha ou corte raso, esse tipo de penteado ficou muito popular nos Estados Unidos e na Inglaterra, e estava associado às exigências das Forças Armadas. Mas, com a explosão do movimento hippie, na década de 60, jovens do mundo inteiro passaram a deixar a cabeleira crescer. "O cabelo comprido dos hippies tem um sentido de contravenção, de se opor à ordem estabelecida, em uma época que se dizia que cabelo longo era coisa de mulher", analisa a professora de História Contemporânea da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas (FFLCH) da Universidade de São Paulo (USP) Maria Aparecida de Aquino. "A peça Hair, montada primeiramente em 1967 nos Estados Unidos, falava sobre essa rebeldia do penteado hippie e também do aparecimento de uma nova forma de ver o mundo. Até foi também encenada no Brasil, em 1969, com Altair Lima e Aracy Balabanian."
Um outro exemplo de manifestação de contracultura, que também se expressava fortemente por meio dos cabelos, é o chamado movimento punk, surgido na Inglaterra em meados dos anos 70. "O movimento punk, que ganhou projeção mundial há 30 anos, veio como um retorno ao básico. Os cabelos curtos e espetados representavam um retorno camuflado ao rock'n'roll básico dos anos 50", explica o autor do livro O Que É Punk? (Brasiliense, 2001), Antonio Bivar. Ainda segundo Bivar, "o moicano nos cabelos punks foi uma idéia de homenagear aqueles índios americanos de séculos atrás. O punk buscava em novos visuais continuar a tradição cinqüentista de impactar, sempre". Já a moda vai beber nessas manifestações. Para a consultora e professora de moda da faculdade Anhembi Morumbi Rose Andrade, penteados que antes eram considerados rebeldes, como os dos hippies e dos punks, acabam sendo incorporados pelo mundo fashion. "O cabelo caminha passo a passo com a moda, e a moda gosta da irreverência. Então, se uma roupa é muito comportada, por via de regra o cabelo não deveria ser comportado, porque senão fica muito careta."

 

 

CABELOS DE AXÉ
Quando o assunto é o penteado de afrodescendentes, dada a diversidade étnica e cultural proveniente do continente africano, o tema daria um livro à parte. E foi exatamente o que o antropólogo carioca Raul Lody fez, em 2004, quando decidiu lançar Cabelos de Axé: Identidade e Resistência (Editora Senac). "A idéia de fazer essa obra nasceu por causa da questão da estética, a qual é reveladora de aspectos sociais, culturais, econômicos e religiosos", diz. "Fazendo essa pesquisa, percebi que a cabeça era um elemento comum para a compreensão do corpo em vários povos. Ela é um lugar muito importante para compreender o sistema simbólico do corpo. Certamente, porque reúne a totalidade dos sentidos: visão, audição, paladar etc. Então, para todos os povos do mundo a cabeça é um lugar de destaque, de muita importância, de alto significado."
Os próprios animais que habitam a paisagem africana servem de motivo para a elaboração dos chamados penteados zoomórficos. "Os animais são recorrentemente representados em diversas culturas da África. Vários deles têm relações mitológicas e papéis ligados ao funcionamento da vida, da fertilidade, do poder e da guerra. Então, essas representações são interpretadas, apropriadas e passam a compor também os penteados", explica Lody.
Durante a década de 60 e 70, o mundo viu o nascimento de grupos que lutavam pelos direitos iguais dos negros, como os Panteras Negras nos Estados Unidos. Com o intuito de resgatar e expressar a ancestralidade africana, os integrantes desses movimentos passaram a exibir os famosos cabelos black power - em sintonia com a célebre frase do líder negro Martin Luther King, "Black is beautiful", ou negro é lindo. "O black power foi um grande marco na trajetória dos afrodescendentes de assumir o corpo com suas características, e desenvolver questões ligadas à auto-estima", afirma Lody. Para a assistente social Eliane dos Santos, autora da dissertação "Aparência e Auto-Estima: Um Estudo dos Casos no Grupo Crioulo" para o mestrado em sociologia pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), os negros devem admitir suas raízes, mas com a opção de usar qualquer tipo de penteado. "Vivemos em um país racista, mas acho que a questão do cabelo deveria ser uma opção pessoal. O negro tem de assumir a negritude, mas usar o seu cabelo da maneira que acha melhor. Eu, por exemplo, já usei de várias maneiras: com trança, com permanente - deixando ele todo enroladinho - e agora ele está liso".

 

 

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Fio a fio
Para fazer a cabeça

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Fio a fio
Mostra internacional chega ao Sesc Pompéia e desvenda o universo dos cabelos

Embora muitas vezes sejam vistos como um assunto fútil, os cabelos também são foco de estudo da ciência - de que são feitos, porque não param de crescer ou o que os torna enrolados, lisos, crespos ou finos. E é com o intuito de revelar esse aspecto que cerca as madeixas que a unidade Pompéia está exibindo, de 7 de março a 1° de maio, a exposição Decifrando o Cabelo, produzida pela La Cité des Sciences et de l'Industrie [cidade da ciência e da indústria], em Paris, concebida e realizada pela L'Oréal. Co-realizada no Brasil Sesc São Paulo, a mostra antes de aterrissar em solo brasileiro circulou por oito países e foi vista por mais de 1,4 milhão de pessoas desde que estreou, em 2001. Composto de documentários, instalações interativas e painéis, o evento é dividido em quatro seções, distribuídas em um espaço de 600 metros quadrados. Na primeira, o público pode conferir elementos que compõem estruturalmente os fios, em imagens que os aumentam mil vezes. Em outro módulo, a idéia é aprender um pouco mais sobre a indústria do cabelo, com exibição de filmetes que mostram como as tinturas agem no cabelo. O terceiro bloco, intitulado O Salão das Metamorfoses, reúne um time de cabeleireiros cuja especialidade é fazer de penteados verdadeiras obras de arte - nessa parte, o visitante pode ainda se ver em um monitor com diferentes tipos de cortes. Por fim, uma abordagem mais histórica trata da relação entre o cabelo, a cultura dos povos e a moda por meio de imagens e músicas.

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Para fazer a cabeça

Em várias religiões, existe a idéia de que o cabelo é uma maneira de se comunicar com a divindade. Veja alguns exemplos, entre cabeludos e carecas, dos penteados que fazem a cabeça dos fiéis

 

Candomblé: o noviço no candomblé, o iaô, tem sua cabeça raspada e pintada com símbolos dos orixás e do estilo do terreiro. É um ritual de iniciação, que visa a uma abertura para receber a divindade.

 

 



Budistas: Buda raspou seu cabelo e sua barba como forma de renunciar à vaidade. Por esse motivo, os monges budistas da Índia, do Tibete, da China e do Japão também usam a cabeça totalmente raspada em sinal de desprendimento da vida mundana. Na foto, Tenzin Gyatso, 14º Dalai Lama

 

 



Judeus hassídicos: seguem a citação do Velho Testamento da Bíblia sobre a interdição de cortar o cabelo: "Todos os dias do voto (...) sobre a sua cabeça não passará navalha; (...) santo será, deixando crescer livremente o cabelo da sua cabeça" - (Nm: 6,5).

 

 

 

Rastafáris: por razões religiosas e identitárias, os rastafáris não cortam os cabelos e fazem longas tranças, chamadas dreadlocks, ou dreads. Eles argumentam que o crescimento contínuo dos cabelos é condição natural da bioquímica do organismo humano, o que evidencia a vontade de Deus. Os dreads remetem também à imagem da juba de um leão, símbolo de força, coragem e dignidade. Na foto, o cantor jamaicano de reggae Bob Marley

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