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Entrevista

REVISTA E - PORTAL SESCSP

 

 

ADELINA VON FÜRSTENBERG

 


Fotos: Adriana Vichi


A curadora fala de sua experiência no mundo das exposições internacionais e explica o trabalho de unir arte e direitos humanos

De origem armênia, a curadora Adelina von Fürstenberg tem no currículo experiência de mais de 30 anos no mundo das exposições internacionais. Autodidata no assunto - "tudo que aprendi foi com os artistas", afirma -, Adelina já trabalhou com grandes nomes da arte, como o alemão Joseph Beuys e o norte-americano Andy Warhol, mas optou por se distanciar do chamado mainstream - palavra inglesa que se refere aos principais circuitos de uma determinada área - para se dedicar à democratização das manifestações artísticas. Por isso criou, em 1996, a organização não governamental (ONG) ART for The World [Arte para o mundo]. Como o nome adianta, a instituição dedica-se a excursionar pelo mundo com exposições que, como a própria curadora define, se preocupam mais com o conteúdo do que com a forma das obras, na busca por transmitir mensagens aos espectadores. Outra característica do trabalho é a abordagem de questões ligadas aos direitos humanos, por meio das obras produzidas por artistas de vários cantos do mundo, como a saúde e a condição da mulher no mundo contemporâneo - caso de Mulher, Mulheres, que está em cartaz na unidade provisória Sesc Avenida Paulista até o mês de junho. Em entrevista exclusiva à Revista E, Adelina falou sobre projetos e contou um pouco de sua trajetória. A seguir, trechos.

 

Como começou seu envolvimento com a arte e os direitos humanos, foco do trabalho realizado pela ONG ART for The World?
Por 15 anos fui diretora de uma instituição de arte, abri essa instituição, o Centro de Arte Contemporânea de Genebra [na Suíça], em 1974, porque gosto de comunicar arte para muita gente. Depois fui convidada a trabalhar em um grande centro de arte contemporânea em Grenoble, que se chama Le Magazine, um lugar muito lindo. Toda essa experiência foi muito importante para mim, porque trabalhei com os melhores artistas em um momento muito interessante. Em 1995, a ONU [Organização das Nações Unidas] queria fazer uma exposição para a comemoração de seu 50° aniversário, aí me propuseram um trabalho chamado Diálogos de Paz. Foi uma experiência incrível. Estavam reunidos 60 artistas de todo o mundo que falavam de paz, de tolerância, de diferença, de todos os grandes temas da ONU. Então, quando essa exposição foi aberta, perdi o interesse de ir para o museu, de continuar a arte da maneira normal do museu.

 

O que a fez perder o interesse?
Era muito difícil só trabalhar com arte porque o mundo está muito europeu, muito ocidental. As décadas de 60 e 70 representaram anos muito livres e abertos na Europa, com ilusões de que o mundo estava melhor porque a guerra havia acabado. Mas depois, com a guerra da Iugoslávia, as coisas mudaram, foi algo que os europeus sentiram muito. Então, era difícil de continuar essa vida cotidiana do museu após a experiência da exposição no edifício da ONU, que falava sobre a paz. Depois que a exposição foi inaugurada, decidi criar uma ONG, com dois amigos, que era para propagar a arte pelos ideais dos direitos humanos, e não a arte pela arte. Não era para contemplar a forma, e sim um tipo de arte que visava a transmitir sua mensagem por meio do conteúdo. Porque todos os artistas eram bonitos formalmente, o problema não era a qualidade da obra, era o que ela transmitia. Isso foi uma experiência muito importante para mim. Por isso criamos o ART for The World, uma instituição sem muros, que existe quando há um projeto que cria o lugar e não contrário.

 

O que quer dizer "o projeto cria o lugar"?
Essa exposição, Mulher, Mulheres é um exemplo muito explícito, porque tivemos a idéia de criar uma exposição sobre as mulheres. Esse é um exemplo de lugar para a ART for The World. Vai acontecer não no museu de uma cidade, que é um lugar perfeito, mas só para a forma. Quando criamos a ONG, em 1996, uma de suas características era essa ideologia de a arte transmitir o conteúdo, sem necessariamente ser em museus. A maior parte das exposições é em lugares que não são dedicados à arte, como universidades, mosteiros, todos os lugares que não são especificamente para a arte contemporânea. Além disso, o ART for The World trabalha sempre com temas atuais e questionáveis: mulher, criança, saúde. Em 1998, fomos convidados a organizar uma exposição para comemorar os 50 anos de atividade da Organização Mundial da Saúde. Também organizamos duas exposições itinerantes sobre o tema, depois de Genebra e Nova York chegou aqui ao Sesc Pompéia, em 1998. Em seguida, foi para a Índia e a Itália.

 

A senhora se refere à mostra Limite da Consciência?
Exato. Depois dessa, fizemos outra exposição muito importante sobre a criança, para o Alto Comissariado das Nações Unidas para os Refugiados. Aí a ONU observou nossa organização e disse que poderíamos ser uma de suas ONGs. Convidaram-nos para o Departamento de Informação Pública deles, porque trabalhamos sobre a comunicação de valores relacionados aos direitos humanos.

 

É esse trabalho envolvendo arte e direitos humanos o principal diferencial dessa ONG?
O título ART for The World é significativo: arte para o mundo, arte para o outro, não somente para os entendedores ou colecionadores, e sim para um público mais vasto - que pode entender a arte por meio do conteúdo, com uma linguagem universal. Porque arte é uma linguagem universal, não precisa de tradução. Se você focalizar o conteúdo, uma pessoa que não conhece arte também compreenderá. Mas, se fizer isso sobre a forma, será uma coisa mais difícil de compreender, porque necessitaria de conhecimento sobre a história da arte. No entanto, fazemos isso sempre com artistas de qualidade, de toda parte do mundo, dos mais jovens até os mais famosos.

 

No caso da exposição Mulher, Mulheres, cada local apresenta novos artistas participantes. Como a senhora busca os artistas locais?
Depois de decidido o lugar que vai receber a exposição, convido os artistas. Por exemplo, o Sesc é um lugar dinâmico, que recebe muita gente, desde jovens até a terceira idade, tudo isso misturado com um público maravilhoso. Então, seria melhor trabalhar com mídias como a fotografia, o vídeo e a internet. Em Genebra, a exposição era mais política. Já em Florença [na Itália] era mais sobre a intimidade das mulheres, a vida pessoal - muita gente até chorava porque estava diante de coisas muito pessoais. A exposição aqui do Sesc mostra mais a problemática da mulher, a violência conjugal, a dificuldade de emprego, tudo isso. Paralelamente às exposições, trabalho com arte de todo o mundo. Gostava muito das peças desses artistas que foram convidados a expor aqui; até então ainda não havia tido oportunidade de convidá-los, mas agora houve uma ocasião.

 

E como a senhora os conhecia?
Sabe a pessoa que tem uma farmácia e que conhece todos os produtos? Então, sou como uma farmacêutica. Sei exatamente que remédio, que artista é interessante. Essa é minha experiência, meu trabalho, minha qualidade.

 

Nos últimos anos, a curadoria conquistou uma presença muito forte na arte. Mas é um papel cada vez mais polêmico. Algumas pessoas gostariam de não ver os curadores, em outros casos só existem determinadas exposições por causa deles. Como a senhora enxerga isso?
É uma coisa que a mídia quer. Não é somente um defeito dos curadores, é também um defeito dos jornalistas, porque há menos críticos. A maioria da crítica de hoje é feita por jornalistas. Agora o jornalista não conhece o artista, então prefere falar com o curador. Já os curadores não sabem escrever. O curador é uma figura que deve partir da concepção, saber trabalhar e escutar os artistas antes da exposição. O artista e o curador devem falar a mesma linguagem, são uma família. Não é um discurso de poder, é um discurso de iguais. Além disso, o curador deve saber produzir, porque um bom curador deve incitar o artista a produzir um trabalho novo. E sempre estar um pouquinho mais nos bastidores.

 

Por que a senhora acha que hoje se dá essa separação entre quem escreve e quem entende de arte?
Houve uma mudança total depois dos anos 90, quando tudo se transformou em moda. Antes arte era vanguarda, falava-se em arte contemporânea como a vanguarda. Agora nenhuma pessoa fala mais em vanguarda. Nos anos 90, a indústria da moda compreendeu que arte é uma coisa que pode ser útil para comunicar a moda, e depois entrou uma porção de gente ignorante, que não entendia de arte, e tudo mudou pouco a pouco. Mas os artistas não mudaram, são os mesmos, continuam ótimos. Um artista é um artista, ele não muda, o que muda é o contexto. O artista é uma essência, e não uma representação.

 

A senhora sente que essa questão da curadoria esbarra no mercado, no sentido de ver continuamente os mesmos artistas?
Isso é outro problema que está ligado ao mercado, que precisa sempre do mesmo produto, senão ninguém compra. Um dia perguntei a uma grande pintora americana por que ela trabalhava com os mesmos temas. Ela me disse que a galeria havia dito a ela para fazer assim senão os colecionadores não comprariam.

 

A senhora concorda que existe uma relação cruel entre o mercado e os artistas, ou seja, por um lado, o próprio mercado beneficia os artistas, mas, por outro, sacrifica sua criatividade?
Isso é verdade. Mas um curador de boa qualidade deve estimular o artista a criar novas linguagens. Porque, se o curador estimular o artista a fazer sempre o mesmo trabalho, não o ajudará. Simplesmente o transformará em um produto industrial, e não em um artista que necessita de diálogo para criar. Por isso a figura do crítico era importante, porque dialogava sempre com o artista.

 

Nós sentimos que no Brasil há muito pouca crítica. De uma maneira geral, a senhora acha que isso é um fenômeno mundial?
Sim, definitivamente. Tudo que acontece aqui também ocorre no resto do mundo. Por exemplo, na Índia também é a mesma coisa. Agora os artistas indianos são muito famosos, e muitos colecionadores compram suas obras. Os museus não podem comprar porque o preço é muito alto. Esse é outro grande problema, se o museu não recebe doações, como o preço é muito alto, não pode comprar muitas obras. No passado, o museu era o grande comprador de arte, agora é o privado.

 

 

O que observamos no Brasil é um obscurecimento do crítico, mas um aparecimento muito grande de acadêmicos na área. Isso é assim também no resto do mundo?
A única oportunidade que os críticos têm de sobreviver é através do ensinamento. Mas também há uma competição terrível, nem todos podem entrar na academia porque há poucas vagas. Também os jornais preferem que o jornalista faça a crítica, mas depois vá cobrir esporte. Então o trabalho se deteriora. Hoje são pouquíssimos críticos de arte que têm uma coluna no jornal.

 

Nesse sentido, o trabalho do curador passa a ter um valor maior? Por exemplo, o Mário Pedrosa, um importe crítico brasileiro, ajudou a sustentar linguagens artísticas de vários artistas. Se esse tipo de crítico não existe hoje, o papel do curador passa a ser ainda mais importante?
Por que você acha que há tantas bienais pelo mundo? Em Moscou, Xangai, Veneza, São Paulo etc. As bienais e as feiras de artes, que são a mesma coisa, são os dois únicos lugares onde se pode vender arte. A bienal é um espaço do curador, são os mesmos curadores em cinco, seis ou sete bienais. E, além disso, predominam os mesmos artistas.

 

Mas tanto o público quanto a imprensa reclamam da falência da Bienal de São Paulo...
O grande problema é a falta de dinheiro, porque as bienais necessitam de muito dinheiro. Penso que a última Bienal de São Paulo não tinha bastante recurso financeiro, era uma bienal pobre no que se refere à produção. A bienal que mais me agradou foi a de 1998, sobre antropofagia. Era um tema muito forte, tanto localmente quanto internacionalmente. Para um estrangeiro, esse tema era muito interessante por ser verdadeiramente particular.

 

E o que a senhora achou da Bienal de São Paulo de 2006?
Não gosto de falar mal dessa última bienal, porque meu trabalho não é falar mal. Mas eu já disse que foi pobre, pobre em todos os sentidos.

 

Foi noticiado nos jornais que o Louvre abrirá um museu em Abu Dhabi, nos Emirados Árabes. O que a senhora acha de os museus abrirem "filiais" em diferentes países?
É uma questão econômica. Quando digo isso é também no sentido de economia política. A ida desses museus para outros lugares significa um enriquecimento econômico para os museus, mas outras vezes também é uma presença ocidental nesses outros países - a norte-americana no caso do Guggenheim, por exemplo. Não é mais um mundo de ciência política, é um mundo de economia. A questão do dinheiro é uma maneira de tomar outros territórios.

 

Quando o Guggenheim pensou em vir para o Rio de Janeiro, a maior parte dos artistas se mostrou contrária a essa idéia. Exatamente por essa interferência muito grande, como se o museu fosse um posto avançado de um discurso colonizador.
Mas a coisa mais trágica, para mim, não é o Guggenheim ir para a Arábia Saudita ou para o Rio de Janeiro, mas sim a sensação de que o mundo cultural do lugar não é muito criativo. Porque se o país for muito criativo não necessitará que o Guggenheim vá para lá, porque tem seu lugar, seus artistas e sua criatividade. E o Guggenheim não pensa em ir se esse lugar já tem muitas coisas. É importante que a arte e a cultura, antes de ser internacionais, sejam locais. Para uma arte ser forte no mundo, primeiro ela precisa ser forte localmente. Depois a força pode se tornar internacional. Mas se é somente internacional, e não tem nada de local, não passa de artificialidade. Em Bilbao [na Espanha], onde fica o Guggenheim, não há um contexto muito forte de arte local. Já Madri e Barcelona têm uma posição muito forte de artistas e de cultura.

 

A senhora elogiou uma edição da Bienal de São Paulo que tinha um recorte muito local, a antropofagia. A senhora acredita que hoje a arte tenha de ter essa característica? Há uma corrente muito forte no Brasil que acha que a arte deve ser destituída desse caráter regional.
Conheço essa reflexão, mas não acredito que seja certa. Porque se uma pessoa é artista no Brasil, ela é artista no Brasil e não um artista brasileiro. O artista brasileiro vai vender quando expuser com outros dez artistas brasileiros em Paris, em uma exposição que se chama "de artistas brasileiros". Aí falamos em regional. Um artista é um artista, e é importante quando um artista local viaja com seu nome, não com sua nacionalidade. E é somente na leitura de seu trabalho que se pode compreender problemáticas diferentes de outros lugares. Para mim, a questão é que em todos os lugares existem artistas regionais.

 

Fale um pouco sobre o seu projeto Playground & Toys [brinquedos]?
Esse era um projeto para crianças que não têm jogos, que vivem em lugares difíceis. A princípio era para crianças refugiadas de guerra. Por exemplo, em um campo de refugiados as crianças recebem o que comer, mas não recebem brinquedos. Mas brincar é uma forma de curativo, é um direito da criança, que a ajuda a interagir com outras. Isso acontece não só em países que estiveram em guerra, mas também em lugares como aqui, que não têm muitos espaços para as crianças brincarem. Então, nos primeiros dois anos esse trabalho era somente para os refugiados de guerra, mas depois me perguntaram por que só para refugiados. Porque crianças de outros lugares também necessitavam de jogos; por isso temos um playground em Londres, mas não em um lugar chique, fica em uma zona de imigrantes.

 

A senhora convida os artistas e eles desenvolvem obras?
É um trabalho sem fim, no ano 2000 estava com 20 artistas e arquitetos, e agora são 75. Mas o problema é que é mais difícil conseguir dinheiro para uma exposição como o Playground & Toys do que para uma outra, porque muita gente não se interessa por crianças. Essa é a conclusão de minha experiência. Em cinco anos construímos um playground em Atina, na Grécia, onde houve um terremoto; em três diferentes lugares da Índia; também um grande parque na Armênia; Londres, que eu já citei; e também na África.

 

Gostaria que a senhora falasse um pouco sobre a exposição Colateral.
Eu pensei nessa mostra há quatro anos. Porque gostaria de fazer uma exposição sobre o cinema. Interessava-me muito o contexto, todo mundo vê cinema, é a arte mais popular no sentido de que é a que mais entra no nosso mundo. Diretores como [o inglês Alfred] Hitchcock ou [o norte-americano] Brian de Palma são parte de nossas vidas. E para os artistas é a mesma coisa. O cinema também é um tema de inspiração para eles. Esta é uma geração de artistas de vídeo que trabalham diretamente sobre o cinema. Capturam um filme e o transformam, e as instalações desses artistas são como um minicinema aberto. Estamos discutindo sobre a vinda dessa exposição no próximo ano aqui no Sesc Avenida Paulista.

 

É curioso que a senhora, mesmo sendo estrangeira, tenha escolhido um tema tão sério no Brasil como a violência para essa "versão brasileira" da exposição Mulher, Mulheres.
Se não compreender os outros, você não existe. Falo em relação à nacionalidade, não como pessoa. Tem-se de compreender o outro país para poder viver dentro dele. Se organizo uma exposição no Brasil, devo compreender o Brasil. Faz parte de meu trabalho entrar na problemática do lugar, isso é ART for The World.

 

A senhora disse que prefere não trabalhar com os artistas mais famosos...
Sim, porque já trabalhei.

 

Mas entre eles está o alemão Joseph Beuys, que tinha um pensamento parecido com esse. Gostaria que a senhora falasse um pouco sobre isso.
Encontrei o Beuys pela primeira vez em 1972, abri uma porta e lá estava ele. Não sabia quem ele era, havia bastante gente e ele falava de sua universidade... Enfim, um importante galerista e curador italiano, chamado Lucio Amelio, convidou-me para trabalharmos juntos, então pusemos Andy Warhol [norte-americano, grande nome da pop art, ou arte pop] e Beuys juntos. A primeira apresentação foi em Nápoles, e a coisa mais interessante foi ver essas duas personalidades juntas.

 

O que o Warhol achava da obra do Beuys?
Essas duas grandes personalidades se compreenderam. Os artistas se compreendem. Uma coisa muito importante é que, como sou autodidata, tudo que aprendi foi com os artistas. Eles faziam arte conceitual e eu não compreendia. Então, a única maneira de compreender era trabalhar com esses artistas.

 

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