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Ficção
Visita ao velho Aluísio
Ana Paula Pacheco
Putice a sua mexer com o que está muito claro para mim porque para você não tinha qualquer importância, ela não era sua filha, você sequer conhecia a menina, a que nadava comigo no caudaloso rio. Esse rio que não se contentava em evaporar e chover; nas enxurradas, trazia consigo o céu. Por isso nadávamos, eu e a menina-filha, arrastadas pela correnteza de toda aquela água muito mais forte do que nós, meros corpos-bóias, ainda pouco conformados, pálpebras e lábios cerrados, nenhum cílio, nenhum pêlo. Foi como a menina me contou que ele se chamava. Rio das Rosas Roxas. A água ocupava a Marginal Pinheiros em sua mão e contramão, e nós duas nadávamos na correnteza sem cansaço nem medo.
A menina-filha, que havia morrido há alguns meses, nadava ali não para se explicar, como é comum nos sonhos; nadava só para o curso me dizer o verdadeiro nome das águas embrionárias: Rio das Rosas Roxas.
Mas eu não precisaria pensar em decifração alguma, se não fosse você roubar o nome das águas roxas para me escrever um poema de amor. Essa sua mania de me apalpar os gânglios e depois dizer: "Você está cheia de manchas roxas, manchas de melancolia". Essa putice e mexer com minhas feridas até elas sorrirem para você; e, depois, entregar-me poemas de amor, como se as rosas ainda existissem para isso.
Não, você não tem culpa alguma, claro, afinal eu não sou obrigada a lhe contar meus sonhos nem a ler os poemas que você escreva apropriando-se das minhas imagens. As cenas dos almoços com o velho Aluísio, ademais, vieram dias antes, enquanto, um pouco arregalada, eu lia Cortázar numa poltrona de veludo verde.
Depois da morte da menina, eu e três amigas talvez achássemos que podíamos ajudar o velho Aluísio a matar a saudade recordando. Ele já não tinha fôlego para nadar conosco na voragem das águas roxas, por isso o encontrávamos em lugar seguro, e sem a menina, já que a comunicação entre ele e ela fora irremediavelmente cortada quando ela se foi.
Reuniamo-nos na salinha de almoço, à cabeceira sentava-se o pai da menina-filha. Eu me sentava bem em frente para satisfazer o estranho desejo de ver o melhor homem que eu conhecia sentir uma dor profunda. Dor parecida à dele eu só relembrava a de quando meus brinquedos recém-chegados tinham voado pela janela do apartamento. Na festa de quatro ou cinco anos de idade, havia na casa uma dezena de crianças, primos e vizinhos, e uma dezena de presentes. As mães e alguns pais conversavam no intervalo dos salgadinhos que passavam e eram compulsivamente devorados. De repente, no mais cruel desvario dos meus convidados mirins, os brinquedos iam sendo atirados pela janela. Todas as crianças os lançavam, entusiasmadas; e riam, riam, e olhavam para os presentes lá embaixo, estatelados no chão. Eu chorava e corria entre soluços à mãe: – Mas mãe, eles estão jogando todos os meus brinquedos...
Os olhos vermelhos do pai da menina-filha lançavam duzentas fagulhas sobre nós. Ele nem precisaria pensar nela, a memória era a própria vida, paixão odiosa. No seu rosto se viam duzentos pequenos músculos ainda surpresos com o fato de a menina não existir mais, nunca mais.
Diante desse coágulo da vida, nunca me atrevi a contar a história. Nem mesmo quando sonhava com o rio. Mas, nesse dia, eu havia passado a tarde na cama lendo Cortázar. No meio da leitura, cenas dos almoços no velho Aluísio atravessavam o livro. E me pareciam tão estranhas que eu não conseguia imaginar como aquilo poderia ter sido real.
Discretamente insuportáveis os almoços silenciosos ou de conversinhas amenas para distrair o velho Aluísio. Quem sabe, distraído, ele não pensasse quão odiosas éramos nós, que tínhamos visto a menina-filha morrer e não lhe prestamos o devido socorro; afinal, já não havia nenhum socorro possível para a asfixia que a fez ter coração-de-pedra.
E o irmão mongolóide almoçava conosco, ao lado do pai, ele que amava a irmã sem convenção alguma, ele que poderia detestar e repelir e cuspir em quem quisesse, e, se quisesse, na família toda, não o fazia. Amava a menina-filha e sabia, decibéis acima da comprensão por palavras, que ela não estava mais. Sua irmã morrera no mar, e ele não sabia o que é o mar, nunca vira. A mãe, quando viva, escondia-o trancado, até que não pôde mais e se atirou pela janela para não ter que destrancá-lo.
O copeiro vinha com a bandeja e uma tampa de prata corindo o prato-surpresa que nos serviria. Como eu tivesse estivesse sem muita fome, demorava sempre para dar a primeira garfada.
Procurei na página de Cortázar; enguias, estrelas, orifícios do tempo. Procurei nas anteriores, no quarto, em volta. E o elástico da minha avó morta, ali em cima do criado-mudo, ao alcance do olhar distraído. Em elástico preto de cabelo, diferente do outro, cinza, que eu retirara da menina-morta e guardava comigo, ainda com alguns fios seus. Eis a minha madeleine molhada na xícara de chá, ou na taça daquele rio, servida à mesa do velho Aluísio.
Íamos todas as terças-feiras sem sermos convidadas. Telefonávamos avisando, como se fizéssemos a ele um favor; então, o pobre homem, exausto e educado, aceitava com muita gentileza a tortura.
Para que não houvesse sinal de pressa, o almoço era minuciosamente composto: entrada, prato principal, acompanhamentos, sobremesa; depois, o licor na sala de estar. Ficávamos ali uma, duas horas, sempre do mesmo jeito: sem ela. O pai fumava pacientemente. Era santo? Ou uma hora dessas nos surraria dali?
As quatro meninas, colegas de sua filha-anjo, que mais queriam dele?, não teriam ao menos uma gota de compaixão? Dentro da casa, comentavam aos cochichos.
Mas o velho Aluísio tinha uma pachorra dos infernos e nos tratava como se não tivéssemos conhecido a menina, como se não a tivéssemos levado para o mar que a levou, como se fôssemos, todas nós, inocentes indo ao Leblon passar óleo nas suas costas e fazer-lhe uma massagem, merecida afinal. Mas o óleo era pelante e pululavam as bolhas nas costas de velho Aluísio.
Não, nós não tínhamos induzido a menina-filha ao suicídio. O exemplo, aliás, viera da própria mãe. E, afinal, ela não havia se matado; o que se viu foi que ia de peito aberto para o mar. E ele foi traçoeiro. Traiu a nós todas e ao velho; "Que supresa, minha filha! Que surpresa!".
Durante o velório ela não sorria à maneira dos mortos, tinha uma expressão séria. Ficassem histéricos os que ficassem, ela permaneceria calada, morta, e quanto a isso nada mudaria jamais. Fizessem o que quisessem com ela, o que melhor consolasse; construíssem uma casa de pedra, um mausoléu de mármore; ela já era o túmulo de si mesma. Fosse como fosse, fincaria os pés treze palmos mais próxima do centro da terra, sem qualquer concessão ao pai que lhe dedicara a vida.
E nós estaríamos ali, todas as terças, com muitos oceanos nos olhos, muitos anos por vir. As quatro réplicas da menina-filha, todas com quinze anos de idade, e um terrível frescor de rosas roxas.
Ana Paula Pacheco é escritora e faz parte da coletânea de contos Desnorte, publicada pela Editora Nanquim