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Entrevista
Lygia Fagundes Telles

Recentemente, a senhora mudou de editora. Fez um contrato com a Rocco para reeditar todas as suas obras. Na época, disseram que a senhora havia feito um belíssimo contrato de literatura. Na sua opinião, por que o reconhecimento da indústria editorial tarda tanto no Brasil?
Porque nós estamos num país de Terceiro Mundo. Terceiro Mundo não é como o primeiro, onde são editados milhões de exemplares. O sujeito escreve um romance e compra uma ilha. Aqui no Brasil é completamente diferente. Foi muito importante a mudança de editora. Reanalisando as obras para a nova edição, eu pude fazer a revisão dos meus livros. Isso me deu uma grande alegria. Limpei minha obra e isso me deixou muito feliz. Estou satisfeita porque os livros estão saindo seguidamente e isso para o autor é a plena certeza de que novas gerações estão entrando em contato com meu trabalho. Não sei o que vai acontecer depois, mas enquanto eu estiver viva, vou cuidar da minha obra e trazê-la atualizada para as novas gerações.
Essa revisão, na verdade, foi sujeita a uma espécie de reflexão sobre a própria criação. Qual foi seu sentimento relendo As Meninas e outras coisas?
O que foi feito está feito. O trabalho tem isso. Eu trabalho com muita devoção e muito fervor. Eu levo muito, muito, a sério o meu ofício. Por exemplo, quando eu escrevi As Meninas, eu revi antes de entregar para o editor: podei e acrescentei como sempre faço. Há o primeiro trabalho de inspiração, evidentemente. A primeira versão. Saio galopando as linhas (ou galopo sozinha ou sirvo de cavalo para meus anjos, meus demônios, aquela coisa toda que nos assalta e eu me entrego). É uma coisa linda, uma coisa de grande amor. Depois vem o artesanato, a parte fria, a parte racional. Nesse momento, eu me torno minha inimiga. Daí eu podo, corto, acrescento, podo e podo e podo. Essa parte não está propriamente separada da outra parte, da parte da criação, que é um mistério. Quando eu vou rever um livro, vejo o que está certo e errado. É melhor não retocar porque aquele era um instante único. Não se pode retocar antigos amores. Pode-se reencontrá-los, mas de uma forma que esse seu instante atual não interfira naquela instante da paixão que já passou. Temos de respeitar.
A senhora sempre foi uma mulher bonita e inteligente. O que significa uma mulher bonita fazendo literatura e, no seu caso, uma literatura séria e talentosa, num país como o Brasil?
No começo foi muito difícil. O preconceito foi uma coisa brutal na minha vida. Eu me lembro que tomava todo cuidado. Queria me impor pela seriedade, pelo meu trabalho. Fui uma feminista sem saber que era. E agora o feminismo está aí. Um pouco mal interpretado é verdade: o feminismo vulgarizado no Terceiro Mundo. A maior parte das que se dizem feministas são justamente prova do antifeminismo, tanto no mercado como no respeito ao corpo e no desrespeito à mulher. É o pós-feminismo que está aí. Essa promiscuidade é horrível. Acho que estou me tornando puritana. Mas, na verdade, eu já era puritana quando mocinha.
No mundo literário que, teoricamente, é pautado pelas necessidades, pela crítica etc., acaba resvalando no machismo?
Mas isso só existe num país de Terceiro Mundo como o nosso, de mentalidade machista. Hoje não existe mais essa agressão, a não ser por parte de um ou outro idiota. Percebe-se a mudança em torno do respeito à mulher, principalmente, depois da Segunda Guerra Mundial, quando a mulher entrou e participou da vida pública sem ser agredida nos escritórios, nas universidades, na fábrica. A produção da mulher no meio intelectual é cada vez mais respeitada.
Em que época da sua carreira a senhora sentiu que se descolava das qualificações de ser apenas uma mulher bonita e começou a ser respeitada como escritora?
Foi um trabalho lento. Exigiu muita paciência e tolerância. Eram intolerantes comigo, mas eu era tolerante com eles. É um jogo. Quantas vezes eu ia a uma faculdade ou a um centro cultural e ninguém sabia nada a meu respeito, ninguém tinha lido nada meu. A ignorância era absoluta. Isso me doía. Eu me casei duas vezes. Por sorte os dois maridos que tive (Gofredo da Silva Telles Jr. e Paulo Emílio Salles Gomes) sempre me estimularam, me respeitaram muito como escritora. Engraçado que os homens da minha vida sempre foram muito solidários comigo. Isso é uma beleza, uma sorte. Depois atinge-se um ponto em que as pessoas a aceitam. Quando eu era muito jovem, pensava: ‘Puxa! Será que vou ter de ficar velha para ser reconhecida?’ Mas, felizmente, o reconhecimento veio antes. Eu conversava muito com a Clarice (Lispector) sobre isso e ela me dizia: "Lygia, repare que eu rio pouco. Eu sou mulher e para que me respeitem mais, eu preciso rir menos". Eu dizia para ela não fazer isso, para que ela risse, não permitir que o ofício a escurecesse.
Como era trabalhar e arrumar essa disciplina para poder criar?
Isso foi uma questão complicada. Uma coisa difícil de passar. Na minha adolescência, meu pai se separou da minha mãe. Meu pai apostava em jogos de azar, um homem extraordinariamente inteligente, bonito, formado pelaFaculdade de Direito, promotor e tal, mas era um jogador. Ficamos pobres. Minha adolescência foi de muito trabalho. Quando eu entrei para a Faculdade de Direito já trabalhava. Era funcionária pública, tinha de pagar meus estudos. Inclusive, a carência econômica refletia em alguns dos meus hábitos. Na faculdade, eu criei um estilo que foi seguido pelas jovens. Enquanto minhas colegas iam todas arrumadinhas, com vestidinhos de seda e sapatos bonitos, minha roupa era prática, econômica e elegante: meias três quartos, sapatos de salto baixo, terno de golfe, saias de lã com cores neutras para não chamar atenção, pulôveres, cabelos soltos e uma sacola de couro cru que costumava ser usada por peixeiros na feira. Minhas primas não me convidavam para as festas delas porque eu era pobre. A dureza daqueles tempos me deu energia para poder exercer um ofício burocrático na Secretaria de Agricultura. A vida prática me obrigou a separar as coisas. Esse começo de vida foi muito bom para que depois me tornasse uma feminista antes do feminismo. Era feminista porque eu me sustentava, era independente. Eu levei essa vantagem. Por outro lado, eu queria ser burguesa, frequentar lugares da moda etc., afinal, era uma jovem. Infelizmente, não pude. Talvez isso tenha feito com que eu me aprofundasse no trabalho, no ofício de escrever.
O que a senhora fazia na Secretaria?
Colava retratos. Havia alguns funcionários da Secretaria que saiam a cavalo e tiravam fotografias belíssimas de rios, montes, fazendas e tal. Eu organizava uma pilha de fotografias e artigos e depois os colava em álbuns.
Ou seja, não era nada estimulante o trabalho.
Absolutamente. Mas eu tinha uma paciência... porque eu sempre tive uma força interior e sempre fui muito devotada interiormente. Um dia eu disse a minha mãe que achava que podia ser santa, tamanho o fervor que eu tinha nas coisas que fazia. Ela me perguntou se eu tinha fé o suficiente para ser santa. Eu respondi: "Aí é que está, não".
Depois da reedição dos seus livros e de todo o trabalho que a senhora teve, vale a pena escrever no Brasil?
Do ponto de vista econômico, não. Se um jovem me faz essa pergunta, eu repondo que compensa. Economicamente, eu digo que não. Agora, o que vale a pena é cumprir a vocação. A alegria está aí: fazer uma coisa que você ama. A única compensação é a de cumprir um ofício amado. Vocação é vocação. Se você tem, vá em frente; se não, se for um blefe, a pessoa descobre ou alguém o faz.
Boa parte dos seus livros foi publicada em várias línguas, e as críticas sempre foram muito positivas. Mas parece que há uma descompensação em relação ao que sai no Brasil. A senhora sente isso ou é só uma impressão?
Eu gostaria que o sucesso eu tenho lá fora tivesse uma repercussão correspondente aqui no Brasil, mas isso não acontece. Quando eu era jovenzinha, eu perguntei ao meu pai por que não tinha nascido na França? Reclamava por ter nascido aqui, falar essa língua que ninguém conhecia. Ele me respondeu que, em primeiro lugar, ele não tinha dinheiro para que tivesse nascido em qualquer outro lugar no mundo; e, em segundo, eu devia amar minha língua. Eu era muito jovem quando tive essa conversa com meu pai. Com o tempo, eu descobri que ele tinha razão. Amo essa língua: não tem importância que a repercussão do meu trabalho aqui, às vezes, não seja boa.
Como a senhora analisa seu engajamento social?
Minha juventude toda eu passei com os escritores João Antônio, Ricardo Ramos. Íamos a centros culturais e universidade, pregando o que eu prego até hoje: o dia em que o Brasil tiver mais escolas terá menos hospitais. Ou seja, menos violência. Por que o país está desabrochado em violência, em drogas e em boçalidade? Porque não tem escolas. Continua sem escolas. Eu não aguento isso! Passei minha vida inteira fazendo pregações, verdadeiras cruzadas. Sacolejávamos em ônibus pelas estradas para dizer que o Brasil precisava de mais escolas para acabar com o analfabetismo. Porém, o analfabetismo desabrochou feito uma flor horrenda, pegajosa, viciosa e horrível. Daí a ignorância, daí a violência, daí a droga. Mas veja nossa classe política. Fora as exceções de praxe o que há é gente que vota exigindo pagamentos pífios, dinheirocas. Eu abaixo a cabeça e digo: é uma vergonha! Ainda bem que não são todos, mas alguns agem de forma repugnante. Mas a natureza humana é essa. O que eu vou exigir da natureza humana?
Uma melhoria?
A natureza humana é essa, eu não posso ser a palmatória do mundo. Mas, apesar de tudo, eu acredito na natureza humana. Mesmo com toda a patifaria, as sujeiras, as coisas horrendas que se assiste todo dia. Tanto acredito que ainda estou escrevendo. Na Faculdade de Direito e cantávamos o hino que falava da esperança na pátria e eu, de fato, acreditava que era a esperança, assim como os outros também eram. Mas nós fomos enganados. Agora o importante é que desses enganos é preciso tirar uma lição de vida. Eu falei há pouco que poderia ter sido santa, mas minha mãe disse que eu deveria ter fé para isso, porém a fé no meu ofício é tão profunda como o é a fé religiosa.
A senhora reza?
Rezo. Tenho meus santos e meus anjos. Acredito no anjo da guarda e todas essas coisas. Na verdade não é bem reza, são monólogos. Em geral, eu uso as minhas próprias palavras para as minhas confissões.
Sua literatura tem uma essência masculina, o carinho pelo homem, a sensualidade masculina. Isso é muito difícil na literatura brasileira.
Eu acho importantíssimo. Está na Bíblia. A solidão não é boa. Eu sou uma pessoa solitária, mas a solidão não é boa. É bom ter alguém do lado, envelhecer com essa pessoa do lado. É bom encontrar uma pessoa que se ama e ficar com ela, porque é uma forma de não se sentir solitário. Se você cai, o outro vem e o ajuda. É lindo. Estar próximo, mas próximo mesmo isso é importante.
Como fazer para enfrentar a solidão?
Eu leio muito, ouço muita música, tenho amigos. Embora em diversos instantes os amigos não estão do lado porque há momentos em que os amigos também têm suas coisas. Mas eu consigo superar.
Como é chegar ao instante em que a senhora vê que bons amigos já se foram?
Às vezes, eu dou um telefonema para um amigo e digo que estou com saudade, essas coisas. E também há o meu filho, tenho duas netas lindas. Eu recorro a esse pequeno núcleo familiar. Meu filho é meu interlocutor. Eu uso desses recursos. E há também os bichos, agora eu estou sem nenhum aqui em casa. Meu ideal seria morar numa casa com jardim e bichos. A Hilda Hilst conseguiu isso, ela tem uns 50 cachorros. Eu estou para visitá-la, quero ficar lá com eles, rolar com os cachorros pelo chão...
A senhora vem publicando há 40 anos. Quais os valores que a sua obra transmite para os mais jovens?
A coragem, a fé no ofício, na sua vocação. Através do meu texto, do meu trabalho, eu consigo passar o amor, a vontade de se aprofundar. Se eu conseguir passar isso, pronto. Eu estou feliz.
A senhora acredita ter conseguido passar essas coisas?
Sim, plenamente. Os jovens gostam de mim e eu deles. Eu nunca competi com os jovens. Atitude que geralmente os mais velhos têm com os jovens. De certa forma, eu me enxergo nos jovens. Há uma integração. Eu me integro a sua jovialidade. E isso é bom porque eu fico gostando deles. A poesia do Drummond, do Bandeira são poesias que eu recomendo muito aos jovens. Aliás, eu recomendo muito a leitura para os jovens. Eu fico mesmo indignada. Brasil, cuida da rosa do teu jardim. Porque não dá para cuidar de todo o jardim, não há tempo nem enxada para isso. Mas cuidando bem da rosa do seu jardim é o importante. E isso é cuidar dos jovens. Juventude, cumpra a sua obrigação, faça sua lição de casa. Porque de certo modo, eu sou eles. Eu tenho de gostar deles, da sua fragilidade, da sua busca, da sua esperança, da sua esperança, do seu amor. Eu estou bem comigo mesma, não sou amarga. Só não fiz mais porque não podia fazer mais. Tenho grande satisfação interior... Eu combati um bom combate e sem culpa. Houve uma época em que eu me sentia muito culpada, e a culpa é uma coisa horrenda.
São coisas da maturidade, não?
Às vezes, eu penso que hoje eu lavei a cabeça por dentro com escova. Lavar por dentro e não ficar nada, nenhum resquício, nenhum veneno. Eu vejo o quanto as pessoas podem ficar horríveis quando ficam amargas. Esse trabalho de lavar a cabeça por dentro às vezes dá certo. Talvez você tenha razão, são coisas da chamada maturidade.
A idade traz paz e felicidade?
Traz preocupações com a saúde. O receio de dar trabalho para os outros, o receio de você pesar para o próximo. Porém, se você se amargar com esse pensamento, as coisas ficam muito mais difíceis. Então, é preciso abrir umas certas janelas e nelas acho que há fé.