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Novos ciclos

 

Paulo Casale

 

Quando fui convidado a escrever algumas linhas sobre os caminhos da música instrumental, pensei inicialmente em fazer referência aos elementos contemporâneos e às informações que incidem sobre a realização da linguagem musical, e que raramente são assinalados, pela quase inexistente literatura especializada e, principalmente, pela velocidade impressionante em que acontecem. Partindo disso, lembrei-me de um concerto altamente instigante a que tive oportunidade de assistir recentemente em São Paulo e que traduz um pouco a idéia da contemporaneidade, remisturando elementos tecnológicos de ponta com uma referência musical histórica inventivamente revisitada. Ainda que não tenha sido protagonizado por um brasileiro, não vejo diferença, pois a única fronteira é aquela que separa a boa música da música ruim.

 

O concerto a que me refiro é o do inglês Matthew Herbert, que me causou algumas surpresas criativas, colocando interrogações positivas acerca desse universo inesgotável e me fazendo transitar pelas delimitações do quase. Inicialmente, deparei com a dificuldade de encontrar um termo correto para definir tal apresentação, que pairava entre concerto, show ou mesmo performance. Ele, o músico, ou, quem sabe, DJ-produtor, tinha sob sua batuta (maestro?) uma orquestra de 15 músicos numa formação tipicamente universal, dividida nos tradicionais naipes de trombones, saxofones e trompetes, ritmados por uma competente cozinha de piano, baixo e bateria. Pensando melhor, uma definição mais aproximada seria “conserto”, assim mesmo com “s”, pois o tal maestro-DJ-músico-produtor o tempo todo acionava comandos em equipamentos e máquinas (computador, filtros, samplers e processadores de efeito), numa ação mais comum a um técnico em eletrônica do que a um músico, ou seja, ele “consertava”. Para se ter idéia, o tal con(c)serto-show-performance começou com o solo Xícara-batendo-no-pires. Som? Bem, o mestre Hermeto diz: “Tudo é som”.

 

Imediatamente sampleado e reprocessado, esse som concreto dividiu com a orquestra arranjos primorosos, solos e frases. Só para citar mais um momento, lá pelas tantas, o maestro-DJ – ou seria DJ-maestro? – convocou, sem nenhuma preleção, a platéia para participar do solo “musical” Flashes-de-celulares + máquinas fotográficas, que transformou o teatro numa verdadeira sala estroboscópica e alucinante. Infelizmente, perdi a chance de participar da canja, pois não tinha levado meu instrumento-celular/câmera-fotográfica.

 

Nessa perspectiva de novo século, já que nem só as terminologias se reciclam, a música instrumental passa de predicado a sujeito e torna-se instrumento para a Música, um verdadeiro laboratório de experiências que vão muito além de ritmo, harmonia, melodias e timbres. Inclui, também, a criatividade, o caráter performático – características marcantes da música brasileira –, o trânsito com as demais linguagens artísticas e o suporte tecnológico; este, até agora restrito aos estúdios, passa a ganhar espaço e se populariza sendo manipulado nos palcos em tempo real. Se, na sua essência, a música instrumental é popular, nada mais popular hoje do que os celulares. O grande vilão das platéias vai brevemente subir aos palcos. Experimental ainda, uma das maiores fontes potenciais de distribuição musical e a grande mídia do século 21, o celular está se transformando em instrumento musical, a exemplo dos DJs. Estes transformaram o meio de difusão, o LP, em instrumento por meio de engenhosa manipulação e, por que não dizer, fazem também música instrumental com características próprias, marcadamente rítmicas e timbrísticas, num efeito muito mais físico que intelectual, mas igualmente prazeroso. Vale citar que já pipocam no Brasil e no mundo diversos concertos, com “c” de celulares, cujas notas são agora alcunhadas de dialtones e nós, assim como qualquer músico, já podemos reproduzir, ou mesmo tocar no celular nossa música predileta, em vez daquela irritante musiquinha de caminhão de gás.

 

Paulo Casale, formado Letras, é técnico do Sesc