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Mocinho ou bandido?

 

Segundo informa o sociólogo Laurindo Lalo Leal Filho, professor da Escola de Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo (ECA-USP), no texto a seguir, o governo da Suécia proibiu a publicidade na TV dirigida a crianças com 88% de aceitação da opinião pública. O fato leva a uma polêmica: como a publicidade e a propaganda enxergam as crianças, indivíduos com direito ao poder de escolha ou meramente uma fatia de mercado a ser explorada? Para analisar a questão, convidamos, além de Lalo Leal, também o professor Edson Crescitelli, coordenador de comunicação da Escola Superior de Propaganda e Marketing (ESPM). Em artigos exclusivos, os prós e contras da publicidade infantil

 

 

 

A publicidade é tão pura quanto uma criança...

por Edson Crescitelli

 

...e também tão vil quanto um vilão de história em quadrinhos. Ficou confuso? Afinal, a publicidade é boa ou não? Ou, para usar uma linguagem própria das histórias infantis, a publicidade é o mocinho ou o bandido? Essa colocação inicial serve para provocar uma reflexão sobre o tema deste artigo, que é a publicidade para crianças. A resposta mais adequada à pergunta acima seria que a publicidade para crianças pode ser tanto o mocinho quanto o bandido, ou seja, ela pode ser boa ou má. Para entender esse tema, é preciso antes definir o que é publicidade.

Primeiramente, vamos esclarecer que, muitas vezes, o termo publicidade é utilizado de forma equivocada para designar o que, em verdade, é propaganda. Tecnicamente existem diferenças significativas entre essas duas formas de comunicação. Uma rápida explicação para não fugir muito do foco: enquanto a publicidade não pode ser paga, não pode ter seu conteúdo controlado e não é repetitiva, a propaganda, ao contrário, é paga, seu conteúdo (sua mensagem) será sempre controlado e ela pode ser repetitiva. Porém, para manter a unidade do tema em discussão, vamos considerar neste artigo como publicidade o que tecnicamente seria propaganda, ou seja, anúncios pagos pelos fabricantes de produtos ou prestadores de serviços, cujo conteúdo (a mensagem) será sempre altamente favorável ao produto ou serviço ofertado, e que é, quase sempre, repetitivo, o que quer dizer que é veiculado várias e várias vezes.

Uma vez esclarecidos os conceitos e as características da publicidade, é momento de abordar sua função. A publicidade tem por função divulgar um determinado produto ou serviço para que o público possa tomar conhecimento de sua existência. Sua função de divulgação inclui dois aspectos básicos. Um deles é o caráter informativo, ou seja, informar sobre os atributos do produto ou serviço, o que significa destacar características, benefícios e diferenciais. O outro é o caráter persuasivo, o que significa estimular, convencer e motivar o público-alvo. Quanto mais informativa e convincente for uma publicidade, maiores as chances de o produto ou serviço convencer os consumidores. É claro que, para cumprir seu objetivo, a publicidade utiliza as mais variadas técnicas a fim de chamar a atenção, despertar o interesse e provocar uma reação favorável do consumidor, porém, isso, por si só, não pode ser considerado automaticamente ruim ou nocivo para nenhum tipo de público, inclusive o infantil.

Com base em sua função, podemos avaliar a publicidade para crianças sob três aspectos diferentes para ver o quanto ela pode ser boa ou ruim. O primeiro refere-se à publicidade realmente nociva para crianças, ou seja, aquela que, independentemente do produto que divulga, é mentirosa, deseducativa e enganosa e deve ser totalmente rejeitada. Porém, devemos considerar que nem todas as publicidades são iguais. Existe publicidade boa, séria e responsável, assim como existe  publicidade ruim, inconseqüente e irresponsável. Essa dualidade pode ser encontrada em todo tipo de atividade humana e não só na publicidade. Portanto, não podemos tomar a má publicidade como sendo a única  forma de publicidade possível.

O segundo aspecto indica que informar e convencer podem ser atividades normais e bem aceitas. A questão que queremos levantar é que o problema da publicidade para crianças talvez não esteja na publicidade em si, mas, sim, no tipo de produto ou serviço que ela está divulgando. Vejamos: o anúncio de um brinquedo educativo que ressalta os benefícios do produto e estimula sua compra certamente contribuirá para o desenvolvimento da criança receptora da mensagem. Podemos considerar essa publicidade ruim? Creio que não. Agora, tomemos outra situação: um anúncio de brinquedo que estimule a violência. Ele irá informar sobre as características de tal brinquedo e estimular sua compra. Essa publicidade pode ser considerada ruim ou nociva, certo? Entretanto, trata-se da mesma publicidade. Ou seja, a publicidade em si não é necessariamente boa ou ruim; na verdade, ela é um instrumento, é um meio e não um fim. O que deve ser considerado na análise são os produtos ou serviços que estão sendo ofertados e não só a publicidade deles.

É preciso considerar que a decisão de produzir e comercializar um produto ou serviço inadequado, socialmente incorreto ou para uma criança sem poder aquisitivo é, antes de tudo, uma decisão de negócios ou de marketing e não de comunicação. Ainda que nós também sejamos contra essas práticas, contudo, não podemos simplesmente culpar a publicidade por divulgar essa prática repulsiva. Seria como atribuir ao carrasco – e não a quem determinou a condenação – a culpa pela execução do condenado.

O terceiro aspecto envolve o conteúdo da publicidade. Aqui, também, acreditamos que vale outra reflexão. De forma geral, a publicidade é considerada nociva por utilizar, em seus apelos para convencer os consumidores infantis, abordagens que muitas vezes podem parecer agressivas, muito avançadas ou liberais em demasia. Porém, é preciso considerar que a publicidade, em geral, reflete valores, comportamentos, hábitos e atitudes da própria sociedade na qual ela está inserida. Isso porque, para poder persuadir seu público, para ser convincente em seus argumentos, a publicidade precisa falar a mesma linguagem de seus consumidores. Portanto, a publicidade sempre estará acompanhando a evolução da sociedade e explorando o comportamento de seu público para tentar informar e persuadir de forma eficiente. Esse conceito pode ser aplicado não só em relação à publicidade, como também ao processo de marketing, ao qual ela está vinculada.

Tempos atrás, o mercado de crianças simplesmente não existia. Crianças não consumiam nenhum tipo de produto industrializado. Comiam a mesma comida que os pais comiam, usavam roupas escolhidas pela mãe e herdadas do irmão mais velho ou de um parente próximo. Brincar? Claro que brincavam, mas com brinquedos artesanais, feitos muitas vezes por elas mesmas, e de brincadeiras de rua. Então, a sociedade evoluiu, a população rural virou urbana, a mulher ingressou no mercado de trabalho, novas tecnologias trouxeram a TV, o CD, a internet, o celular, enfim, o mundo mudou e muito. Novos valores, nova forma de organização social. E foi dessa evolução que surgiu o mercado infantil, como o conhecemos hoje e que não pára de crescer e se sofisticar. Quem criou esse mercado não foi a publicidade nem tampouco o marketing das empresas. Eles podem até ter contribuído, mas na essência exploram as condições geradas pela própria evolução da sociedade. Dessa forma, quando uma publicidade – falamos aqui da boa publicidade, aquela adequada aos valores e às regras sociais aceitas – aborda formas de persuasão por vezes incompreendidas por parte da sociedade, ela pode estar apenas refletindo os valores das gerações mais novas. Assim, antes de reprovar a publicidade em si, às vezes, é preciso verificar se não são os valores ou comportamentos sociais que devem ser questionados.

Finalizando, nossa intenção não foi defender a publicidade para crianças nem condená-la incondicionalmente. Acreditamos que ela tanto pode ser boa quanto má, dependendo de como for utilizada ou de como for encarada. Falar dos aspectos negativos da publicidade para crianças talvez seja tarefa até mais fácil do que defendê-la. Contudo, acreditamos que esse tema não seja tão simples quanto possa parecer à primeira vista e que outros aspectos – os quais procuramos abordar rapidamente neste texto – também sejam pertinentes para uma melhor compreensão do tema. Esperamos que agora seja mais fácil cada um de nós concluir se uma determinada publicidade é o herói ou o vilão da história. Como seria fácil se na vida pudéssemos identificá-los tão prontamente quanto nas histórias em quadrinhos!

 

Edson Crescitelli é professor, doutor e coordenador de comunicação da Escola Superior de Propaganda e Marketing (ESPM), e professor e coordenador da área de marketing da Faculdade de Economia, Administração e Contabilidade da Universidade de São Paulo (FEA-USP)

 

 

Propaganda e crianças

 

por Laurindo Lalo Leal Filho

 

A Suécia acaba de banir a publicidade na TV dirigida às crianças, com apoio de 88% da população. No Brasil nunca se fez esse tipo de pesquisa, mas acredito que, apesar de todas as diferenças culturais e econômicas existentes entre os dois países, as respostas seriam semelhantes. Afinal não é justo impor pressões comerciais às crianças quando elas ainda não têm idade nem para diferenciar ficção da realidade.

Aqui, a situação agrava-se com a cruel distribuição de renda. Os anúncios estimulam um consumo que a maioria dos pais não pode realizar, aumentando a perversidade do problema, com tristes conseqüências. Como a do menino da periferia que, ao ser detido pelo segurança de um supermercado tomando um danoninho, disse estar apenas querendo saber que gosto tinha esse produto tão anunciado na televisão.

Está mais do que provado o poder de indução da TV às diferentes formas de comportamento infantil, positivas e negativas. Infelizmente estas últimas são predominantes, variando apenas o grau de periculosidade. Desde amarrar um avental às costas e pular de alguns degraus da escada, imitando um herói de desenho animado, até esfaquear a coleguinha, como fez um menino em Brasília reproduzindo imagens vistas na televisão, como ficou comprovado.

Mas há evidências ainda mais claras dos efeitos da televisão sobre o comportamento infanto-juvenil. Para provar a existência dessa relação, o professor e produtor do programa Child of Our Time, da BBC, Robert Winston, relatou um trabalho realizado com quatro crianças de 3 anos. Elas foram colocadas numa sala em que assistiam, pela TV, ao que ocorria na sala de brinquedos ao lado. Na tela viam um ator aparecer e acariciar com ternura uma boneca de borracha de tamanho natural. Em seguida, as crianças foram conduzidas uma a uma para aquela sala. Todas, rapidamente, passaram a acariciar a boneca, como haviam visto na TV. Um pouco depois, as crianças voltaram para a frente do televisor e a cena que aparecia era diferente. O mesmo ator surgia agora com um martelo de madeira e agredia violentamente a boneca. Quando as crianças retornaram à sala de brinquedos, atacaram a boneca sem dó. Uma delas, normalmente tímida e retraída, exagerou, e sua violência prosseguiu mesmo depois de a mãe chamá-la, pedindo para parar. Demorou algum tempo para que ela parasse de bater na boneca e ficasse calma. Se alguém ainda tem dúvida, essa é a prova cabal de como a televisão impõe comportamentos desde cedo.

E não apenas explicitamente violentos, como o do experimento relatado. Há também a violência sutil, aplicada em doses homeopáticas, ao longo de muitos anos. É nela que se enquadra a propaganda, instalando hábitos e inculcando valores desde cedo. Aprende-se com os anúncios que só através do consumo se chega à felicidade e que a posse de determinados objetos torna algumas pessoas diferentes e superiores às outras. Molda-se, dessa forma, toda uma vida. Os únicos antídotos existentes para esse envenenamento precoce são oferecidos pelo entorno familiar e pela escola, instituições capazes de relativizar o poder da televisão. Em reduzidos setores da sociedade brasileira isso é perceptível. Escolas com métodos pedagógicos modernos e competentes, pais intelectualizados e com um nível de renda que permita o acesso a outras formas de conhecimento impedem que a televisão e a propaganda exerçam domínio absoluto sobre a cultura infanto-juvenil. Falamos, infelizmente, de uma minoria privilegiada. A maioria no Brasil tem na televisão sua única fonte de informação e entretenimento, tornando-se presa fácil da monopolização cultural.

Sobre as crianças mais velhas, há uma pesquisa da Unesco [Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura], realizada em 23 países (entre eles o Brasil), com 5 mil jovens de 12 anos, mostrando a importância dos heróis televisivos e pop stars na imaginação infanto-juvenil. Eles são cada vez mais modelos de vidas consideradas bem-sucedidas. Não é por acaso que astros da televisão, pelo menos aqui no Brasil, transfiguram-se em garotos-propaganda, usando para vender mercadorias a aura conquistada nos programas de entretenimento.

Trata-se de uma violência praticada por adultos que seduzem as crianças e os jovens com seus encantos ficcionais, conseguindo estabelecer com eles uma relação fraternal e de confiança, mas ao mesmo tempo os traem, ao se apresentar como vendedores de todo tipo de mercadoria. Fazem isso, muitas vezes, sem o mínimo pudor, inserindo o comercial no meio do programa infantil, impedindo a distinção entre o entretenimento e o comércio. É o tão decantado merchandising, xodó de publicitários e camelôs eletrônicos.

Por trás desses anúncios está uma bem azeitada engrenagem cujas origens remontam ao pós-guerra, como lembra o sociólogo Emir Sader, em artigo recente. Na época, uma revista norte-americana chamada Seventeen enviava mensagens para as agências de publicidade dizendo que os jovens adolescentes eram “macacos de imitação”, com tendência a imitar-se mutuamente, acabando por usar as mesmas roupas e as mesmas comidas. O alvo foi sendo ampliado e hoje atinge crianças que mal aprenderam a falar. Sabem os publicitários que a infância e a juventude constituem-se num poderoso mercado de consumo, calculado nos Estados Unidos em 300 bilhões de dólares – dinheiro que os pais utilizam para satisfazer as vontades de seus filhos, movidas pela propaganda.

Nada é feito às escondidas. Na 4ª Conferência Anual de Publicidade e de Promoção para Crianças (até isso existe!), um evento que dá prêmios aos melhores publicitários voltados para o mercado infantil, realizado em setembro de 2001, um dos participantes ressaltou o aumento da influência das crianças no consumo, dizendo que são elas hoje “o setor mais poderoso do mercado e devemos aproveitar”. Sobre ética, responsabilidade social, respeito à criança como um ser em formação, nada foi dito. Mas, tão importante quanto a venda atual é a criação do consumidor do futuro, adestrado desde os primeiros anos de vida para ter determinados hábitos que o levarão, na vida adulta, a manter as mesmas linhas de consumo.

Se, de um lado, a ofensiva publicitária é cada vez mais intensa, buscando conquistar corações e mentes desde o berço, de outro, alguns governos começam a se sensibilizar para a questão, instituindo formas de proteger a infância da televisão. Aliás, a Constituição brasileira diz que a lei deverá criar mecanismos para proteger a família da TV, lei que até hoje inexiste. Mas, na Europa, a década de 90 mostrou avanços sensíveis, impulsionados pela Convenção da ONU [Organização das Nações Unidas] de 1989 que preconizava a necessidade de “encorajar o desenvolvimento de orientações apropriadas para proteger a criança de informações e materiais prejudiciais ao seu bem-estar”. Colocando em prática essa orientação, França, Inglaterra, Alemanha e Itália estabeleceram regras de proteção à infância, entre elas a exigência de uma distinção clara por meio de sinais ópticos ou sonoros das emissões publicitárias. É exatamente o oposto da confusão proposital efetivada pelo merchandising.

Além disso, a Diretiva Européia sobre Televisão sem Fronteiras, adotada por vários países do continente, indica que os anúncios não devem incitar diretamente as crianças a compra, ou estimulá-las a persuadir seus pais para que comprem alguma coisa, valendo-se da inexperiência e da credulidade infantis. Nem pensar, por exemplo, a exibição do comercial que passou na TV brasileira, no qual um jovem não queria chegar à festa trazido pelo pai, para não se sentir criança na frente dos amigos. Mas quando o pai trocava de carro e ele aparecia descendo de um modelo novo e caro, a vergonha era deixada de lado, superada pelo orgulho de possuir um carro último tipo.

Alguns países foram além do sugerido pela Diretiva Européia.

A Alemanha proibiu a inserção de publicidade em qualquer programa infantil. Nos canais públicos italianos não pode haver propaganda em programas infantis e na França o merchandising é proibido. A recente decisão sueca é ainda mais avançada e se apóia, além da pesquisa, na constatação de que as crianças não nascem com anticorpos necessários para se defender das pressões comerciais e, por isso, têm direito a zonas protegidas.

Aqui impera a lei da selva. Produtos para o público infantil são anunciados antes, durante e depois dos programas dirigidos a essa faixa etária. Qualquer tentativa de civilizar a televisão é apontada como censura ou obstáculo à livre iniciativa, sem que os autores dessas falácias se sensibilizem com as deformações culturais e psicológicas impostas pela propaganda. São os mesmos que se queixam da violência urbana, da brutalidade no trânsito, do mau comportamento das crianças e dos adolescentes, fechando os olhos para a relação desses fatos com a educação para o consumo e o individualismo, imposta incessantemente pela propanganda na TV.

 

Laurindo Lalo Leal Filho é sociólogo, jornalista e professor da Escola de Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo (ECA-USP)