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Encontros
Aula de geografia
O geógrafo Aziz Ab’Sáber, professor emérito da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo (FFLCH-USP) e membro do conselho da Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência (SBPC), participou da reunião do conselho editorial da Revista E. Durante o encontro, falou sobre os problemas da Amazônia e sobre a seca do Nordeste – o que o levou a tocar na polêmica questão da transposição das águas do Rio São Francisco. A seguir os principais trechos da conversa.
“Há dezenas de anos eu ouço falar que era preciso transpor as águas do São Francisco para resolver o problema do Nordeste seco, do semi-árido brasileiro. Ora, quem conhece o semi-árido brasileiro no seu conjunto sabe que ele tem 750 mil quilômetros quadrados de área. Isso é três vezes o estado de São Paulo. Então, transpor as águas do São Francisco como está sendo planejado é algo que não vai atingir o todo. Quando me perguntam o que eu acho da transposição das águas, respondo que se fosse num momento mais factível com outros projetos para o Nordeste seco ela seria uma boa alternativa, mas no atual momento, e tomando tal atitude de maneira isolada – e dizendo que vai resolver o problema –, seria uma idiotice. Ou seja, mais uma vez eu fui contra a transposição das águas. Certa vez, uma pessoa chegou para mim e disse que perdeu votos porque eu disse que não era o momento de falar em transpor as águas do São Francisco. Disse e digo quantas vezes forem necessárias. O País está em condições críticas do ponto de vista econômico, e no momento em que um político força o início de uma obra desse porte, sem saber se haverá possibilidades de continuá-la, o problema só aumentará. Há muito ainda para fazer. Foi por isso que me fixei nessa questão do planejamento dentro de alguns fatos prévios essenciais. Há três tipos de planejamento: o pontual, o linear e o areolar. O pontual é aquele dirigido a uma cidadezinha, uma aldeia ou, enfim, há pontos dentro um conjunto maior. O linear diz respeito à abertura de uma estrada ou à transposição de águas de um rio para outros – e ainda à revitalização de beiradas pobres de rios tradicionais. Trata-se de uma medida que contempla uma estreita faixa de terras, por isso mesmo eu não posso falar que seja algo assim que vá resolver os problemas do semi-árido brasileiro, que é toda uma área. Assim sendo, é o terceiro tipo de planejamento, o areolar, que me interessa, porque ele envolve o todo espacial de uma região. Agora, no Brasil essa questão tornou-se muito séria, justamente por conta do tamanho e da complexidade de nossas grandes regiões naturais ou geoeconômicas. Por uma questão de equilíbrio, entretanto, é necessário lembrar que certos projetos pontuais têm força para uma distribuição irradiante de interesse macrorregional. Esse é o caso das usinas hidrelétricas do trecho do Rio São Francisco entre Sobradinho, Paulo Afonso e Xingó. Daí a dúvida de muitos pesquisadores e planejadores sobre a forma de dosar a continuidade do processo energético com a transposição de um certo volume de águas para o sertão norte (Ceará e Rio Grande do Norte) por meio de um projeto custoso e demorado.
A prévia para que se possa aceitar o projeto de transposição das águas do São Francisco – para o sertão norte além-Araripe – se divide em diversos setores do conhecimento: uma reforma agrária dirigida para as faixas de terras da beira do Jaguaribe e do Açu-Piranhas, seleção de subáreas das terras firmes e terraços para irrigação, proteção diferenciada para os agricultores das vazantes dos rios e, sobretudo, criatividade nas propostas regionais de desenvolvimento social e socioeconômico.”
Endereço de uma carta
“A Amazônia é mesmo um mundo à parte, dada sua ordem de grandiosidade e biodiversidade – razoavelmente preservada em área, mas muito afetada localmente e sub-regionalmente. Nesse caso, escrevi uma carta e mandei para o governo, dizendo que o planejamento para a Amazônia devia ter uma prévia. O que significa que, em primeiro lugar, é preciso dividir a Amazônia em células espaciais características para estudo – trabalho que eu já fiz. Já que ela tem 4,2 milhões de quilômetros quadrados, essas células poderiam ter de 80 mil a 150 mil quilômetros quadrados em média. E dentro de cada célula seria necessário conhecer as realidades de cada área para poder servir a elas no todo, no conjunto. Na carta, eu sugeria que se fizesse uma prévia, ainda em Brasília, com a participação de pessoas que conhecessem bem a Amazônia. Afinal, numa região de 4 milhões de quilômetros quadrados (o que equivale a 16 vezes o espaço administrativo do estado de São Paulo) existem diferenças fantásticas, que, quando não são da ordem da biodiversidade, são das formas de ocupação degradadora, como no sul do Pará, que possui uma geografia humana sofrida nas áreas sujeitas a diferentes atividades, cidades de funções precárias, trabalho escravo esparso e continuado, poluição hídrica em áreas de garimpagem e, sobretudo, questões ligadas à circulação no interior das selvas e na rede hidrográfica.
Pois bem, eu imaginava uma reunião em Brasília para atender ao complexo de todas essas peculiaridades sub-regionais e organizar um método de trabalho para conhecer cada célula espacial. Desde o Alto Rio Negro até a região bragantina do Pará, entre Belém e Bragança, ou desde Roraima até o extremo norte de Mato Grosso, ou ainda desde o Acre até o sul do Pará. Em seguida, esse grupo matriz organizaria umas seis ou oito equipes de pesquisadores para ir a esses diferentes lugares e se entranhar nos problemas de cada área. Problemas de ordem econômica, questões de cidadania, saúde pública, relações humanas, educação e transporte – que ao longo da região ora é fluvial, ora feito parcialmente por rodovias que a região recebeu nos últimos 40 anos, tais como a Belém-Brasília, a Transamazônica e a incompleta Perimetral Norte.”
Direcionamento dos meus últimos trabalhos
“Já que ninguém aceitou uma coisa tão lógica, que é pensar na Amazônia como um todo, partindo de suas sub-regiões para entender como aplicar recursos lá – sem fazer esses desastrosos sistemas de que os grandes políticos gostam –, precisamos de uma alternativa metodológica. E a que escolhi dá conta disso e de muitas outras coisas, mas para tanto é necessário ter um bom conceito da complexidade do planejamento em relação a países tropicais úmidos. Durante algum tempo, escrevi, mensalmente, artigos para a [revista] Scientific American Brasil relembrando tudo aquilo que pesquisei e que não tinha conseguido publicar. Nos últimos dois anos, reuni 30 desses artigos, que dizem respeito à ciência e ao planejamento. Neles, encontra-se um pequeno capítulo sobre planejamento pontual, linear e areolar – o trabalho que mandei para o governo dividido em duas partes, Amazônia Brasileira 1 e 2, e ainda um outro artigo que chamei de Amazônia Brasileira em Risco. Além desse, no mês de novembro último publiquei um artigo que tem o valor de uma alternativa para a proteção das florestas nacionais, que chamamos de flonas, a fim de evitar o crime, em andamento, pelo qual se pretende conceder as flonas para ONGs nacionais ou internacionais ou ainda alugá-las para exploração madeireira. Sem nenhuma vaidade, considero essa série de trabalhos a melhor coisa na qual estou envolvido hoje. E, ao completar 80 anos, quero continuar a pensar insistentemente no meu País e lutar contra a idiotice de políticos mal preparados, sujeitos permanentemente à pressão dos especuladores.”