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Ficção inédita

 

Os pisca-piscas do vale

 

Lourenço Diaféria

 

Era o bloco mais volumoso no quarteirão; alteava-se sobre as construções baixas cobertas por telhas de barro sépia que se tornaram mais escuras à medida que o tempo passara. A região perdera vaidades e então era conhecida apenas pelos escritórios e saletas modestos, depósitos, cômodos sem uma utilidade definida e ainda alguns apartamentos apertados que tentavam amenizar a aflição dos moradores. Quando se decidira construir o prédio – muito tempo antes – imaginava-se que o progresso daria cara nova e nova vitalidade àquele estagnado pedaço da cidade. Quase imponente, porém sem luxos, a finalidade da obra fora a princípio abrir espaços para a vida em família, que começava a revelar problemas hirsutos. Logo as boas intenções foram corroídas por mentalidades menos beneméritas, outros interesses imediatos e prementes. Carrinhos de mão, sacolas de lona, pacotes amarrados para despacho rodoviário e apressados desfiles de entra-e-sai de pés com sandálias de tiras ou completamente descalços invadiram e instalaram-se no território. Este se transformou num palco penumbroso de necessidades. A decadência era dissimulada pelos contrastes mais esfolados e em carne viva, observáveis no lado externo do prédio: grupelhos de mendigos vagavam nas cercanias, sem autorização para repousar nas calçadas em torno.

 

De início o prédio exibira acima da porta de entrada uma plaqueta de identificação, de cobre, que fora desaparafusada de madrugada e vendida como sucata. Numa outra parede interna do corredor, os algarismos, também metálicos, que sinalizavam os mais de 20 pavimentos, da mesma forma haviam sido arrancados cavando cicatrizes no reboco. No entanto, ninguém gostava de revelar ser habitante ou exercer tarefas no pombal. Pombal: era como o prédio costumava ser denominado, com razão, por sua aparência feia e agitação caótica. Ao contrário, mantinha-se evidente respeito quando o local era identificado com o conhecido nome de famoso santo mártir napolitano, que era a denominação oficial da edificação. Mesmo quando as divisões internas passaram a ser montadas com tabiques e tapumes, as áreas repartidas em desvãos, e a maioria dos elevadores se entrevara sem luz e força, mesmo quando se espalhara pelos tugúrios verticais a demeritória informação de que um recém-defunto tivera de ser despedido em caixão pelas escadas e um outro, sem melhor sorte, fora descartado em pé, escorado pela cintura, mesmo nesse período a denominação original do prédio volta e meia era lembrada como elogio póstumo.

 

O cenário de chaga urbana putrefata era completado por um antigo canal de esgotos, depois retificado, em que as águas lodosas e lentas se misturavam para desembocar muito adiante num rio maior, de verdade, com pontilhões de concreto para possibilitar o trajeto de pedestres. Tudo isso vizinho do amplo mercado de víveres cuja construção colidia com a vizinhança pela arquitetura elegante e austera de suas linhas e pela fartura dos produtos comerciados. O mercado tornara-se um festival de pregões, oportunidades e oferecimentos. Mais que afrontoso, parecia impossível que a descarnada pobreza das ruas ousasse conviver e competir com as bancas, barracas e estrados que exibiam salames, queijos, copas, grande variedade de embutidos, ao lado de pargos, pintados, pescadas, vermelhos, bagres, namorados, lagostas, lagostins, camarões, bacalhaus, cabritos, carneiros, leitões, coelhos, rãs, tremoços, pernis, alcaparras, pimentas-de-cheiro, verde, branca, rubra e preta, oréganos, noz-moscada, temperos, frutas e verduras que combinavam odores que açulavam a saliva gulosa e o suco gástrico dos que tinham dinheiro, sacola, bolsa e bolso para abastecer-se.

 

Uma linha divisória surgira desordenada, porém nítida, formada por ambulantes, camelôs e mascates que comerciavam quinquilharias e separavam do entorno a área específica do mercado. Eram biscateiros. Quando se avizinhavam as festas de fim de ano, esse tipo de atividade atraía toda sorte de deserdados. Vendedores de guirlandas, festões, ornatos plásticos, flores artificiais, brinquedos baratos e, em especial, conjuntos de pequeninas lâmpadas que pisca-piscavam tomavam conta do pedaço. As lâmpadas tinham muita procura e saída, serviam para enfeitar lojas, árvores, salas e presépios. O pequeno mas agitado comércio animava a cidade inteira, porém era na região do mercado que mais florescia. Não por casualidade. É que comer, comer bem, fartar-se estufando o ventre, era completado pelo prazer de admirar a luminosidade colorida das lâmpadas que tinham o formato de velas delicadas. Embora haja pessoas que discordem, as coincidências refletem o mutismo misterioso do universo. O próprio acaso, ao qual se atribuem surpresas, não é um fortuito pingo de orvalho solidificado no sereno das horas. O acaso, todo acaso, tem origem, fins, roteiro, rumo, trajetória. Fatos não acontecem por acontecer. Tentar explicá-los é o modo de olhar, sentir, ponderar, imaginar. A vida, mesmo a aparente banal vida, não é uma linha reta, uniforme, exata. A vida é feita de altos e baixos, depressões, buracos, lombadas, elevações. A própria voz humana, voz animal, que esmaece com a idade, ao desaparecer de todo fica alojada num eco cavo em algum lugar do universo. No entanto, assim como para um camelô oferecer ao público seus badulaques e conjuntos de lâmpadas pisca-piscas não se exigem diploma e especialização de espécie alguma, também não importa esse tipo de conjeturas cerebrinas. A atividade é considerada apenas mero desaperto de vida.

 

Era essa a situação dos marreteiros que labutavam às margens do canal de água turva nas cercanias do vistoso mercado de gêneros alimentícios. Nessa circunstância o fato pungente viera à tona: no pombal, no qual não havia quintais e as antigas áreas de serviço acolhiam agora varais em que se dependuravam roupas multicores e molambos desbotados, uma criança, ao zoar pelos corredores enquanto os pais estavam ausentes para conseguir a sobrevivência diária, debruçara-se numa grade enferrujada, perdera o equilíbrio, e precipitara-se no espaço. Fora uma queda livre de mais de 20 metros de altura. Apesar das facadas, tiroteios, discussões, brigas, agressões verbais e ameaças que faziam parte da rotina do edifício, era o primeiro acidente com tamanha gravidade.

 

Como as versões dos fatos têm pernas longas e correm mais lépidas que a própria realidade, o episódio parecia resumir-se a uma lamentável tragédia humana, em que a criança, ao espatifar-se no tombo, transformara-se num inocente anjinho celestial. Era como os camelôs semeavam o caso. Se bem que havia minúcias. O corpo da criança não se projetara diretamente no solo. No trajeto encontrara a fiação elétrica suportada pelos postes de concreto, com a qual chocou como se fosse brinquedo de cama elástica. Só depois o corpo chegou ao chão. Acorreram curiosos, moradores do edifício, fregueses do mercado, comerciantes e marreteiros locais. Então, o inacreditável: a criança respirava. Sem fraturas, sem arranhões, sem equimose. Uma equipe de pronto-socorro conduziu afobada o moleque para um hospital mais próximo, no qual a criança ficou em rigorosa observação. Estava sã, salva, saudável, apenas assustada. Teve alta uma semana depois, quando a incredulidade dos médicos foi substituída pela convicção de que ninguém morre a não ser quando chega a sua hora determinada. Enquanto isso a medicina continua a ser uma ciência meritória, porém nem sempre exata.

 

O fato que acima é narrado não tem exageros de monta. Se os há, não foram inventados pelo narrador, mas pela existência. Hoje ninguém sabe dizer por onde anda a antiga criança, mas deve ser uma pessoa adulta, melhor ainda se tiver emprego e carteira assinada, família, parentes, amigos, conhecidos e companheiros de lutas e vicissitudes. Deve também ter saúde e plano de atendimento médico. Enfim, deve ter cidadania, que é o nome que se dá, com ênfase, a direitos elementares do ser humano. Também deve ser uma pessoa feliz. Ou quase. Se, por acaso – e, como disse, o acaso a rigor não existe –, ler estes fatos aparentemente atabalhoados, poderá confirmar que num edifício tido como pombal, numa região da cidade que ainda existe, era possível a uma criança voar sem asas e sobreviver sem que a isso se desse o nome de milagre, fenômeno em que nem todo mundo acredita. Todavia, fica aqui registrado o alerta de que a existência humana são pisca-piscas. Quem tiver olhos de ver, que veja. E faça bom proveito da alegria com que se encerra o ano.

 

Lourenço Diaféria é autor, entre outros livros, de O Empinador de Estrela (Moderna Editora, 2003)