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Entrevista

 

Dalmo Dallari

 

Em entrevista exclusiva à Revista E, o jurista e professor fala de política, educação e sociedade

 

O jurista e professor Dalmo de Abreu Dallari nasceu em Serra Negra, São Paulo, em 31 de dezembro de 1931. Ingressou na Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo (USP), formando-se em 1957 e voltando como professor em 1964, após aprovação para livre-docência em teoria geral do Estado. Figura destacada na resistência democrática e na oposição à ditadura militar, a partir de 1972 ajudou a organizar a Comissão Pontifícia de Justiça e Paz da Arquidiocese de São Paulo, entidade ativa na defesa dos direitos humanos. Em 1980 foi preso, seqüestrado e espancado por um grupo de paramilitares, caso que ganhou repercussão internacional. Professor titular de teoria geral do Estado na USP, foi diretor da faculdade de direito de 1986 a 1990. Dallari é membro da Associação Brasileira de Juristas Democratas e do Instituto dos Advogados de São Paulo, do qual foi vice-presidente. De agosto de 1990 a dezembro de 1992 foi secretário dos Negócios Jurídicos da Prefeitura do Município de São Paulo, na gestão Luiza Erundina.

Entre as obras que publicou encontra-se Elementos de Teoria Geral do Estado (Editora Saraiva 1989), já na 14ª edição.

 

O que o senhor acha do resultado das sucessivas eleições – a começar pela deste ano, que foi uma eleição bastante atípica – na perspectiva da consolidação da democracia e do direito ao voto?

Existe uma progressão muito positiva na participação eleitoral do povo brasileiro. Isso tem sua lógica, porque democracia também se aprende. À medida  que o povo vai percebendo que sua escolha se reflete na qualidade dos governos, vai surgindo um cuidado maior com o voto, e eu tenho a impressão de que nós já caminhamos razoavelmente neste sentido.

 

E isso tanto nas regiões mais ricas quanto nas mais pobres?

Isso vem acontecendo de maneira geral no País inteiro, entretanto, existe um fator de distorção que ainda está muito presente: a pobreza de muitos eleitores. Ela facilita a compra do voto, a superioridade de um cabo eleitoral, de um dono de curral eleitoral. Nós ainda não eliminamos isso. Em todo caso, o que se verifica é que mesmo nas regiões mais pobres o eleitorado tem tomado consciência de que, por maior que seja a gratidão, o voto não é a maneira de pagar um favor.

 

O senhor diria que a propaganda política excessiva funciona como uma espécie de substituta moderna para o voto de cabresto?

Eu não acredito na publicidade como um fator decisivo. O que é realmente decisivo é o comportamento do candidato, o palavreado que ele utiliza, isso sim tem um peso muito grande. Ou seja, há um fator pessoal que pesa muito, independentemente até da vida pregressa de um candidato. Mas o eleitorado já vem prestando muita atenção na pessoa do político. Acho que há muita fantasia em torno da propaganda, em torno do marketing eleitoral – e, naturalmente, isso tem um peso, especialmente em termos de volume de divulgação. Mas isso acontece com a publicidade de maneira geral, por isso as empresas usam tanto a propaganda repetitiva, dizer o nome do produto 1 milhão de vezes faz com que a pessoa imediatamente se lembre daquele produto na hora de consumir. Agora, até que ponto isto pesa em matéria eleitoral ainda não dá para concluir. Um aspecto que dá para verificar entre nós é a criação da imagem do vencedor. Ainda é muito grande o número de eleitores que não quer ser perdedor. Então na hora de votar escolhe aquele que aparentemente vai ganhar.

 

O senhor acredita que a representação dos vereadores na Câmara paulistana é fraca?

A nossa Câmara municipal realmente tem apresentado um nível baixo. Claro que há boas exceções, mas no conjunto o nível é muito baixo e a Câmara não se orienta por políticas. E aqui está um grande problema. O povo sente mais a influência política de um deputado federal do que de um vereador. Ainda há muita gente que não faz a ligação, não percebe que o vereador tem importância. Para a maioria das pessoas o vereador é praticamente uma inutilidade. E a imagem que a própria imprensa passa é a de que quem decide é o Executivo. Isso faz com que a escolha seja muito menos cuidadosa e passe a ser mais ligada a benefícios pessoais ou a um relacionamento direto do que a uma postura política. Os partidos também erram nisso.

 

Qual o senhor acredita que deveria ser a postura dos partidos nesse caso?

Os partidos estão muito distanciados do interesse público. Na realidade eu jamais acreditei em partido. Eu acho que o partido é uma disputa de interesses; normalmente os partidos são dominados por grupos, mesmo que a idéia passada seja a do partido como expressão de um pensamento político. Hoje, os partidos são quase balcões de negócios. E em certos quesitos são mesmo. São agrupamentos de interesses, só que de quem dirige o partido e não de grupos sociais ou do povo. Não há coerência política. Um candidato de um determinado partido pode estar em outro na eleição seguinte, do lado oposto. E isso parece não ter nenhuma importância. Eu fiz certa vez uma pequena verificação em uma ocasião em que fui fazer uma palestra em Brasília, e, na intimidade, falando com deputados, perguntei a alguns deles quem já tinha lido o programa de seu partido. Nenhum tinha lido. No entanto, há o pressuposto de que o eleitor se identifica com o representante por meio do programa partidário. O eleitor vai escolher aquele que vai defender o programa mais condizente com seu desejo. Só que isso é pura teoria. Na prática não acontece nada disso.

 

Então para o senhor os partidos não expressam, de fato, a vontade do povo?

Numa colocação teórica do século 19, ficou estabelecido que os partidos podem ser de três espécies. O partido de idéias, que defende certa proposta política, como o partido comunista, por exemplo. O outro é o partido de interesses, é quando surge o partido trabalhista, agrário, urbano, rural, o partido dos industriais etc. O terceiro seriam os chamados partidos de afeição, aqueles que se formam em torno de um líder, e um exemplo seria um partido malufista. Posto isso, os teóricos no século 19 seguem concluindo que ninguém, no entanto, vive em função de idéias. Ou seja, teoricamente pode existir um partido de idéias, mas na prática são os interesses que o definem. E há também o caso de um ou outro líder carismático que consegue congregar a sua volta um certo número de eleitores. Nós temos exemplos disso no Brasil. Leonel Brizola é um deles. Brizola foi um grande líder carismático, falava-se num partido brizolista. Atualmente poucos apresentam esse carisma, mas, vez ou outra, ainda acontece. Concluindo, o que realmente influi sobre o eleitorado são os interesses, muito mais do que as idéias, e, no conjunto, mais ainda do que o líder carismático. 

 

O que o senhor acha da democracia direta?

Esse é um aspecto que eu considero muito importante e sou otimista em relação a isto. No Brasil aconteceu um fenômeno curioso durante o período dos governos militares. Nós descobrimos a ação comunitária e descobrimos de várias maneiras. Por exemplo, por influência da revolução cubana surgiu no Nordeste brasileiro a presença da liga camponesa. E como resposta a ela, ainda no Nordeste, surgiram as comunidades eclesiais de base. Na década de 70 eu participei intensamente do movimento pelo desfavelamento. E a minha proposta, encampada por outros, era no sentido de transformar a favela numa associação. Isso funcionou e deu resultado. Nós tivemos também, nesse caso por força da necessidade, as associações de mulheres. Muitos maridos estavam presos ou no exílio ou ainda escondidos, e as mulheres tiveram de se organizar, em princípio para a defesa da liberdade, da vida, da integridade física dos maridos, dos filhos e dos pais. Isso acabou se ampliando, e elas então foram defensoras de interesses sociais, de maneira geral.  Quando chegou o momento da anistia, o que teve maior peso foi o movimento feminino. Eu assisti a isso tudo muito de perto, trabalhamos juntos, viajando com líderes femininas pelo Brasil inteiro, falando de anistia. Essa representação forte das mulheres pode ser vista também no movimento pela constituinte, e isso está refletido na Constituição. Todos esses exemplos que eu dei são para mostrar como durante esse período de ditadura o brasileiro descobriu a importância da associação. E isso leva exatamente à democracia direta, que pela primeira vez na história brasileira está prevista na Constituição. Logo no artigo primeiro se diz que todo poder emana do povo e será exercido ou através de representantes eleitos ou diretamente. Esse “diretamente” é novidade entre nós, nunca se tinha dito isso antes. Nós temos lá a previsão do plebiscito [consulta sobre questão específica, feita diretamente ao povo], do referendo [prática de propor à votação do eleitorado medidas propostas ou aprovadas por um órgão legislativo], dos conselhos etc. O que aconteceu foi que os parlamentares ficaram com medo dessa democracia direta e procuraram restringir de todas as maneiras os plebiscitos, referendos e as iniciativas populares. Mas os movimentos estão aí. A imprensa fala pouco deles, mas eles existem no País inteiro e estão se multiplicando. E um dado que é muito importante também é que este movimento associativo de democracia direta do Brasil já teve reflexo fora. Eu vi, por exemplo, que na França muitas universidades estão estudando o orçamento participativo, achando que o Brasil deu o caminho à democracia participativa. Isso realmente é novo e eu acho que é esse o caminho para a democratização da sociedade.

 

Um bom exemplo disso seria o plebiscito sobre a forma de governo, realizado 1993?

Seria. Mas ocorre que, depois disso, a Câmara dos Deputados, com o apoio do Senado evidentemente, se encarregou de tornar praticamente inviável a prática do plebiscito e do referendo, estabelecendo que é preciso a concordância prévia do Congresso Nacional. É a chamada Lei Almino Affonso, deputado do qual partiu essa iniciativa. Com isso praticamente se neutralizou esse instrumento de participação popular. Já no tocante à iniciativa popular, o número exigido de assinatura de eleitores para criá-la é tão alto que, também, é quase inviável. Além disso tudo, nas formalidades de adesão a uma dessas listas de assinatura são exigidos dados do eleitor – número do título, da seção em que ele vota etc. –, o que dificulta muito as coisas. Afinal, o eleitor brasileiro não tem esses números na cabeça, assim como não carrega o título no bolso.

 

O senhor acha que a reforma política é necessária para consolidar o processo democrático? Por exemplo, a criação de um fundo público de financiamento de campanhas, a implantação do voto distrital misto, a fidelidade partidária.

Há questões que são fundamentais para que o processo eleitoral seja democrático. Com o sistema que nós temos hoje há muito pouca democracia. A representatividade é mínima. Se se perguntar ao povo se ele se sente representado no Congresso Nacional, na Câmara dos Deputados ou na Assembléia Legislativa, a maioria vai dizer que não. E, no entanto, todos que estão lá foram eleitos pelo povo. O que falta é um vínculo maior entre o representante e o representado. Ou seja, eu acho que, sim, é fundamental o voto distrital misto, seria muito importante. Mas, além disso, acho importante também o financiamento público das campanhas políticas, porque hoje existe um desequilíbrio causado por motivos econômicos. Embora possa se dizer que no tocante ao Executivo isso tem um peso menor, para cargos legislativos o fator econômico é decisivo. Há muitos candidatos que nem sequer conseguem dizer aos eleitores que são candidatos por falta de recursos financeiros. Enquanto uns não têm dinheiro nem para enviar mala direta para a casa das pessoas, outros podem mandar uma enxurrada de panfletos.

 

Tomando como exemplo as últimas eleições, podemos dizer que algumas regiões são mais politizadas do que outras?

É muito difícil. A nossa população é toda muito heterogênea e a própria noção do politizado seria discutível neste caso. Eu acho que, de modo geral, o eleitorado tem, no conjunto – nas pequenas e nas grandes cidades –, uma composição semelhante. Não vejo em nenhum lugar uma politização muito maior. Por exemplo, há quem pense que o Rio Grande do Sul é mais politizado, ao passo que o que nós verificamos é que em alguns lugares do Nordeste as oligarquias foram derrotadas, mostrando uma politização maior da população. Ou seja, eu acho que nós estamos mais ou menos equilibrados no Brasil inteiro em termos de politização. 

 

Quando vemos os números de vítimas da violência, o senhor não acha que os movimentos organizados na sociedade, as instituições de classe, ainda possuem uma atuação muito tímida?

Eu acho que o que vem acontecendo – um fenômeno que não é só brasileiro – é que os padrões de organização social estão mudando. A influência da família, por exemplo, era muito maior na sociedade brasileira. E essa é uma influência que, se de um lado parece conservadora, de outro lado é um freio contra os excessos. O jovem, o adolescente que se sente responsável perante sua família, tende a se comportar de maneira mais contida, e mais dificilmente apelaria para a violência. E nós temos casos recentes, brutais, de adolescentes matando os pais, agredindo familiares, isso é novo entre nós. É um momento de desajuste que eu acredito que vá ser superado exatamente pelo crescimento da consciência política, da consciência social e da consciência dos direitos humanos.

 

O senhor acha que a escola não está conseguindo contribuir para a diminuição desse desajuste?

Está ocorrendo um fenômeno terrível e que eu já tive a oportunidade de observar em muitas situações: a sociedade está desequilibrada. Entre outras coisas, houve muita proposta de liberalização, e essa idéia de liberdade, de ficar fora dos freios, está influindo sobre o comportamento dos jovens. Ao mesmo tempo, está influindo para que tanto a escola quanto a família percam o seu poder disciplinador. O que eu presenciei em muitas discussões é uma disputa entre a escola e a família para se saber, afinal, quem é o responsável. A família querendo abrir mão de sua responsabilidade, porque com esse novo ambiente de liberalização fica muito difícil controlar, sobretudo, os adolescentes. E essa família quer que a escola assuma esse papel e a escola não quer assumir. Entre outras coisas, por meio de decisões oficiais de vários governos, ela foi perdendo seu papel de orientadora moral, ficando reduzida a uma formação técnica. Dessa forma ela não dá a consciência social, a consciência de responsabilidade social, a consciência ética. A família se retira, a escola não assume, e os jovens ficam perdidos.

 

O senhor acredita que a legislação em relação aos jovens acaba cumprindo um papel esquizofrênico quando proíbe certas coisas, mas é condescendente com outras?

Esse é um problema ligado exatamente à transição. As gerações mais velhas, e aí não precisa ser tão velho assim – falo de pessoas acima de 30 anos –, têm medo de parecer atrasadas, coercitivas, medo de ser tachadas de reacionárias e conservadoras. Com isso, nem mesmo aquelas medidas previstas na legislação são aplicadas e, às vezes, a própria autoridade pública é muito condescendente com o excesso, exatamente para não parecer repressora. Existe um ponto de equilíbrio que a gente ainda não encontrou. Como estabelecer regras de convivência e exigir o respeito a essas regras sem o temor de exigir? Como deixar claro que algumas medidas são tomadas justamente para proteger o indivíduo e a sociedade de maneira legítima? O que se verifica é que, de fato, existe um exagero na afirmação da liberdade. Claro que a liberdade é um valor fundamental, essencial para o ser humano, mas ela tem sido confundida com libertinagem. Então, é um vale-tudo. Se alguém na rua me ofender eu não devo me opor porque senão estou cerceando a liberdade. Quando se trata da imprensa, então, aí fica tudo mais complicado ainda. Por envolver todas as formas de comunicação de massa, cinema, rádio, televisão, jornais, revistas etc., qualquer palavra no sentido de exigir respeito à ética já é interpretada como um cerceamento da liberdade. Então é preciso que haja também reflexão a respeito disso.

 

Qual é sua opinião sobre as cotas sociais na universidade?

Eu acho que as cotas são admissíveis até que se faça a correção dos desníveis. Mas não abro mão da exigência de qualidade do aluno. Eu jamais abriria cota sem exigir o mínimo de conhecimentos. Eu acho que é uma falsa igualação colocar na universidade quem não tem o mínimo preparo para acompanhar os estudos da universidade, o que criaria uma situação de humilhação – além da possibilidade de profissionais falsamente preparados. Isso seria fingir uma compensação. Então, eu acho que, sim, é aceitável a idéia de cota por algum tempo, porque realmente nós temos ainda desníveis econômicos e sociais extremamente graves e há muita gente que não consegue competir em condições de igualdade. Por exemplo, hoje é muito difícil um aluno entrar na universidade sem fazer cursinho. O cursinho custa caro, e a disputa na universidade pública é feroz. Ao mesmo tempo, a universidade privada também é cara. Isso tudo coloca o aluno mais pobre numa situação de inferioridade. Dizer que ele é igual é hipocrisia, porque ele não tem igualdade de oportunidades. Mas, por outro lado, pegar um aluno mal preparado ou completamente despreparado e dar a ele de presente uma vaga na universidade também é hipócrita. Porque é uma formalidade que não corresponde ao conteúdo. Isso seria formar um profissional sem nenhuma condição de competir no mercado de trabalho, e criaria, na verdade, um marginal diplomado.

 

Sobre a opinião pública brasileira, o senhor acha que a luta contra a ditadura e a conquista da democracia contribuíram para torná-la mais forte?

O estímulo que aconteceu para a formação dos grupos comunitários desenvolveu a opinião pública. Então há muito mais informação. Há muito mais interesse na participação em movimentos sociais e isso eu tenho verificado – inclusive em palestras a grupos comunitários, falando para comunidades pobres. O interesse pelas questões sociais e a busca por conhecimento aumentaram muito entre nós. Entre os jovens, inclusive. Na área do direito, por exemplo, em que eu atuo mais, as novas gerações se preocupam muito com a justiça. Não se satisfazem com o recebimento de informações teóricas abstratas. Elas querem saber se as leis servem para fazer justiça, como elas vão se refletir na correção das injustiças sociais etc. Um sinal muito evidente disso é que há poucos anos, durante o governo Fernando Henrique, quando houve um exagero de emendas constitucionais que claramente visavam revogar a Constituição – avançada demais do ponto de vista social –, eu propus aos estudantes de direito a criação de centros de defesa da Constituição. E hoje já existem cerca de dez desses centros no Brasil. É coisa que não aparece na grande imprensa, mas que existe. O estudante que participa de movimentos como esse vai ser um profissional muito consciente e muito exigente da aplicação justa das leis.