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Flávia Carvalho
Minhas impressões em relação ao teatro de rua vêm, sobretudo, de experiências percorrendo as ruas das cidades do interior do Estado em atividades, festivais e mostras realizados pelo Sesc São Paulo, juntamente com grupos artísticos de várias partes do Brasil e de outros países. Levando com eles um teatro que desencadeia uma fuga à rotina, que provoca, que mexe com as pessoas. O espetáculo de teatro de rua se inicia desde a chegada da equipe de montagem ao local de apresentação e, à medida que o tempo transcorre na praça, a percepção do próprio espaço vai acionando outros significados para aqueles que transitam por ali.
A comunicação que o teatro de rua estabelece com as platéias das mais variadas formações é forte e intensa. Ela provoca as mais diferentes sensações naqueles que se defrontam com a arte no meio da sua rota. Essa modalidade artística se define basicamente a partir da relação dos atores com o público anônimo. E essa relação tão direta faz do teatro de rua uma opção estética e ideológica para os grupos que a ele se dedicam.
O operário, o vendedor de algodão-doce, o médico, o desempregado, o estudante, a dona-de-casa, o bancário, todos que transitam pelas ruas da cidade são tocados por essa interferência nas suas rotinas, nos seus caminhos de vida que, na maioria das vezes, passam ao largo dos teatros e espaços convencionais de espetáculos. Aí está outra característica marcante desse tipo de arte: a de que ela vai aonde as pessoas estão. Ela é acessível no mais amplo sentido da palavra. O teatro que acontece espontaneamente, sem lugar marcado.
Os grupos que escolhem a rua para apresentar seu trabalho buscam ultrapassar a fronteira da cultura de massa, bem representada pela televisão e pelas salas comerciais de apresentação de espetáculos. Aí vemos o teatro na, para ou da rua como uma ferramenta muito poderosa de contribuição para a mudança dessa realidade, exercendo de fato uma função social. A rua enquanto espaço público reflete a disparidade cultural, social e econômica de nosso país, e seu desenho hoje está diretamente associado à diferença, às relações conflituosas estabelecidas pelo desenho urbano. Reocupada, adquire um novo significado, retoma a idéia de cidadania e desperta uma relação de cumplicidade entre o público e o ator e o próprio espaço.
A relação que vemos se estabelecer entre a platéia e o espetáculo é muito motivadora, provoca em certo sentido a afirmação do teatro como uma expressão universal. Faz com que o espectador reconheça além de suas diferenças individuais aquilo que é comum aos outros indivíduos, como se retomasse a própria consciência e a de seu papel no mundo.
E todas essas circunstâncias são para mim muito nítidas nos projetos de ação cultural que contemplam apresentações artísticas na rua. A aproximação do público, os sorrisos, o encantamento, as reações diante do texto, a permanência pelo congraçamento, a possibilidade de abandonar o local por livre vontade, o aplauso ao final. Fora do palco, o teatro feito no espaço não convencional carrega consigo uma grande responsabilidade. Ele mergulha em um universo inquieto e metafórico, e, através da celebração, atores e público se misturam, fazendo com que o teatro colabore para a transformação das sociedades.
Ocupando pontualmente espaços públicos para a realização de espetáculos, o Sesc se compromete com a singularidade do teatro feito na rua. E esse compromisso reforça a necessidade do questionamento constante em torno dessa linguagem artística: em que medida o teatro de rua exerce seu papel político em um espaço público tão desconfigurado? Que relações ator/obra e ator/espectador têm sido estabelecidas a partir das peças concebidas para ser encenadas na rua? Qual a atualidade desse teatro? Onde está o seu sentido poético? Estamos todos procurando o verdadeiro sentido do teatro de rua, apostando na força mobilizadora dessa linguagem artística ao discutir como ela se configura nos dias de hoje.
Flávia Carvalho, graduada em comunicação social, é assistente técnica do Sesc São Paulo