Sesc SP

Matérias da edição

Postado em

Ficção Inédita

Emparedados corações

            [da interminável série das fábulas infames]

 

 

 

Xico Sá

 

O joão-de-barro macho é um pássaro que, de tanto ciúme, empareda, lá dentro daquela casinha de lama, a fêmea.

 

Quando é traído, ele sempre reboca a portinha da linda ornito-cohab, de modo a deixar a desalmada joaninha morrer seca de fome, sede, tristeza.

 

Quando vai ser ano de muita chuva, a porta do ninho-niemeyer é feita virada para o poente; quando ano de escassez, para o nascente. Os joões-de-barro diferem de todos os outros pássaros por fazer ninhos em forma de casas, com direito a cômodos e tudo.

 

Quando não é traído, o joão-de-barro canta muito. Dentro e fora de casa.

 

&

 

Era uma vez um caçador traído que esquecia as juritis em plena mira quando avistava uma casa de joão-de-barro. Ia logo conferir se mais uma joana-de-barro havia sido emparedada.

 

Era uma identificação tamanha que conseguia falar horas com o pássaro macho. Proseavam sobre os motivos e as naturezas animais e humanas.

 

– Ela ainda pode estar viva... por que você não vai lá e tenta salvá-la? – apiedava-se o traído humano.

 

– Isso não existe no nosso reino – respondia o bem resolvido animal.

 

A criatura humana, dedicava-se à caça nas horas vagas, mas era pedreiro de ofício.

 

Homem conhecedor dos segredos matutos, sabia da moral dos joões-que-voam havia fábulas. Um dia fez o mesmo que os amigos pássaros. Amassou areia, cal e o cimento... encomendou os melhores tijolos ao homem da caieira e trancou a sua amada para sempre, não ficou uma réstia sequer naquela taipa.

 

Não achava que o seu gênero fosse capaz de tanto. Mirou-se, porém, no exemplo dos amigos pássaros: “Se esses bichinhos-de-nada, que não pesam 21 gramas, são capazes, por que eu, um pecador com as dores do mundo nas costas, não sou também?”

 

– Construímos, de bico em bico de lama, viagens e mais viagens aos barreiros, aquele lar... – dizia o joão-de-barro ao pedreiro.

 

– Também fizemos a nossa casinha, lar doce lar, no maior sacrifício, ainda hoje devo na praça, nas bodegas, era o sonho dela – gorjeava o pedreiro.

 

– Mas a tua joana pelo menos tinha o benefício da inveja, entre os homens as casas são diferentes.

 

– É, ela adorava homens bem-de-vida...

 

– No nosso reino todo dia a gente vive tudo igual... Nem mesmo os mais enxeridos conseguem solos diferenciados.

 

– Então por que ela te traiu, se mal notava a diferença entre você e o outro?

 

– Talvez para dar continuidade à longa história universal da infâmia...

 

O pedreiro, simplório, meu Deus, não conseguia entender a pequena criatura.

 

– E tu, por que não perdoaste a tua joana, uma vez que o código de vossa natureza, liberalíssimo, a tudo permite? – falou o joão-de-barro.

 

– Ah, meu amigo, agi de cabeça quente, e depois de muita água que passarinho não bebe.

 

Xico Sá é autor, entre outros, de A Divina Comédia da Fama (Editora Objetiva, 2004)