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Em conversa com a Revista E, o maestro John Neschling fala de seu trabalho como diretor artístico e regente titular da Orquestra Sinfônica do Estado de São Paulo (Osesp)
John Neschling nasceu no Rio de Janeiro em 1947 e desde muito cedo começou a estudar piano. No entanto, logo sentiu que “não tinha a menor vocação para ser pianista”, como revelou à Revista E. Em 1973, de volta ao Brasil – depois de passar pelas sinfônicas de Londres e Florença (Itália) –, assumiu a direção do Teatro Municipal de São Paulo e a do Rio de Janeiro. De volta à Europa, foi diretor artístico do Teatro São Carlos (Portugal), do Teatro de Sankt Gallen (Suíça), do Teatro Massimo (Itália) e da Ópera de Bordeaux (França), além de ter sido regente residente na Ópera de Viena (Áustria). Nos Estados Unidos, estreou em 1996 conduzindo O Guarani, de Carlos Gomes, na Ópera de Washington, com Plácido Domingo no papel de Peri. À frente da Orquestra Sinfônica de São Paulo (Osesp) desde 1997, tem acumulado importantes conquistas que inauguraram uma nova fase na história da orquestra. Com a Osesp, já fez turnês pela América Latina, Estados Unidos e Europa. No depoimento a seguir, o maestro, que se dedica também à composição para cinema e teatro, fala de sua paixão pela música erudita e sobre o início de sua carreira.
A regência começou na verdade como conseqüência do meu estudo de música. Comecei estudando piano, como muita gente começa. Só que não tinha a menor vocação para ser pianista. Isso ficava mais claro ainda porque eu vivia cercado por amigos talentosos, como Nelson Freire, Antônio Barbosa, Arthur Moreira Lima e toda essa geração brasileira de grandes pianistas. Não é nem uma questão de ter pendor ou não, é uma questão de ter vontade. Não queria ser. Aos 14 anos, comecei a me preparar para a regência. Sem saber bem o que era, mas a idéia me encantava. Era difícil estudar regência no Brasil, então aos 17 anos fui para Viena, na Áustria. Fui em 1965 e fiquei até 1973. Estudei, me formei, comecei a fazer uma carreira de regente até que a saudade começou a pesar. E aqueles anos foram muito importantes. Muitos amigos tinham se engajado na política e eu havia ido embora. Em 1973 resolvi voltar. Só que não consegui fazer a carreira de regente que eu queria no Brasil. Então, tive de procurar alternativas na música. Foi quando encontrei o teatro e o cinema. Naquela época, todas as peças tinham cunho político e as pessoas do meio eram sempre engajadas. Enfim, um universo completamente diferente do que eu vivia em Viena. Acabei fazendo a trilha de filmes do Babenco [Hector Babenco, cineasta argentino radicado no Brasil] como Lúcio Flávio, o Passageiro da Agonia (1978), Pixote, a Lei do Mais Fraco (1981) e O Beijo da Mulher Aranha (1984). Só que o problema agora era que eu estava muito longe de exercer aquilo para que havia estudado. Voltei para a Europa em 1982, quando começou de verdade minha carreira de regente. Fiquei 15 anos sem vir ao Brasil. Até que em 1997 voltei com um objetivo muito claro: refazer a Osesp.
Osesp
Eu já tinha feito algumas incursões pela música clássica brasileira entre 1982 e 1997 no Teatro Municipal de São Paulo, no do Rio, e nunca tinha dado certo. Não havia uma infra-estrutura política nem cultural que me permitisse fazer o trabalho com a profundidade que eu imaginava. Isso só aconteceu em 1997. O que me convenceu foi a disponibilidade da Secretaria de Cultura de São Paulo em aceitar as minhas condições. Na verdade, coloquei condições que eram praticamente inaceitáveis. E, à medida que foram sendo aceitas, fui abraçando o trabalho cada vez mais. Entre minhas solicitações estava a sala de concertos e construiu-se a Sala São Paulo. Eu queria pagar bem os músicos, fazer testes de reavaliação e isso também foi aceito. Hoje tenho completa certeza ao dizer que a Osesp é o trabalho da minha vida. A coisa mais importante que fiz na vida.
Por fazer
Há duas coisas que eu gostaria de fazer aqui. A primeira é criar uma fundação que celebre um contrato de gestão com o Estado para conseguirmos nos livrar das amarras assassinas da burocracia estatal, que não deixam uma orquestra dinâmica e moderna como a Osesp funcionar. Não pretendo me libertar do Estado, mas de suas burocracias. Outro grande projeto que tenho desde que comecei a Osesp, é criar uma escola específica para músicos de orquestra aqui dentro. Porque a Osesp esbarra na falta de qualidade e estrutura do ensino musical no Brasil. Sobram vagas na Osesp que não conseguimos preencher por falta de músicos com preparo suficiente. Os que têm às vezes não querem tocar na Osesp porque é uma orquestra que exige muito também. O músico deve ter comprometimento, prioridade e exclusividade total. E não são todos que querem esse tipo de disciplina. Independentemente disso, não há um número suficiente de músicos preparados. Vamos precisar buscar no exterior ou, geralmente, os músicos brasileiros que vêm para essas vagas estão estudando, fora. Esse é outro problema. Perdemos muitos profissionais que poderiam estar estudando aqui, porque eles querem passar alguns anos lá fora, onde acabam fazendo muito sucesso e ficam por lá. Criar uma academia de músicos de orquestra aqui, de alto nível, é uma salvação. Do contrário, se as orquestras brasileiras quiserem ter uma grande qualidade, terão de ser em grande parte estrangeiras.
Dia-a-dia
Eu participo de tudo, da parte artística e administrativa. Grande parte do meu trabalho aqui é organização, projetos, administração, trabalho político de entrar em contato com o Estado, com a burocracia, resolver os pepinos que aparecem. Evidentemente que a parte mais gostosa do meu trabalho é a musical. A orquestra hoje em dia tem mais de 100 músicos. Alguns estão na orquestra antes da minha chegada. Fizeram o teste de reavaliação e continuaram. Ao todo são 350 pessoas. É uma fábrica de música. Setenta por cento dos músicos são brasileiros. O restante vem do mundo inteiro. São croatas, romenos, búlgaros, italianos, americanos, ingleses, venezuelanos, argentinos, alemães, turcos. Tenho uma relação muito especial com meus músicos, quase de pai e filho. Como fui o criador dessa orquestra, estabeleceu-se um vínculo entre mim e esse grupo que certamente o próximo regente não terá. São gestos de carinho e de disciplina que ninguém mais poderá se permitir com eles. Evidentemente há certa distância entre o maestro e os músicos, porque isso faz parte da relação. Mas, mesmo assim, é muito especial.
Quase lá
Assim como existem os times de futebol que incontestavelmente são os maiores do mundo, o mesmo acontece com as orquestras, e as de Viena, Berlim, Nova York, Chicago e Londres são, digamos, os melhores times do mundo. Não acho que a Osesp já esteja nesse nível. Mas ela está perigosamente perto. No entanto, não tenho dúvidas de que a orquestra vive seu melhor momento desde que foi fundada. Conseguimos uma sala de concertos desse porte e hoje temos cerca de 10 mil assinantes. São êxitos que nunca existiram no Brasil. Além das viagens para o exterior, os discos que fizemos para o mundo inteiro e o reconhecimento internacional que conseguimos. O nosso coro é um dos melhores do Brasil. O coro infantil é um dos poucos que existem no País. São êxitos muito específicos e claros nesses oito anos de administração. Mas para estar entre as melhores do mundo ainda falta tempo, trabalho, tradição, investimento e, sobretudo, história. Na verdade, essa Osesp tem oito anos. Essas orquestras todas que citei têm mais de um século e meio de vida. É difícil querer que se chegue ao mesmo nível em oito anos. Mesmo que ela toque perfeitamente do ponto de vista técnico, falta ainda o peso da tradição.
A Orquestra Sinfônica do Estado de São Paulo se apresentou no Sesc Santos em 26 de junho