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Encontros
por Pedro Dimitrov
Tão chocantes algumas cenas no noticiário que mostram pacientes morrendo por falta de vagas em hospitais públicos brasileiros. Como se não bastasse, por problemas de saúde que muitas vezes poderiam ser tratados de maneira simples fora dos hospitais. Por outro lado, esse mesmo sistema deficitário chega a ser motivo de orgulho quando o assunto é o tratamento de doenças como a aids ou o alto número realizado de transplantes de rins, córneas, fígado ou cirurgias do coração, nos últimos anos. Como a saúde pública brasileira consegue reunir dados tão díspares? Como funciona essa imensa máquina responsável por planejar o atendimento de saúde em um País de proporções continentais como o Brasil? Para falar sobre o assunto, o médico sanitarista Pedro Dimitrov, doutor na área de planejamento e gestão de serviços de saúde e ex-secretário adjunto de Saúde nas gestões de Luiza Erundina e Marta Suplicy, esteve na reunião do conselho editorial da Revista E. Confira os principais trechos da conversa.
No âmbito público, o nível de saúde é medido pela quantificação de doenças e agravos à saúde e pela média de idade das pessoas entre as quais ocorrem as mortes. Já, na vida de cada pessoa, o nível de saúde é determinado por um processo dinâmico, trata-se da interação entre campos de diferentes energias que geram, ou não, um equilíbrio. Que tipo de força atua na realidade do homem? O homem tem condições de lidar com ela? Ou seja, varia de contexto para contexto. Tanto é que, por exemplo, na média, um japonês vive mais que um brasileiro, assim como um paulistano vive mais do que alguém do Nordeste. Ou seja, são forças ligadas ao meio físico, biológico e social que determinam a qualidade e o tempo de vida, enfim, a saúde. O meio físico é o ambiente de moradia, de trabalho e de lazer. Pode ser medido pelas condições ambientais favoráveis ou desfavoráveis à sobrevivência. O biológico é a relação do ser humano com os demais seres vivos. São nossas relações com toda sorte de plantas, animais, bactérias ou vírus – que também podem ser favoráveis ou não à vida. O terceiro patamar – o determinante – é o meio social. É aí que entra a relação do homem com os outros homens. É a forma como a sociedade se organiza para a produção e distribuição de bens e serviços que vai determinar o nível de saúde das pessoas. Uma porção enorme de bens e serviços concentrados numa pequena parcela da população não promove a saúde. Porque somente alguns estão usufruindo toda a produção disponível na sociedade. Tanto é que existem países até mais pobres do que o Brasil, mas menos desiguais, que no geral têm melhores níveis de saúde.
A saúde pública é um campo multiprofissional de conhecimentos e atividades, que tem por objetivo promover, proteger e recuperar a saúde da sociedade a partir de um diagnóstico e através de medidas de alcance coletivo; da mobilização, organização e participação ativa da sociedade e da organização dos recursos de saúde. Assim, preocupa-se com o bem-estar da população como um todo, começando bem antes da assistência médica. Sua meta principal é promover e proteger a saúde. Quando isso falha, aí, sim, a saúde pública parte para cuidar dos doentes. Ou seja, esse é o último recurso. Para a promoção e proteção da saúde são fundamentais políticas públicas eficazes, mas também é importante que as pessoas tenham educação, se apropriem dos conceitos e tomem conta de si. Só assim cada um pode ter ações positivas nesse sentido. Enquanto os cuidados dependerem somente de terceiros, nunca vai dar certo.
A falha do sistema brasileiro
Até 1988, só os previdenciários, ou seja, somente trabalhadores com carteira assinada tinham direito a assistência. A partir da Constituição daquele ano é que a assistência à saúde passou a ser um direito universal, de todo cidadão. Só que o governo não pôs dinheiro para ampliar a estrutura e atender todo mundo. Ainda temos quase a mesma estrutura que atendia o previdenciário, que eram 20% da população brasileira. Só que agora atendemos 100% do público. É imprescindível reduzir a demanda na assistência. Isso se faz com ações em vários campos. Por exemplo, houve uma época em que não tínhamos leitos suficientes para a internação de crianças por desidratação. Muitos morriam. A mortalidade era de 40 por mil nascidos vivos aqui em São Paulo. Hoje essa taxa é de menos de 15 por mil nascidos vivos. A redução só foi possível porque algumas dessas medidas de alcance coletivo, como rede de água e esgoto e vacinações em massa, foram realizadas. E são muito mais eficientes do que aumentar a rede de internação para crianças. Tanto que hoje sobra leito de pediatria. Por outro lado, falta leito para adultos com outras patologias, porque não houve um planejamento adequado nesses casos.
Mobilização fundamental
A sociedade se organiza para brigar e reduzir a doença à medida que entende o que está acontecendo e tem poder para se mobilizar. No Brasil temos um bom exemplo disso. Basta lembrar as políticas públicas adotadas para combater a aids. Quando foi anunciado que as pessoas estavam morrendo da doença, houve uma mobilização para que os remédios fossem distribuídos gratuitamente. Isso só acontece quando a população entende a situação e briga para forçar o governo a dar uma solução. Agora, não podemos deixar de nos perguntar por que a aids teve mais solução do que a tuberculose? Porque atinge pobre e rico, ou seja, pessoas que têm voz ativa, que podem fazer pressão. Ao contrário da tuberculose, que atinge mais a camada pobre da população, aquela que não tem voz nem organização suficiente para fazer pressão. É também o caso dos transplantes. Só perdemos para os Estados Unidos. Se por um lado a rede de atendimento é absolutamente insuficiente, por outro, o Sistema Único de Saúde (SUS), esse sistema do qual todo mundo fala mal, é o segundo do mundo em número de transplantes. Como isso é possível? É um reflexo da realidade brasileira, que reúne dados absolutamente díspares. O Brasil é um dos países que mais realizam transplantes porque as pessoas mais ricas, sabendo que isso custa muito caro, forçam o governo a fazê-lo. Por um lado, o SUS paga a alta tecnologia; por outro, falta dinheiro para cuidar do tuberculoso que não tem organização para reclamar. Assim como falta dinheiro para o atendimento adequado ao diabético, ao hipertenso. O recurso é o mesmo. Mas quem tem mais poder de ação, espaço na mídia e força política se organiza e leva mais dinheiro. Não estou dizendo que isso é feito por má-fé. Mas se trata da maneira como a sociedade se organiza, como ela funciona. Cada grupo social defende o seu e, quanto maior o poder político, aumenta a chance de acesso aos recursos públicos. Quando se trata de cuidar da própria saúde, quem pode se mobiliza. Tanto é que o setor em que houve o maior ganho de poder da população nos últimos anos foi a saúde pública. Pode-se comparar com qualquer outro setor, seja educação, seja promoção social ou segurança. Se há um aparelho do Estado que se reformou e se consolidou de forma um pouco mais democrática, e que atende um pouco mais aos interesses da sociedade, foi a saúde. Chegamos a um sistema com participação e controle social, que é o SUS. Infelizmente, ele só não consegue ser tão eficiente na prática quanto é no ideal porque há poucos recursos financeiros, gerando permanentemente conflitos de interesses na sua distribuição.