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Ficção Inédita

Por Ruy Câmara

Ilustração: Marcos Garuti

 

Meio-dia. A luz intensa irrompe um escampado de nuvens brancas e penetra por entre os galhos do cedro sem folhas. A sombra se move de um lugar ao outro, açoitada pelo vento escaldante. Pisando nela, quatro patas raquíticas, obedientes a um par de olhos famintos que traquinam sem convicção, como se mirassem ali algo que supostamente existe, mas que não se pode ver ou pegar. Nessas horas terríveis, até mesmo uma sombra parece ter vida para quem mal consegue distinguir o real do imaginário, tanto que insiste em abocanhá-la em vão. Nesse cenário de miséria e delírio, tudo que se move existe e se existe ou é alimento ou ameaça. Uma decisão quase negada, talvez a última, diz de si para si mesma: onde se vê o rastro, por aí passou o bicho. Da sombra saem dois vultos escalavrados, um Menino tísico, cabeção e asmático, seguindo um Cão esquálido e rabugento, cor de raposa. Os dois tomam um rumo qualquer. Tudo é caatinga. Prosseguem sem esperanças. No íntimo pressentem que um êxito qualquer exterminará tudo de uma vez por todas. Do modo como o Cão está farejando, o Menino quer adivinhar onde está a vítima, o sustento de um dia infeliz, certamente o último. Num trocar de passos, o Cão fica estático e atento. Contrai-se sobre o esqueleto quase visível e pára. Rastros de um vivente exausto de fuga continuam ali, grudados à terra rachada. A aproximação inoportuna do Menino é reprovada pelo Cão, que continua farejando no rastro do que supõe ser uma solução ou o caos. “Se ele acertar a pedrada eu morrerei de fome”, raciocina o quadrúpede com egoísmo. Temendo desperdiçar a chance, o Menino abaixa-se, apanha uma pedra, ergue-se devagar e prepara o arremesso. O Cão levanta as orelhas, o rabo, fareja o ar como quem respira indícios de sobrevivência. O silêncio agônico do momento imobiliza os parceiros.

 

Segundos de espera. Súbito, um chiado sobre folhas secas denuncia-se. O vivente agora é reconhecido pelo mais desprezível e envergonhador meio de existência: rastejar de fome sobre o próprio ventre e às escondidas. O Menino alegra-se com a possibilidade. O Cão nem tanto, pois sabe por experiência vivida que aquela caça não será repartida segundo o merecimento pelo esforço de cada um, muito menos segundo a lógica: de cada um conforme a capacidade e a cada um segundo a necessidade. Contudo, espreita o momento certo para o ataque. Desesperados e famintos como estão os parceiros, nesse momento, já ultrapassaram a condição de aliados e logo, logo se tornarão inimigos. O Lagarto pressente que tem agora um só destino: escapar da ameaça. O farejador apronta-se numa posição estática sobre três patas. O Menino avança e pára no preciso instante em que seu pé de apoio esmaga um graveto teso de sequidão. Nesses instantes tensos, o simples estalar de um graveto pode ser uma catástrofe. Num esforço extenuado, o Menino alonga-se por cima do arbusto e arremessa a pedra no local suspeito. Em disparada fuga vai o Lagarto e na perseguição o vira-lata perde-se de vista. Seus latidos ecoam no espaço. “Acua, acua”, grita o Menino, já em marcha corrida na direção do comparsa. No desespero salvífico, o Lagarto entoca-se num buraco, entre um pedregulho e um formigueiro, e aí se mantém quieto como se tivesse plena consciência de que sua vida está numa situação crítica. Os latidos do Cão aumentam o desespero de quem passou de caçador esfomeado e solitário a caça. “Pega, pega”, grita o Menino, atiçando o Cão, que no íntimo desconfia do seu proveito. Diante da toca, os dois se olham com se quisessem dizer um para o outro que o êxito vai depender do esforço conjunto ou de muita espera.

 

Mas a fome não pode esperar, como bem o sabem. O Menino expectora os brônquios e escarra. Em seguida corta uma vara comprida de marmeleiro e começa a estocar. O Cão permanece numa inquietação feroz, mostrando os caninos ao buraco. Lambe em seco o focinho goela adentro e torna a ladrar.

 

Da toca sai um cheiro de banquete ameaçado. Acuado, o Lagarto respira fundo na esperança de empreender uma nova fuga. Deve estar ciente de que desta vez não sobreviverá inteiro. Agora que se acomodou na toca, ocorreu de ter uma idéia: seu rabo tornará a crescer se conseguir cortá-lo. Mas precisa ser rápido para ludibriar o olhar e o faro obscuro da fera. Num ato de superação instintiva, o Lagarto desvia-se de mais uma estocada, ergue-se por cima do dorso, alcança a cauda e com a dentição afiada, corta-lhe um pedaço para saciar a gana do inimigo no momento da fuga iminente. Cansado pelo esforço hercúleo e esvaindo-se em sangue, ainda supõe ser possível saciar o desejo voraz do inimigo para desaparecer na imensidão da caatinga. Só o instinto de sobrevivência é capaz de ignorar que a vida real, em tais condições, é uma utopia impossível, indigna da mais medíocre lógica. O Lagarto reúne o que lhe resta de forças e, de repente, fura o bloqueio. Um chiado corre em desesperada fuga e desaparece na caatinga, deixando nas presas do esganado boa parte da sua cauda. Duas bocadas e pronto. Em segundos a catástrofe planejada fora devorada sem remorsos. O Menino olha para seu companheiro com desprezo e ódio. Está completamente desnorteado e sem esperança. O Cão permanece quieto, desconfiado, com o rabo entre as pernas, em posição de medo. Por certo ainda lembra que na semana anterior não tivera direito sequer ao esqueleto da última vítima. A ossada torrada e pilada fora misturada à farinha de mucunã e comida pelo Menino. Numa toca segura o Lagarto contorce-se na dor secreta, desejando a desgraça ruir sobre os inimigos. Apesar das dores e do cansaço, ele consegue ouvir os passos que seguem noutra direção e começa a lamber a ferida com o orgulho máximo de quem se presume sobrevivente de uma catástrofe. No pedregulho de um rio seco o Menino começa a delirar sob o firmamento aberto, de onde vem um brilho escaldante. A sede aumenta.

 

Mirando uma sombra lá adiante, ele jura se vingar do parceiro, que parece adivinhar tais pensamentos e se deita ao lado, fingindo arrependimento. O Menino olha, mas seu olhar não é correspondido pelo Cão, que rasteja e aproxima-se sorrateiramente como se quisesse lhe dizer que a dor e fome nas plagas sertanejas são irmãs gêmeas, como trigêmeos são o egoísmo, o amor e o ódio. As horas vão passando devagar e o espetáculo sinistro parece ser o prenúncio de uma grande tragédia, uma tragédia sem culpados e sem testemunhas. Num gesto abrupto o Menino sangra o Cão e bebe-lhe o sangue. Em seguida come-lhe a carne e afasta-se devagar da cena de sacrifício. O calor aumenta, vêm os engulhos, os delírios, e um tombo é ouvido na caatinga. Já é quase noite quando o Lagarto aproxima-se triunfante, lambendo o espetáculo mórbido. Parece adivinhar que nesse cenário trágico é custoso admitir que a morte é um caos sem providência divina e que a seca no Nordeste do Brasil é só um problema de irracionalidade soberana.

 

Ruy Câmara é poeta, romancista, dramaturgo e sociólogo, autor de Cantos de Outono – o Romance da Vida de Lautréamont (Grupo Editorial Record), finalista do Prêmio Jabuti 2004 e vencedor do Prêmio de Ficção 2004, da Academia Brasileira de Letras