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Exposição revela o trajeto e os diversos usos do mais brasileiro de todos os tecidos

 

É fruto de uma trama simples, de puro algodão, que apresenta, obrigatoriamente, estampas florais. No entanto, sua história é rica, cheia de idas e vindas. Os primeiros registros da presença da chita na Europa e na América surgem ainda na época das grandes navegações, quando as potências européias saíram à conquista de outras terras e depararam com o tecido na Índia – onde surgiu durante a Idade Média. Dali para as colônias do Novo Mundo foi um pulo, ou, melhor, um oceano de distância. Ela “atravessa idiomas, assim como transpôs mares, povos e culturas para virar vestidinho de menina nas quadrilhas juninas, cortina e toalha de mesa em casa de pau-a-pique, pelos cantos do Brasil”, conta o livro Que Chita Bacana (Editora A Casa, 2005). A obra é resultado da pesquisa de Renata Mellão, presidente do museu A Casa, e do designer têxtil Renato Imbroisi – com textos da jornalista Maria Emília Kubrusly – e originou a exposição de mesmo nome, em cartaz no Sesc Belenzinho até 18 de dezembro (veja boxe Que chita bacana). O embrião do projeto surgiu há 15 anos, quando Imbroisi interessou-se pelo tecido. “Foi no começo dos anos 90, justamente quando a produção diminuiu muito em virtude da liberação das importações de outros tecidos”, afirma o designer.

 

 

Chita, chitinha, chitão

As primeiras chitas aportaram na Bahia e em Pernambuco, onde estavam os principais centros administrativos no início da colonização do Brasil. “Mas foi em Minas Gerais que o tecido conheceu usos, tratamentos e processo de industrialização mais apurados”, explica a historiadora da Universidade de São Paulo (USP) e consultora da exposição Ana Luiza Martins. Um bom exemplo dessa apropriação está na variedade de estampas de chita existentes hoje, chamadas – de maneira muito simpática, diga-se de passagem – de chita, chitinha e chitão. A versão que apresenta flores pequenas é a chitinha; médias, chita; e grandes, o chitão. E este último é uma criação exclusivamente brasileira, só possível quando, já no século 20, a largura do tear aumentou de 90 centímetros para 1,40 metro. “Foi aí que ela começou a ter uma característica brasileira. Antes não tinha essa coragem, essa força, essa ousadia brasileira, esse descaramento”, observa a designer Liana Bloisi, que também participou da curadoria da exposição.

 

O preço baixo e a adaptação ao clima tropical alçaram a chita a escolha número um para a vestimenta das camadas mais pobres da sociedade: colonos, operários e, antes deles, os escravos. Aliás, segundo a historiadora Ana Luiza, foi com a intensificação das atividades de mineração nas Minas Gerais, gerando uma expressiva concentração dessa população, que a demanda aumentou e a produção passou a ficar a cargo dos teares domésticos – tradição colonial nas sedes rurais transposta para a região. “Desse início artesanal no século 18 chegou-se mais rápido ao uso do algodão manufaturado do século 19 e, na seqüência, ao processo industrial”, explica. Foi assim que em 1869 a indústria de tecidos mineira Cedro e Cachoeira abriu suas portas e fabricou, pela primeira vez, a chita em escala industrial no Brasil. A produção teve fim na década de 70, mas o maquinário foi preservado e reunido no Museu da Chita, no próprio edifício da empresa. Boa parte desse acervo viajou até o Sesc Belenzinho para fazer parte da exposição Que Chita Bacana. Atualmente, três fábricas ainda fornecem o tecido de tramas simples: a Estamparia S.A., a Fabril Mascarenhas e a Horizontes Têxtil, todas em Minas Gerais.

 

 

Economia do tecido - Depois de altos e baixos, hoje a indústria têxtil brasileira é uma das maiores do mundo

O Brasil possui atualmente uma das indústrias têxteis mais fortes do mundo, com produção que figura entre as sete maiores do planeta. Para ter uma idéia da potência do setor, o País alcançou a segunda posição entre os produtores de jeans, atrás somente da China. Mas se agora, por tudo isso, temos motivos para comemorar, há menos de 15 anos a situação não era tão favorável, devido à abertura do mercado promovida pelo governo do presidente Fernando Collor de Mello. A chegada dos produtos importados pegou o setor completamente despreparado para a concorrência, e produziu um resultado catastrófico. De imediato, o impacto levou muitas empresas a fechar as portas e milhares de pessoas perderam o emprego. A longo prazo, no entanto, o fato obrigou os empresários a modernizar o parque fabril. De acordo com números fornecidos pela Associação Brasileira da Indústria Têxtil e de Confecção (Abit), o investimento durante a década de 90 para modernizar o setor foi de 10 bilhões de reais.

 

Essa vocação se revela em todo o País, com fábricas de Norte a Sul, mas é em São Paulo que ela se concentra. No estado, estão 40% de toda a produção nacional. “A emergência de nosso parque industrial se deu a partir do setor têxtil e São Paulo é um estado de forte tradição nessa área”, afirma historiadora Ana Luiza Martins, da Universidade de São Paulo (USP). Perto da capital, na cidade de Itu, está a primeira fábrica a vapor do Brasil – o edifício da Fábrica de Tecidos São Luiz –, construída em 1869 e desativada em 1982. Em Sorocaba, surgiram diversas fábricas, entre as quais a Votorantim. Já na capital, as mais relevantes foram a Contonifício Crespi e as Indústrias Matarazzo, hoje desativadas.

 

 

Os números do setor têxtil brasileiro

• É o segundo empregador do País entre as indústrias de transformação

• Ao todo emprega 1,5 milhão de trabalhadores, em mais de 30 mil empresas

• O faturamento é de 25 bilhões de dólares ao ano

• 90% da produção são destinados ao mercado interno

• 10 bilhões de reais foi a quantia investida durante a década de 90 para modernizar o setor

 

 

Alma brasileira - Exposição desvenda contexto de utilização da chita no País e sua presença marcante desde a chegada dos portugueses

São 4.500 metros quadrados de chita. Não, não se trata de um vestido candidato a entrar no Guinness Book, o livro dos recordes. Essa exuberância faz parte da exposição Que Chita Bacana, em cartaz no Sesc Belenzinho até 18 de dezembro. Instalada na parte externa e na área de convivência da unidade, a mostra apresenta a rica história por trás do tecido, que chegou ao Brasil na época do descobrimento. Sob a curadoria do artista plástico Renato Imbroisi – que contou com a assistência de Liana Bloisi – e cenografia de Janete Costa, a unidade ganhou tons alegres, estampas fortes e instalações divertidas, envolvendo o visitante nos mais variados contextos em que a chita é utilizada. Há desde a representação de manifestações populares, nas quais os participantes costumam empregá-la, até uma maquete, com a rota do tecido a partir da Índia até chegar ao Brasil. Certamente uma das peças mais pitorescas é o casaco usado pelo apresentador Chacrinha (1917-1988). “O evento foi idealizado levando-se em conta que atingisse todas as faixas etárias e sociais de forma ampla e indistinta”, afirma Elisa Saintive, gerente da unidade.

 

Uma das principais características da chita é justamente o caráter democrático de suas tramas simples e estampadas, que há séculos vestem gente de diferentes lugares e classes sociais. Essa diversificação foi premissa para conceber o evento. Ali tem o dedo de talentos distintos, que atuam em vários setores. Participaram da montagem da exposição artistas populares da Paraíba – que fizeram bonecos de pano – e do Distrito Federal – responsáveis pela produção de 36 mil fuxicos para decoração de uma das instalações –, costureiras de bairro que vivem em São Paulo e estilistas consagrados, como a carioca Alessa, o mineiro Ronaldo Fraga e a figurinista Marjorie Gueller, além de peças de Vera Arruda (1966-2004) e Zuzu Angel (1923-1976), a primeira estilista a utilizar chita em suas criações. Em comum, todos têm o tecido na sua história. “As costureiras confeccionaram 32 vestidos para o evento. Os modelos foram criados por elas mesmas, que resgataram lembranças de infância, época em que suas avós costuravam roupas de chita. Essa memória ficou restrita a essas profissionais, pois, com o tempo, todo mundo passou a comprar roupa pronta. Até hoje elas costuram tal qual se fazia antigamente. Embora já tenham passado por cursos profissionalizantes, em que aprenderam a lidar com novas tecnologias, elas preferem obedecer às regras da velha guarda”, conta Liana Bloisi, que colaborou com a curadoria. A estilista Alessa, que usou a chita como base para sua última coleção de inverno, levou para a mostra peças como um inusitado “casaco de pele” e um escarpim revestido do tecido. “Há três anos quando eu saía toda vestida de chita as pessoas estranhavam, mas nos últimos tempos o tecido vem sendo incorporado também à moda urbana das grandes cidades. É o Brasil redescobrindo-se 500 anos depois”, diz ela.