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A arte eletrônica encontra na evolução tecnológica o suporte para dar continuidade a uma ancestral necessidade humana de expressão
Na edição de 2004 da mostra anual de arte realizada pela Fundação Armando Álvares Penteado (Faap) com alunos da faculdade de artes plásticas, um terço das obras inscritas eram trabalhos com – ou em – vídeo. Foram mais de sete horas de imagens veiculadas durante o processo de seleção de uma exposição em homenagem – coincidências à parte – a Julio Plaza, artista espanhol que produziu durante anos no Brasil e figura entre os primeiros a realizar experiências com videoarte no País. Esse é apenas um exemplo de como essa manifestação ganhou espaço no panorama das artes no País – e no mundo. “É impossível pensar na produção contemporânea sem considerar a relação entre arte e tecnologia, ou arte eletrônica, enfim, entre a arte e esses novos meios”, afirma Marcos Moraes, coordenador do curso de artes plásticas da Faap. “É uma coisa mundial. Existe uma presença marcada, muito forte, de todas essas experiências, de toda essa linguagem que, de alguma maneira, se utiliza ou é desenvolvida a partir de meios eletrônicos.”
Os pioneiros da arte eletrônica no mundo, o coreano Nam June Paik e o alemão Wolf Vostell, realizaram suas primeiras experiências com o suporte no final da década de 50 e início dos anos 60. Já em 1958, Vostell inseria aparelhos de TV ligados em suas composições artísticas, enquanto Paik, em 1963, realizara um trabalho na Galeria Parnass, em Wuppertal, na Alemanha, com 13 televisores para analisar distorções magnéticas na imagem, aproveitando até os próprios defeitos da transmissão em sua performance. Estava dada a largada. A arte tinha se apropriado de mais um meio. “[Nam June Paik] tornou-se, em 1965, um dos primeiros clientes do recém-lançado equipamento portátil de vídeo da Sony, o Video Tape Recorder, VTR (composto de câmera eletrônica, magnetoscópio e monitor)”, explica Walter Zanini no texto Videoarte: Uma Poética, publicado no livro Made in Brasil – Três Décadas do Vídeo Brasileiro (Itaú Cultural, 2003), organizado por Arlindo Machado. “Isso significava a concretização de um sonho seu: a utilização individual do mais poderoso instrumento de comunicação de nossa época, até então operacionalizado em nível comercial e estatal.”
Na década de 70 foi a vez de os brasileiros entrarem em cena. E as primeiras tentativas envolveram nomes hoje referenciais no campo das artes plásticas, entre eles Anna Bella Geiger, Letícia Parente, Paulo Herkenhoff, Ivens Machado, Antonio Dias – tido como o primeiro brasileiro a expor um trabalho de videoarte – e Regina Silveira. Dirigido por Walter Zanini, o Museu de Arte Contemporânea da Universidade de São Paulo (MAC/USP) realizou mostras coletivas consideradas fundamentais para o movimento que se iniciava: as oito edições da exposição Jovem Arte Contemporânea (JAC), realizadas entre 1967 e 1974, a Prospectiva 74 e a Poéticas Visuais, em 1977. “Mas coube à oitava e última edição da JAC a organização da primeira mostra pública de vídeos de artistas brasileiros realizada no Brasil”, escreve o crítico de arte Fernando Cocchiarale em “Primórdios da Videoarte no Brasil”, texto que integra o livro Made in Brasil. “Em 1974 inicia-se a história da videoarte no Brasil”, afirma Cocchiarale, que se iniciou no meio das artes como artista, experimentando, ele mesmo, a videoarte.
Vídeo doméstico
A década de 80 é especialmente importante para a história da arte eletrônica no Brasil e no mundo. A efervescência tecnológica que vivemos hoje – um tempo em que a ousadia da invenção é mais importante que o conceito de utilidade – começava a chegar aos lares do mundo, em maior ou menor escala, na forma de “invenções” como o videocassete, o CD e o computador pessoal. E entre essas maravilhas do novo mundo, uma em especial ampliou sensivelmente o cenário criado pelos precursores da década de 70: a câmera doméstica de vídeo. O instrumento de registro de imagens em movimento chegava do exterior no momento em que se experimentavam os primeiros passos da era pós-censura, com os criadores ainda tateando os limites de uma liberdade recém-reconquistada.
Foi nesse contexto que, em 1983, nasceu o Videobrasil – Festival Internacional de Arte Eletrônica, programação que, 22 anos depois, é considerada uma das principais responsáveis pela intensa produção na área não só no Brasil, mas em todo o “eixo sul do mundo”, coberto por suas edições bienais – “eixo sul” é entendido como todas as regiões do globo que não são os Estados Unidos, a Europa Ocidental e os países ricos da Ásia, como o Japão. “O festival nasceu para aglutinar esse campo intelectual em torno de um espaço de exibição, premiação e intercâmbio entre os setores da produção audiovisual que o vídeo questiona”, explica a jornalista Solange Farkas, curadora e diretora do Videobrasil desde que ele foi criado. “Em 1983 o cenário da produção de arte eletrônica na verdade não existia no Brasil. Nem sequer havia o termo videoarte oficialmente. Historicamente, o vídeo é talvez a expressão mais jovem no cenário das artes.”
Mídia tática
Atualmente a principal característica da produção de arte eletrônica são as experimentações com os novos meios. Os lançamentos da indústria tecnológica dão o tom: o da velocidade. Profusão de imagens – na internet, no celular, na televisão, vendidas em DVD – tentando traduzir o mundo globalizado. “Vejo um ótimo momento para a produção da arte eletrônica hoje”, afirma Marcos Moraes, professor da Faap. “E isso fica claro inclusive nas escolas de arte. Por mais que os currículos sejam, digamos, clássicos – desenho, pintura, fotografia etc. –, os alunos acabam desenvolvendo trabalhos com suportes dos mais variados. Temos um grau incrível de produção em vídeo, fotografia digital e até imagens em película manipuladas eletronicamente.” Em texto publicado no site do Itaú Cultural, o doutor em comunicações Arlindo Machado explica que cada vez mais os artistas lançam mão da tecnologia para a criação de suas obras não somente no que diz respeito a imagens, mas também suas “músicas, seus textos e ambientes”. Machado escreve: “De repente, nos damos conta de uma multiplicação vertiginosa ao nosso redor de trabalhos realizados com pesada mediação tecnológica”.
A artista plástica Laura Taffarel, que produziu junto com Axel Weiz e Thiago Villas Boas o vídeo Operação Cavalo de Tróia – espécie de documentário que acompanha a saga de jovens da periferia tentando entrar numa festa sem pagar –, é uma das que apostam no vídeo como meio de expressão. E garante que a linguagem vem se popularizando: “A grande tendência da produção de vídeo hoje é a multiplicidade temática. Os custos de produção de vídeo têm se tornado cada vez menores, o que gerou uma grande democratização”. Laura, cujo trabalho com os colegas está na edição deste ano do Videobrasil (veja boxe Panorama atual), conta ainda que vê entre os artistas com os quais convive uma grande preferência pelos temas urbanos. “No momento, por exemplo, estamos trabalhando numa espécie de videoclipe ‘neo-realista’, em que a cidade de São Paulo é personagem. Além de estarmos captando recursos para um documentário sobre o Minhocão.”
A própria discussão entre arte e tecnologia – o papel de cada uma na sociedade e o resultado da junção das duas – é outro ponto comum por trás da obra dos novos artistas. “Disso surgem trabalhos que têm sido chamados de mídia tática”, diz Solange Farkas, curadora e diretora do Videobrasil. “São obras com um papel político muito grande e que abordam o imediatismo das coisas.” Segundo a curadora, a agilidade atingida hoje pelos meios de comunicação tem interferido diretamente na produção artística. E cita como exemplo o vídeo O Fim do Homem Cordial, trabalho do jovem artista Daniel Lisboa que pode ser conferido durante o Videobrasil. No vídeo um grupo rebelde fictício seqüestra um parlamentar e exige que as imagens sejam exibidas pela TV local. Uma paródia ao estilo dos terroristas que invadem os telejornais do mundo com um detalhe polêmico: a pessoa seqüestrada no vídeo é sósia de um político do cenário nacional. “Eu chamo O Fim do Homem Cordial de um vídeo-bomba”, comenta o autor. “Sua trajetória tem sido catastrófica. Até agora, dois diretores foram demitidos da Dimas [Diretoria de Imagem e Som da Fundação Cultural do Estado da Bahia], um está para renunciar ao cargo por não ter autonomia para exibir o filme, vários casos de censura foram relatados e até agora nada de permitirem a exibição.”
Vídeo como rascunho - por Anna Bella Geiger
Em fins de 1974, por ocasião da [mostra] Jovem Arte Contemporânea, JAC, no MAC/USP, num programa paralelo, apresento os meus primeiros vídeos: Passagens, Centerminal e Declaração em Retrato nº 1. Naquele momento o uso da imagem virtual me levou necessariamente a mudanças na própria relação com a forma do objeto. Não se tratava mais apenas do uso dos meios, das constituintes físicas do trabalho, mas de uma mudança, com o uso dessas mídias tecnológicas, de outro teor.
Também com o uso do vídeo, do super-8, da fotografia, meu trabalho vai, por essa necessidade de uma ação performática, assumir diversas formas. E isso iria deslocar ainda mais as minhas indagações, as incógnitas sobre o campo estético no qual eu poderia desenvolver meu trabalho.
Compreendo cada vez mais o significado daquelas atitudes e intuições. Seria, entre outras coisas, a busca de uma maior possibilidade de indagar sobre um mundo em que as experiências individuais assumem cada vez mais caráter coletivo. Isso criava sentidos específicos no contexto da época.
Nessa mesma época passo a utilizar no meu trabalho algumas noções, idéias vindas principalmente da geografia humana e da lingüística, esta última como parte da minha formação universitária nos anos 50. Seus repertórios, de teor ético-político, irão influir no campo estético do meu trabalho e transformá-lo. Essa profunda necessidade de introduzir noções desconhecidas, isto é, consideradas, até então, como alheias à arte, e por vezes mimetizá-las no meu trabalho, foi provavelmente, além dos possíveis sentidos polissêmicos contidos numa obra, o de poder dar conta da realidade daquele momento. Realidade como campo onde o artista é moldado pelo tempo em que vive e que, como artista, tenta refletir sobre essas contingências. Ao procurar apoio em outros modelos operativos, ao usar imagens eletrônicas, não os considerei nem os considero como apenas fatores externos, mas sim como fundamentais para poder dar conta dessa outra realidade, numa transformação que também considero de ordem ética e estética.
Creio que o fundamental para o artista é uma compreensão da arte enquanto idéia e tentar constantemente compreender o porquê do desgaste e da perda de sentido de certas regras ou métodos que anteriormente consideramos válidos, uma atitude de discussão e revisão inerente ao processo de relação do artista com sua obra. Romper com os próprios dogmas, que só paralisam o pensamento, exige humildade e certa crença no sentido utópico da arte. A única possibilidade da arte é ser experimental, e a única condição do artista é, na verdade, agir experimentalmente.
Excerto do texto Anna Bella Geiger: um Depoimento publicado no livro Made in Brasil – Três Décadas do Vídeo Brasileiro (Itaú Cultural, 2003)
Panorama atual - Com novidades na programação e na proposta, a 15ª edição do Videobrasil – Festival Internacional de Arte Eletrônica apresenta trabalhos de vários estágios de maturidade, experimentalismo e inovação
Realizado há 23 anos pela Associação Cultural Videobrasil, o Festival Internacional de Arte Eletrônica foi o pioneiro na identificação das particularidades comuns à produção em vídeo da América Latina, Caribe, Europa Oriental, África, Sudeste Asiático e Oriente Médio, o que a curadoria chama de circuito sul. “Quando a gente fala em sul, trata-se de um recorte totalmente geopolítico”, explica a jornalista Solange Farkas, curadora do festival. “Senão vão pensar que a gente é ignorante em geografia”, brinca. “É mais essa idéia de eixo sul, mesmo. Para pararmos de falar em países subdesenvolvidos ou em desenvolvimento.” Realizado em parceria com o Sesc São Paulo desde 1990, o Videobrasil chega à 15ª edição com programação expandida e importantes mudanças estruturais. “Já não existe uma homogeneidade na produção desse circuito sul como existia no passado. Por isso foi necessário criar recortes que dessem conta dos diversos níveis de maturidade que os trabalhos apresentam. Sendo assim, pela primeira vez, a mostra competitiva Panoramas do Sul se subdivide em três eixos: Estado da Arte, Investigações Contemporâneas e Novos Vetores.”
Outra novidade é que o festival não concentra mais suas atrações na primeira semana de setembro, como de costume. Desta vez, os trabalhos poderão ser conferidos ao longo de três semanas, seguindo os recortes criados. Estado da Arte acontecerá de 6 a 11 e será responsável por abrigar obras que reflitam maior proximidade com a arte eletrônica. “Esse módulo diz respeito aos trabalhos de pessoas que já estão com uma obra mais madura”, explica Solange. “Trabalhos totalmente engajados no circuito das artes e que já passaram por várias experiências nessa relação entre arte e tecnologia. Ou seja, que estão inseridos totalmente no circuito.” Investigações Contemporâneas ocupará a semana de 13 a 18 e talvez seja a mais instigante novidade, dado seu caráter experimental. Solange adianta: “São trabalhos que dizem respeito diretamente a processos de pesquisa dessa relação entre arte e tecnologia. Neles, é possível perceber a consistência do conceito, do pensamento, você vê que o trabalho não está pronto para entrar no circuito estabelecido das artes, o circuito ainda não está apto a absorver isso porque ainda é laboratório”. Por fim, Novos Vetores, que apresenta vídeos realizados por artistas com menos de 30 anos, propõe mostrar, de 20 a 25 de setembro, o que os mais jovens têm produzido na área. “Esse módulo abriga artistas que não são jovens na experiência artística, mas na relação entre a arte e a tecnologia. São trabalhos vindos do Caribe, da África, do Sudeste Asiático etc., alguns dos muitos que têm chegado. No ano passado eu tive de excluir muitos trabalhos dessas regiões que não tiveram condições de entrar e que neste ano estão presentes justamente porque existe um espaço claro e definido para eles.”
A área de exibição também foi ampliada, com a construção, no Sesc Pompéia, de um auditório de 190 lugares e mais uma play gallery – algo que pode ser traduzido como uma galeria especialmente pensada para a projeção de obras em vídeo – de 150 metros quadrados, com telas de plasma.
A programação paralela do festival inclui a apresentação de nove performances, seis debates e três noites comandadas por VJs. Confira as datas no Em Cartaz.