Postado em
Encontros
por Jorge Forbes
Um dos principais introdutores do pensamento do famoso psicanalista francês Jacques Lacan no Brasil, Jorge Forbes participou da fundação da Escola Brasileira de Psicanálise e tem vários livros e artigos publicados no Brasil e no exterior.
Entre mais recentes trabalhos, Você Quer o Que Deseja? (Editora Best Seller, 2003) apresenta a psicanálise clínica e a sua repercussão no debate cultural e político. Organizou três coletâneas – Psicanálise, Problemas ao Feminino (1996), Psicanálise ou Psicoterapia (1997) e A Escola de Lacan (1992), todos pela Editora Papirus. Forbes também escreve para a grande imprensa, tendo sido articulista de jornais como a Folha de S.Paulo, O Estado de S. Paulo e O Globo, e revistas como Veja, IstoÉ e Época. Atualmente, é colaborador do caderno Aliás de O Estado de S. Paulo. A seguir os principais trechos de seu depoimento:
A psicanálise do século 21 não é mais a mesma do anterior, concebida por Freud [Sigmund Freud, 1856-1939]. Passamos de um homem traumatizado para um homem “desbussolado”. No mundo universal, a psicanálise tratava de pessoas que precisavam chegar até um ponto e não conseguiam. A idéia primeira de Freud foi de que alguma coisa ficou presa no passado e que essa coisa precisaria ser desamarrada para a pessoa poder ir para a frente. Logo, a pessoa ficaria melhor ao se conhecer mais. Hoje em dia, no entanto, quem procura análise não é mais uma pessoa que tem um impedimento para alcançar uma meta. Mas, sim, que tem um monte de objetivos e não tem a menor idéia do que fazer. E um dos maiores sintomas desta época é o estresse. Dizer que uma pessoa está estressada porque ela tem múltiplas opções é mais ou menos como dizer que alguém está gordo porque vai a um restaurante self service. Lá a pessoa encontra galinha, porco, boi e, democraticamente, come um pouco de cada coisa. Quando vê, está gorda. Ou seja, é como se entre as múltiplas opções da vida fôssemos obrigados a aceitar todas – um problema, portanto, de escolha.
Quando faz uma escolha a pessoa sempre se arrisca. Diante de dez possibilidades, ao escolher uma – além de poder ser uma escolha errada – a única certeza é que se perderam as outras nove. Não é de estranhar que diante da liberdade, dada na pós-modernidade, de uma perda de padrões de comportamento, as pessoas queiram recuar e buscar formas seguras de ação. É aí que temos o surgimento de novas religiões a cada esquina, ou de livros de auto-ajuda – estruturalmente falhos, uma vez que a leitura do primeiro não dispensa a do segundo, ajudando, portanto, só os editores. Por isso, falo em homem “desbussolado”, aquele que está sem rumo, porque se acostumou a um pai.
Agressões inusitadas
Temos uma série de novos sintomas próprios da horizontalidade do laço social da globalização que não respondem ao tratamento standard da psicanálise do século passado. Alguns exemplos são o fracasso escolar, as agressões inusitadas, toxicofilias, anorexia, bulimia e epidemia de depressão.
Por exemplo: uma briga entre adolescentes. Outro dia um menino, saindo de um restaurante à 1 hora da manhã, passou por um rapaz em sentido contrário, que pegou um soco inglês e lhe deu um murro que lhe abriu o nariz e a testa. E continuou andando. Veja: não havia bebida, droga, nada antes. E não houve nada depois. Como eu conhecia o garoto que levou o soco, o acompanhei à delegacia. Quando cheguei à DP, a delegada, sabendo que sou psicanalista, contou outro caso. Um menino que, naquela mesma noite, no Itaim Bibi, estava falando com a namorada, em Higienópolis, pelo Messenger [sistema de conversa em tempo real pela internet]. De repente, ele diz: “Estou triste aqui, sozinho. Sabe do que mais? Dá uma olhada na câmera”. O rapaz focou a câmera na janela, foi até lá e se jogou, do 15º andar. De novo não havia nada antes, nada depois. Só nessa noite que eu estava na delegacia foram mais de dez – não todos, evidentemente, suicídios. Infelizmente a imprensa não está noticiando esses exemplos, que são muitos e merecem toda a nossa atenção.
Drogas
Trata-se de uma epidemia talvez mais grave do que a de aids e menos noticiada. É terrível e nós estamos perdendo essa batalha. O acesso às toxicofilias é dificílimo. Você pode interpretar tudo o que quiser sobre a fase oral de um toxicômano que não vai mudar nem um pouquinho o uso da droga. Isso não pega mais. E nós sabemos disso. Temos muita dificuldade. Quando você solta os padrões de satisfação das pulsões, elas ficam em aberto, como se fossem um monte de fios. Os tóxicos são receptores universais, se adaptam a qualquer pulsão em aberto. Qualquer um que consumir cocaína vai sentir um barato. Alguma coisa essa pessoa vai sentir. É muito difícil que haja algum outro objeto de satisfação humana que tenha essa virulência e força.
Fracasso escolar
Isso não tem nada a ver com aquela rebeldia do tempo das pessoas que têm, hoje, mais de 40 anos de idade. Eu sou da geração 68, uma geração rebelde. Fui para a rua. Orgulho-me de ter estado no chão do Maria Antônia [referência aos muitos conflitos entre a polícia e os estudantes durante o regime militar no Centro Universitário Maria Antônia, ex-sede da Faculdade de Filosofia da USP]. Éramos rebeldes e orgulhosos dessa rebeldia. Mas essa geração de hoje não é formada por jovens rebeldes. Eles têm um menosprezo absoluto, ou seja, uma ausência de valor. Quando um professor fala para um aluno algo do tipo “assim você não vai entrar na faculdade”, é grego para o garoto. Ele não tem a menor idéia da importância de entrar na faculdade, não é um valor para ele.
Liberdade e responsabilidade
Passemos à questão da responsabilidade. O conceito ao qual estamos acostumados diz que passamos a ser responsáveis no momento em que estamos livres. O exemplo mais banal é a responsabilidade dita jurídica. Se estou dirigindo meu carro e, de repente, derrapo numa mancha de óleo e atropelo oito pessoas num ponto de ônibus, não vou preso. Trata-se de um homicídio culposo e não doloso, porque eu não estava livre em minha ação. A mancha de óleo tira a minha liberdade. Por não estar livre, não sou responsável. Isto é claro, e a sociedade, dentro do padrão jurídico, responde dessa maneira. Só que isso faz a sociedade e não exatamente as pessoas. Se eu atropelar oito indivíduos num ponto de ônibus, não serei o mesmo, sendo preso ou não. Quem está no volante e atropela oito pessoas, não importa se há óleo na pista ou não, passa por uma experiência de vida que a marca para todo o sempre. Deixa de ser a pessoa que era antes. A questão é pensar numa responsabilidade que não seja a jurídica. É difícil ponderar a respeito. A primeira coisa nessa forma de pensar é que você tem de se responsabilizar pelo acaso e pelo encontro. Primeiro, você se responsabiliza, e depois, talvez, você seja livre. A responsabilidade é anterior à liberdade, e não o contrário. As conseqüências disso não implicam só a clínica psicanalítica, mas também a jurídica, de um novo tempo.
O psicanalista, médico psiquiatra e escritor Jorge Forbes esteve presente na reunião do Conselho Editorial da Revista E, em 22 de julho.