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O cômico e a comédia

 

Adolfo Mazzarini Filho

 

Decorria o mês de outubro do ano de 184. A multidão romana ululava na enorme praça definida por suntuosos edifícios. O sangue secara nas espadas dos soldados que olhavam as escravas sentadas, lacrimejantes. Nas esquinas das ruas que desembocavam naquele céu aberto, prostitutas tímidas esperavam oportunidades de amor. De repente a turba movimentou-se: os senadores começavam a alinhar-se na escadaria do palácio. Não tardaria o imperador! Todos os olhos se fixavam na tribuna que ficava em cima da escadaria. A porta abre-se e ele aparece fazendo pose de ator de tragédia, arrancando da platéia gritos frenéticos, desmaios e bravos. Levanta o braço enérgico e os gritos morrem em murmúrio. O imperador proclama: “Ide aos espetáculos; ide ao circo; ide ao teatro: as necessidades públicas são a nossa tarefa, a vossa são os prazeres”. Não teve tempo para dizer mais nada. Já se ouvia o ronco de um avião, vindo dos lados do Iraque. Despejou sobre o povo uma chuva de sacos de arroz, feijão e batatas. Naquela confusão, um garçom com um nome estranho, deu um salto acrobático e agarrou no ar um dos sacos. Dentro tinha um homem nu, todo besuntado de azeite e vinho, com um enorme falo de couro, e uma cauda de cavalo. Os comerciantes, os soldados, os escravos, as prostitutas reconheceram-no imediatamente: era o desavergonhado Plauto. O bem-amado de língua desenfreada, contador de histórias de deuses fornicadores e militares maricas, de maridos traídos e mulheres sagazes. E lamberam-lhe o corpo besuntado de vinho e azeite. No auge do entusiasmo, a multidão seminua formou um cortejo. Ficaram espadas pelo chão, sandálias e túnicas, traças cortadas em ramos de flores e malas desfeitas. O povo dirigiu-se para o teatro em cambalhotas, dizendo palavrões e gracejos, com o cômico aos ombros esperneando. E murmuravam que o imperador era bicha e sua mulher uma sem-vergonha, coitada. Bem perto, soldados de viseira e lança irrompiam às vezes, desordenando a turba. No palácio, meninos-escravos serviam lânguidos o coquetel, por entre púrpuras e sedas, prata, ouro, marfim e mármore, colunas e azulejos. – Atenção para a comédia! – disse Terêncio. Ouviu-se mexer um sutil bocejo. Três poetas levantaram-se e os meninos-escravos pararam de vez virados para o palco de bandejas na mão. O teatro acabou. O pano de boca desceu pela primeira vez na história. Alguns espectadores dormiam amontoados nas estações do metrô. O cômico Plauto tirou a máscara e a barba grisalha, limpou e arrumou o cabelo, guardou numa caixa o falo e a cauda e vagueou por Roma deserta. Respirou o ar da madrugada, sentiu o cheiro de pão quente e bolinhos de mel fritos em azeite. De uma janela entreaberta vinha um bafo azedo de amor feito ao cair da noite. Deixou-se ficar ali olhando o céu. Foi então que uma leve poeira cósmica começou a descer amarela sobre o cômico... e permanece até hoje.

 

Adolfo Mazzarini Filho, é formado em Artes Cênicas e Técnico do Sesc São Paulo