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Em Pauta
Inovação cultural
O Sesc Bauru realizou, de 21 a 23 de setembro, o simpósio Cultura: Arte e Tecnologia, em parceria com a Universidade Estadual de São Paulo (Unesp) e a Associação dos Geógrafos Brasileiros. O objetivo foi examinar questões atuais que envolvem os avanços tecnológicos – em seus aspectos positivos e negativos –, relacionando-os com a cultura em suas diversas abordagens: filosófica, histórica, sociológica, antropológica e política. A Revista E convidou dois professores que participaram do evento para discutir as influências da tecnologia na cultura e as perspectivas para novas formas de atuação social, contribuindo assim para a ampliação do debate. A seguir, o professor do Departamento de Filosofia da Unicamp, João Quartim de Moraes, e o docente do Instituto de Artes da Unesp, Milton Sogabe, expõem seus pontos de vista sobre o tema.
Cultura e revolução técnica - por João Quartim de Moraes
Estamos numa época de revolução cultural? O significado desta pergunta depende de discernirmos o que se revoluciona na cultura. Certamente não o idioma, exatamente porque está em constante evolução. O processo histórico é trânsito, movimento, devir, e quantos sinônimos mais nos proporcionar o estoque léxico. Contentar-se, entretanto, com esta constatação de bom senso encerra o risco de se perderem de vista as diferenças de ritmo da evolução histórica. Sem sair do terreno do bom senso, parece claro que, no Ocidente europeu, o século 16, que inaugurou a chamada Era Moderna, merece muito mais a caracterização de época de transição do que, por exemplo, os séculos 6 a 10. Entretanto, num domínio ao menos, os séculos que seguiram o desmantelamento do império romano do Ocidente foram atravessados por uma decisiva transição, de cujas conseqüências somos, e continuaremos sendo até o limite de nossa perspectiva histórica futura, tão ou mais tributários do que aquelas introduzidas pelo Renascimento, pela Reforma, pelo ciclo de descobertas e de expansão planetária do capitalismo comercial, a saber, aquela que conduziu do latim vulgar às línguas românicas ou neolatinas. Mas quem negará a importância absolutamente fundamental do desaparecimento do latim como língua viva e do surgimento, a partir de seu tronco moribundo, das línguas nacionais da Europa Ocidental?
As revoluções técnicas de nossa época se sucedem e acumulam, mas estamos sofrendo, sobretudo, suas conseqüências perversas, das quais as armas nucleares são as mais evidentes. Apenas quatro anos e meio depois de o presidente Franklin Roosevelt ter anunciado, na famosa mensagem ao Congresso de 6 de janeiro de 1941, um mundo baseado em “quatro liberdades humanas essenciais”, inclusive libertar a humanidade, “em nosso tempo e em nossa geração”, da miséria e do medo e implantar um “tipo de mundo” que seria a “verdadeira antítese” daquele “que os ditadores procuram criar com a explosão de uma bomba”, a dupla explosão nuclear de Hiroshima e Nagasaki ofereceu ao mundo estarrecido o indizível espetáculo de cerca de 200 mil corpos carbonizados em alguns minutos pelo clarão letal dos dois imensos cogumelos radioativos.
Cairíamos numa unilateralidade pessimista, entretanto, se reduzíssemos a questão do significado da inovação tecnológica a seus efeitos perversos. São fantásticas as perspectivas abertas pela aplicação da microeletrônica à informática e do desenvolvimento das tecnologias de informação, que afetam as mais variadas dimensões da sociedade: a introdução de computadores nas escolas públicas disponibilizando bibliotecas virtuais, a difusão de computadores com acesso à internet, a generalização do uso do correio eletrônico, a formação de grupos de discussão na internet etc.
Mas os efeitos desta revolução técnica, como os de todas as que a precederam ao longo da evolução da humanidade, dependem das relações sociais em que se inscrevem. A tendência a superestimar os aspectos positivos da nova tecnologia da informação levou alguns hiper-otimistas a sustentar que “daqui a cinco anos o jornalismo não vai ter mais essa cara que tem”; ou ainda que “os meios de comunicação tendem a se fragmentar, espatifar-se em centenas, depois milhares de pequenos veículos pela rede”. O problema do controle, por parte dos grandes grupos capitalistas, dos meios privados de comunicação social resolver-se-ia assim, nesta visão demasiado otimista, espontaneamente, por obra e graça da internet. Há um século, o deslumbramento com o progresso científico e o pujante desenvolvimento industrial levaram a ilusões semelhantes, brutalmente desfeitas em 1914...
Neoliberalismo e globalização – Duas idéias-força dominam o discurso político internacional, mas suas forças respectivas agem em sentido contrário. A primeira, de evidente conteúdo crítico, justifica-se plenamente para designar, mediante o prefixo neo, o liberalismo ultra-reacionário que, contrariamente ao velho liberalismo do século 19 (empenhado em abrir caminho para a hegemonia burguesa, enfrentando, à direita, o conservadorismo aristocrático e, à esquerda, a classe operária em ascensão), combate numa só frente contra as conquistas democráticas dos trabalhadores assalariados.
Seguindo o exemplo anglo-estadunidense, as burguesias do mundo inteiro assumiram o “programa máximo” da reação neoliberal: resolver a “crise fiscal” dos Estados capitalistas reduzindo os gastos do Estado, notadamente os dos serviços públicos, e suprimindo os direitos sociais dos trabalhadores e as funções estatais que os asseguravam, para poder reduzir os impostos pagos pelos capitalistas, aumentando-lhes os lucros. A segunda, lançada pelos ideólogos imperialistas, serve de cortina de fumaça para a primeira. Como, entretanto, são muitos os que, à esquerda, embora reconhecendo os aspectos perversos da nova ordem liberal-imperial, aceitam caracterizá-la como “globalização”, imaginando com isso estar sendo lúcidos e modernos (quantas vezes não ouvimos o chavão “num mundo globalizado... etc.”?), parece-nos indispensável um comentário sobre seus efeitos ideológicos. A idéia que já veio pronta da matriz estadunidense: globalization é o nome que os imperialistas deram à contra-ofensiva planetária que desencadearam, com inegável sucesso, durante as duas últimas décadas – os franceses, sempre preocupados com a embalagem dos produtos, preferem falar em mondialisation. Mas dizer que o mundo globalizou-se ou que o globo mundializou-se deixa o planeta tal e qual.
Se o termo se tornou uma idéia-força no arsenal da reação internacional é porque, apresentando os interesses dominantes como expressão inelutável da marcha da história, desempenha, com razoável eficiência, sua função mistificadora. Estaríamos numa época em que, com a instauração da “comunidade internacional”, os Estados nacionais teriam se tornado peças de museu. Os trustes, cartéis e outros “conglomerados multinacionais”, desvinculados de qualquer base nacional, guiar-se-iam apenas pela “racionalidade” mercadológica, que exigiria a supressão das soberanias nacionais e dos direitos sociais.
Basta, entretanto, olhar o que ocorre no planeta, sobretudo depois que o colapso da União Soviética rompeu, em favor do bloco imperialista, o equilíbrio estratégico instaurado em 1945. Sem mesmo esperar que Boris Iéltsin enterrasse no fétido lodaçal do neoliberalismo os restos mortais da grande Revolução de Outubro 1917, os valentões do Pentágono invadiram o Panamá com mortíferos bombardeios sobre a população civil, para, logo depois, despejar sobre o Iraque um dilúvio de bombas, numa das mais atrozes operações genocidas desde a Guerra do Vietnã. Os massacres balísticos da Sérvia, em 1999, do Afeganistão, em 2001, e novamente do Iraque, em 2003, confirmaram mais e mais que há hoje poucos países da periferia a salvo de um ataque semelhante. Com o apoio do cartel político-militar da Otan (ainda que reticente no Iraque de 2003), a máquina bélica da “única superpotência” desencadeou um novo surto de agressões coloniais que ab-rogou na prática os princípios da soberania nacional e da não-intervenção nos assuntos internos de outros Estados, reativando os métodos nazifascistas da “guerra total” e da destruição maciça dos países considerados inimigos. A infame ocupação imperialista do Iraque continua a derramar rios de sangue para garantir aos trustes estadunidenses um mar de petróleo.
João Quartim de Moraes é professor do Departamento de Filosofia da Unicamp e doutor em Ciência Política pela Fundação Nacional de Ciência Política da Academia de Paris
Uma arte em sintonia com a nossa época - por Milton Sogabe
O termo arte-tecnologia pode parecer contraditório num primeiro momento, quando pensamos em arte tendo como referência as pinturas e esculturas tradicionais, em que a mão e os processos artesanais são predominantes.
Mas, como em todas as atividades humanas, a arte também sempre se utilizou de algum tipo de tecnologia, de que podemos acompanhar o desenvolvimento desde a pré-história até nossos dias, por meio das inúmeras obras que as civilizações de cada época nos deixaram.
As diversas fases tecnológicas que em grande parte contribuíram para a caracterização de cada época geraram modos de vida, pensamentos e culturas diferenciados. Os artistas sempre procuraram estar sintonizados com sua época pelo contato com os conhecimentos científicos, tecnológicos e pelo envolvimento com as questões mais polêmicas da sociedade, no sentido de pensar a vida e a arte.
Quando presenciamos hoje uma exposição de pinturas impressionistas, temos a sensação de algo antigo, diante de toda uma produção do século 20. Mas, se lembrarmos que em sua época o Impressionismo revolucionou o mundo da pintura e da arte contrapondo-se às pinturas do Realismo, descobriremos que isso se deu pelo contato com as teorias científicas da cor, da produção de novos pigmentos e tintas que a indústria química estava disponibilizando, e do diálogo com a linguagem da fotografia, que acabava de nascer. Nesse contexto, o Impressionismo também era uma arte totalmente em sintonia com os conhecimentos da época, na qual os artistas mostravam uma nova visão de arte e vida, ao pintar fora de seus ateliês, ao ar livre, representando temas do cotidiano nunca antes apresentados nas telas, e criando toda uma nova teoria da pintura.
A ciência, a engenharia, a tecnologia e a própria arte passaram por transformações densas e rápidas no século 20, qundo nossa capacidade de ficção foi ultrapassada pelo próprio desenvolvimento da ciência. Embora ainda haja muita violência, fome e pobreza no mundo, o conhecimento humano atingiu um alto grau de penetração nos mistérios da natureza, do universo e do corpo humano. A relação com a natureza ultrapassou a mera aparência visual externa, muito revelada pela fotografia analógica, e agora podemos visualizar o funcionamento interno dessa natureza por simulações digitais, indo do macrouniverso à micropartícula. A noção de tempo e espaço com certeza se alterou muito, assim como nossa percepção e visão de mundo.
Talvez os artistas também tenham se sentido um pouco sem rumo nesse novo ambiente em que submergimos, mas já podemos presenciar propostas ousadas, visionárias e criativas, assim como podemos resgatar e valorizar outras que já apontavam para alguns dos caminhos que a arte percorre hoje.
A arte-tecnologia acompanhada de termos como mídia arte, arte transgênica, web arte, arte digital e outros, revelam uma arte sintonizada com nosso tempo.
Com já mencionamos, a arte sempre esteve relacionada a alguma tecnologia para a materialização de suas obras, mas, na segunda metade do século 20, essa relação com a tecnologia e a ciência se intensificou, refletindo nosso cotidiano envolto nesses aparatos tecnológicos que estão presentes em todas as atividades.
O número de eventos dedicados à arte-tecnologia, mídia arte, web arte se multiplicam pelos principais centros culturais do mundo, assim com as publicações, os centros de pesquisa e a inserção desse assunto nos cursos superiores de arte, que também tentam correr atrás de uma atualização, sem no entanto ter estruturas apropriadas para essa tarefa.
Talvez termos como arte-tecnologia, mídia arte, arte digital percam seu sentido à medida que a maior parte dos processos de produção passar por alguma tecnologia ou mídia na qual o digital predomine. No momento em que as primeiras obras começaram a explorar esses recursos, esses termos eram representativos, mas com o tempo a tecnologia digital estará presente em quase tudo, tal como a energia elétrica, da qual só percebemos sua atuação ampla quando ela nos falta.
A arte continua tendo como principal objeto a poética e a criatividade, no que a liberdade predomina, não há o certo ou o errado, regras ou parâmetros definidos, existindo apenas a própria história da arte como referência e a visão de mundo de cada artista.
Historicamente a arte-tecnologia tem suas origens com o advento da arte cinética, em meados dos anos 50, quando aparatos mecânicos e elétricos começaram a ser utilizados para explorar o movimento real e ilusório. Muitas vezes, o mais interessante era a forma como os artistas adaptavam os aparatos técnicos para conseguir seus objetivos. A criatividade e o espírito do Professor Pardal, personagem das histórias em quadrinhos, traduz muito esta característica.
A arte começou a ser feita com o vídeo, a fotocopiadora, o videotexto, o facsímile, a televisão de varredura lenta, o videofone, e todos os meios de produção de imagem e som disponíveis. Novos materiais criados pela ciência foram utilizados em obras de arte, assim como os artistas se alimentaram das novas teorias científicas.
No Brasil, a arte-tecnologia teve muita repercussão entre os artistas que estavam nos cursos de pós-graduação em artes nos anos 80, e embora enfrentassem a dificuldade de acesso aos equipamentos para a produção de obras, continuaram investindo numa reflexão sobre o assunto, o que fez surgir uma geração de artistas com atuação internacional, que na maioria estão ministrando cursos de graduação e pós-graduação em artes, produzindo obras, textos reflexivos e a formação de outras gerações de artistas. Mas, mesmo antes desse grupo, temos a presença de alguns artistas que desde os anos 50 e 60 já vinham apontando para esse caminho, tal como Abraham Palatnik, Waldemar Cordeiro e outros.
A relação do público com a arte também está sofrendo alterações na medida em que as instalações e os recursos interativos “jogam” os visitantes para dentro da obra, seja física, seja virtualmente. Embora a interação do público com a obra não seja uma novidade, a tecnologia digital está permitindo outros níveis de interatividade, com o que a obra pode se transformar ou se conformar de acordo com as situações que o público provocar.
Como a “subversão”, ou o olhar e a ação criativa do artista sempre modificaram a função dos objetos e os processos existentes, na arte-tecnologia também presenciamos essa característica, quando os artistas interferem nos circuitos do aparelho de TV, distorcem suas imagens, viram literalmente as TVs de ponta-cabeça, usam os sistemas de telecomunicação das formas mais inovadoras, fazem de tudo na máquina fotocopiadora menos tirar cópias de originais, desmontam os computadores, conectam vários tipos de periféricos, desenvolvem programas específicos, sempre em busca da criação de uma poética.
Já desde o começo do século 20, os artistas tanto na pintura quanto na escultura ou em outras modalidades começaram a incorporar novos materiais para a produção de uma obra de arte, provocando dessa maneira a liberdade de utilização de qualquer material ou processo existente para se fazer arte. Nesse sentido as possibilidades atuais parecem infinitas, tornando-se ao mesmo tempo um dificultador e um facilitador ao artista, que pode se perder no fascínio por esse universo ou encontrar meios para materializar seu pensamento.
Hoje encontramos os artistas trabalhando em conexão com os mais diversos campos do conhecimento humano, numa atividade de colaboração na qual há interesse por parte do artista, que busca novas informações para pensar sua arte, e também por parte das outras áreas, que encontram no artista não só a criatividade, mas um pensamento humanista no seu sentido mais amplo, num momento em que a ciência e a tecnologia adquiriram poder de transformação, que é ao mesmo tempo fascinante e assustador, sobre o homem e a natureza.
Para maiores informações, leia A Arte no Século XXI: A Humanização das Tecnologias, de Diana Domingues (Editora da Unesp/1997); ou visite o site do Itaú Cultural, página sobre o panorama de arte-tecnologia no Brasil, com pesquisa de Arlindo Machado, Silvia Laurentiz e Fernando Iazzetta (www. itaucultural.org.br)
Milton Sogabe é artista multimídia e professor no Instituto de Artes da Universidade Estadual de São Paulo (Unesp)