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Matérias da edição

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Ficção Inédita

Luz.

 

Ronaldo Bressane

 

O pai tão alto – sua cabeça nas nuvens. O céu, azul manchado de carneiros tigres elefantes, abre caminho para o dia de clube sorvete gangorra desespero. Tempo, costuras de tédio e susto. E o pai, nuvens brancas: – Hoje você aprende a nadar.

Mas entre o Jardim da Luz e o clube, o metrô e suas escadas rolantes que ele e a irmã sobem as de descer e descem as de subir.

– A Luisinha do 7º andar perdeu o pé numa brincadeira assim – a mãe não esquece. E tome croque na cabeça. Cruzando a catraca, a irmã bate a cabeça e cai. Entram no vagão, outro croque – tonto, não precisa dar sinal, o trem pára sozinho –, a irmã abre a sirene.

– Idiota! – desdenha ele. O pai, duro:

– É feio rir da tua irmã. Tem que cuidar dela.

Não queria cuidar de ninguém; seus olhos tomam conta do metrô, por exemplo. As pessoas entram e saem arrastadas por suas malas; pedem esmolas; cantam coisas dementes batucando nos assentos e nos ferros; se penduram babando; olham para ele, fixos (algo errado nos óculos?); catraqueiam, matraqueiam. E o som do trem veloz contém os gritos de milhões de almas penadas. Lá fora, no escuro fundo, quem? Ratos? Seitas satânicas? Mendigos, bandidos, alienígenas? Irmãs chatas? Sussurra à irmã sobre os fantasmas do túnel, mortos-vivos ensangüentados que, em ectoplasma, como os resmungos da mãe, entram por um ouvido e saem por outro, infelizes condenados ao eterno sofrimento de serem atropelados pelo metrô. Os olhos da irmã se abrindo a cada tétrico cochicho, o queixo no peito – até ela chorar de novo, no colo do pai.

– Idiota! – outro croque.

– Aiê!

A dor, o céu: o metrô pela via elevada, suas janelas de cores sujas. Estação Conceição. Do lado de fora da escada – milagre – o céu outra vez cor de céu. Dali pro clube, um ônibus e quadras de pega-pega com a irmã.

– A carteirinha.

Exibe sua foto de sócio. O documento lhe pertence, o pai pertence à associação, o sorvete, a gangorra e o desespero lhe pertencem.

– Onde é a piscina?

Antes, o almoço – o pai e a mãe acordam tarde. Na sacola da mãe, a sunga nova. No prato, um galinheiro:

– Quero ver limpar tudo.

– Vai ter uma indigestão!

– Quantos são os trabalhos de Hércules, filho?

– Djhozi.

– Não fala com comida na boca. Qual era o único jeito de matar o Aquiles?

– Com uma flecha envenenada no calcanhar?

– E a Medusa?

– Cortando a cabeça.

– E qual era o nome do filho dela?

– A Medusa não teve filho. Quando o Perseu cortou a cabeça dela, com um espelho, saiu um cavalo com asa, que chamava Pégaso.

– Você consegue nadar?

– Difícil, pai?

– Você é fraquinho, só fica lendo, não brinca, não joga bola.

– Joga bola sim, você não vê, não pára em casa – manda a mãe, bigode de Malzbier.

– Brinca nada. Só assusta – a irmã embica; ganha um chute na canela. – Ele me bateu!

– Vou pra biblioteca! Daqui a duas horas vou pra piscina!

Tem sete anos e seu melhor amigo é um sujeito com taturanas nos olhos. Acha que taturanas têm borboletas dentro – por isso que o Lobato escrevia tanto, as borboletas nos olhos o faziam escrever depressa. Depois de duas horas com uma lente em Emília no País da Gramática, a outra nas pernas da bibliotecária e o cérebro se espreguiçando, pega emprestados dois livros de Poe e sai correndo.

A mãe quer entrar com ele no banheiro.

– Todo tipo de tarado.

– Você entra com ele e eu peço o divórcio.

– Então vai você que é homem. Cuidado, filho.

Tinha visto o pau do pai em casa – vive andando pelado pra lá e pra cá. Mas os paus no vestiário são espantosos: todos os tamanhos, cores, formas, tortos pros lados; homens suados, molhados, falando grosso e alto, lavando a cabeça com força. E o cheiro forte, doce, salgado, enjoativo vapor masculino – lugar desagradável. Envergonhado, mete as miudezas no azul da sunga nova.

– Deixa disso, aqui é assim mesmo. E vê se tira esses óculos, não precisa usar isso na piscina. – Então se despede de seus olhos, pra dentro da mochila.

Escada acima, o pai o empurra pela nuca feito se faz com cachorro, com condenado. Seus olhos míopes ao chão, o sol queimando o pé no solo amarelo; já perto o cheiro do cloro, o coração na piscininha menor, onde se afogam as criancinhas. Tudo passa a ser uma claridade difusa, ocre, mole, as pessoas e as coisas assustadoramente tendo embaçados seus limites. Cinco metros à sua frente, ele não divisa nada.

– Bora lá, se acostumar.

As costas do pai, músculos lisos, vermelhos de sol, somem na água da piscina olímpica; da plataforma, a mãe acena, mão e sorriso nervosos. Uma cigana viu em seu destino a morte por afogamento. O olhar dele, mareado, vaga pelo parque aquático entre tchibuns e braçadas, barrigas peludas e gordas e bundas redondas, morenas, bolas infantis e risos irritantes, refrigerantes nas esteiras ao lado dos óculos de sol, livros, bronzeadores, e acima de tudo os braços cruzados do salva-vidas, enorme em seu pedestal. Um homem voa crucificado no centro dos nadadores sem acertar nenhum; por cinqüenta metros é um peixe de vôo caudaloso entre duas faixas pretas, de repente raiando de cabeça lânguida, boca de medusa e olhos abissais – o pai. Debruça-se na borda da piscina e abre um sorriso para o alto: não à mãe, sim um biquíni de bolinha amarelinha. Tão pequeno ele, o pai não o vê; assim, age espião, a guardar sua mãe lá na torre da plataforma, debaixo do guarda-sol. Mas a mãe não é uma princesa enclausurada, é uma mulher que toma cerveja preta com um tio que ele não conhece. E ri. A bunda do biquíni e o bigode do tio. A quem pertenceriam as águas? Toma o rumo da piscininha das criancinhas.

A água morna e morena de mijo. Zonzo, meio surdo – o mundo sem óculos não faz sentido –, anda entre os seres seus pares, suas vozinhas, gestos portáteis e quebrados, bundas caindo pelas tabelas. A irmã, solitária, feliz – tinha entrado junto com uma amiga da mãe. Ele vai pro outro lado. Que falta um bom livro. E um cachimbo. As crianças o desesperam. Um dia seria Sherlock e tocaria violino sem ninguém encher. Percebe que de um dos cantos da piscina brota um ralo na parede – se coloca o pau ali, a água sendo sugada dá uma sensação gostosa. Fica um tempo, como quem não quer nada, o olhar besta, sentindo o movimento, o pinto duro, quando escuta um grito. Um garoto, que deveria estar fazendo o mesmo, tem o pingolim engolido pelo ralo. Pânico, o salva-vidas cai na água mijada. Em seu ombro, a mão:

– E aí, rapaz, vamos lá?

Detestava quando o pai o chamava de rapaz. Não era rapaz nem criança. Mas o pai não conhece sutileza:

– Um dois três e já!

E o joga na piscina grande. A água está melhor – o problema são os pés: onde o chão? O piso nosso de cada dia? Seus pés espadanam como papa-léguas, e seus braços, esticados ao alto, então a água o pega pelo pescoço e se enfia raivosa no nariz, tosse, ouvidos numa zoeira de submarino em filme de sessão da tarde, tosse de novo, forte, sons de fora agora dentro de uma bruma delirante. O pai o puxa de volta, joga-o para cima, uma bola como as que ali vagam, e cai de novo, no meio da piscina – sobe à superfície, os pés cansando-se, a irmã gargalha; vai tomar tanto croque; o cabelo na cara, tosse de novo, onde a mãe para salvá-lo desse monstro? Novamente pescado pelos braços grossos do pai, elevado ao céu, a mãe na plataforma com o tio, por trás do sorriso de pirata do pai grande piscando um olho, de novo na água: um cão danado, cachorrinho nadando, ganindo na barra da saia da mãe, cachorro com a irmã, canzarrão favorito do pai que o empurra a cabeça, para baixo d’água por água abaixo desenvolve-se esse estranho batismo em nome do pai, do filho, dos espíritos de porco que se cagam de rir de seu simiesco nado, e ele nada é, embora num salto mais forte – peixe-voador afogado no próprio vôo –, olhos cegos no beijo da mãe no tio na plataforma e na beira da piscina o pai que se esgueira entre biquínis rindo nas veias saltadas e o mergulho no fundo, pés batendo e ele voltando e tossindo pelo beijo de cloro e choro, cansado, muito cansado, a boa água o levaria e ele enfim pertenceria, afinal cercado, abraçado por todos os lados, pela mãe, pela irmã, pelo tédio de todos os domingos conheceria os enigmas de Sherlock e as artimanhas de Lobato, nadaria entre os fantasmas do metrô não mais castigado por sua inútil curiosidade e o nojo de viver freado pelos quatro pontos cardeais mortos da escola, da casa, do clube e de seu próprio vazio, afundar, docemente descer pelo ralo que o sugaria gostoso o pau até o fim, abraçado pelas criaturas do limo, dos encanamentos subterrâneos da Cidade-Olho que tanto amedronta sua reles visão, pelos celacantos bigodudos que habitam as femininas águas de seu coração desde que nasceu, finalmente os encontraria, sua cabeça enfim explodiria dando luz a um cavalo alado, escoiceando sua antiga pele de réptil cego, pelos braços do pai que o arranca da piscina, dando tapões nas costas para tirar a água, de quem são os lábios que mordem a boca? Peixes de óculos mastigando-os frios, alto-mar, ou uma âncora no pescoço? Mas não, os do pai, a lhe respirar, trazendo, nos olhos, nuvens brancas e o azul do céu.

O céu.

O céu se fecha de chumbo.

– Estranho, sua mãe não falar nada. Vai ver não viu. Não fala disso com ela que ela me mata.

O cheeseburger esfria no prato, moscas zumbem no ouvido e abelhas entram no copo de Coca da irmã. Fritando, a pele. A mãe volta com dois livros.

– Esqueceu na biblioteca, seu moço. Se não estivesse lá... vamos?

Quer ir para a piscina de novo, mas esfria, cinco da tarde. As nuvens caraminholam no horizonte uma chuva enorme – e, segundo a mãe, quando chove as piscinas ficam inseguras, atraem os raios. O pai, de perfume, assente.

No ponto de ônibus, os pais dão-se as mãos; a irmã, ali, perto, de novo amiga, o olha de um jeito diferente. Começa a chover forte; seu cabelo recende a cloro, dá um certo nojo. Levanta a cabeça, seu pai ajeita seus óculos até que se encaixem no nariz, e sorri. Outras coisas, depois, o pai mostra. Como a segurar bem alto – firme, que ninguém se molhasse – o guarda-chuva.

 

Ronaldo Bressane é autor, entre outros, do volume de poesias O Impostor (Ciência do Acidente, 2002)