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Herói da nossa gente

 

Macunaíma, obra do modernista Mário de Andrade, revolucionou nossa literatura ao representar a origem multiétnica do brasileiro

 

Macunaíma não tinha caráter, morria de preguiça, era matreiro – e mutreteiro –, branco, negro e índio. E mais: Macunaíma era o Brasil. Para os desavisados que pensam que a personalidade do “herói sem nenhum caráter”, criado pelo modernista Mário de Andrade, revela certo descuido ao descrever a essência do povo brasileiro, segue um aviso: a Mário de Andrade, de forma alguma, faltava cuidado quando o assunto era mapear elementos da identidade do Brasil. Ao contrário, foi essa pesquisa que ocupou boa parte da atividade intelectual do autor. E, por meio dela, Mário descobriu que era hora de “dar uma forma a esse monstro mole e indeciso” que era o Brasil – segundo escreve em uma das cartas destinadas ao poeta Carlos Drummond de Andrade, entre os anos de 1924 e 1925. Viria ainda a reafirmar essa visão num prefácio escrito para a primeira edição de Macunaíma, texto hoje pertencente ao acervodo Instituto de Estudos Brasileiros (IEB), da Universidade de São Paulo (USP): “Depois de pelejar muito, verifiquei uma coisa que me parece certa: o brasileiro não tem caráter”, escreveu Mário. “E com a palavra caráter não determino apenas uma realidade moral, não. (...) O brasileiro não tem caráter porque não possui nem civilização própria nem consciência tradicional.”

As contribuições de Mário de Andrade para a vida cultural do País, no entanto, extrapolam os limites da literatura. Ele foi um dos fundadores do movimento modernista, que revolucionou a produção artística nacional justamente por buscar uma identidade brasileira nas artes. “Na busca de uma síntese do Brasil, Mário de Andrade sempre se preocupou com o debate em relação ao caráter nacional”, explica Milton Lahuerta, doutor em Ciência Política pela USP e palestrante convidado para o evento Na Terra de Macunaíma, realizado pelo Sesc Araraquara e constituído de exposição, mesas-redondas e shows de música. “Não é à toa que Mário define Macunaíma como alguém que não tem nenhum caráter. Essa definição pode nos levar a uma discussão em termos morais, mas pode também suscitar uma reflexão sobre a falta de caráter como a ausência de características definidas.” Segundo Lahuerta, tal reflexão abriu espaço para a própria discussão racial no Brasil. “Gilberto Freyre vai consagrar isso um pouco depois, ao reforçar a idéia de que o Brasil foi formado pelas três raças (branca, negra e índia)”, afirma o professor. “Mário brinca justamente com isso: Macunaíma nasce negro, vira índio, depois branco, depois índio, ou seja, há deliberadamente uma tremenda confusão étnica.” Renato Rocha, primo de Mário de Andrade, convidado do evento do Sesc, também aponta a obstinação do autor em desvendar o Brasil. Era muito jovem na época em que conviveu com ele – tinha apenas 15 anos –, mas percebia o “extraordinário desejo dele [Mário] de ajudar a desvendar características brasileiras que eram diferentes das européias”. Rocha também lembra de uma cena em que o primo mais velho o aconselhou a defender uma escolha de vida: “Certa vez, estávamos, eu e papai, hospedados em casa dele. Eu queria ser agrônomo e papai tinha pavor disso porque tinha sofrido muito com a crise do café. Mário assistiu a uma briga nossa sobre o assunto e me deu o seguinte conselho: ‘Faça da sua vida aquilo que você quer fazer e não aquilo que os outros pretendem que você faça, desde que você acredite no que vai fazer’. Nunca esqueci isso, era um lema de Mário, criar personalidade para que surgisse a força”.

 

Rapsódia brasileira

Macunaíma foi escrito em apenas seis dias, na Chácara de Sapucaia, em Araraquara. “Gastei muito pouca invenção neste poema fácil de escrever (...). Este livro afinal não passa duma antologia do folclore brasileiro”, escreveu Mário sobre o processo. No entanto, vale ressaltar, a obra composta em menos de uma semana é fruto de anos de pesquisa das lendas e mitos indígenas e dos costumes regionais, reunidos durante o contato com a linguagem popular e oral de várias partes do Brasil. “Trata-se, por isso mesmo, de uma rapsódia”, afirma o professor Dácio Antônio de Castro, supervisor do Departamento de Português do Sistema Anglo de Ensino. “Assim os gregos designavam obras, como a Ilíada ou a Odisséia de Homero, que reúnem séculos de narrativas poéticas orais, resumindo as tradições folclóricas de todo um povo.” Lahuerta completa dizendo que Macunaíma tem uma linguagem que, mesmo para hoje, é tida como inovadora. “O personagem ‘sobrevoa’ o Brasil a pé”, afirma. “Os lugares, os animais são todos tirados de sua realidade espacial, ao mesmo tempo em que personagens do século 16 aparecem no século 20. Enfim, é um tempo, também, mítico.”

Outro dado que salta aos olhos em Macunaíma é a preocupação de Mário de Andrade em incluir em seu compêndio tudo o que de fascinante ele havia descoberto em suas pesquisas. Isso explica a abundância de enumerações que podem ser encontradas ao longo da narrativa. Logo na primeira página, por exemplo, diversos estilos de danças tribais são apresentados ao leitor, no trecho que diz: “(...) freqüentava com aplicação a murua a poracê o torê o bacorocô a cucuicogue, todas essas danças religiosas da tribo”. Diversidade impressionante de fauna e flora que, ao contrário do célebre personagem-título, poucos conhecem.

 

No fundo do mato-virgem nasceu Macunaíma...” - Sesc Araraquara reconstitui o nascimento da obra de Mário de Andrade

A exposição Na Terra de Macunaíma (foto), realizada pelo Sesc Araraquara com material do acervo do Instituto de Estudos Brasileiros (IEB), da USP, mostrou o nascimento da obra-marco da literatura modernista, Macunaíma – o Herói sem Nenhum Caráter, de 1928, escrita por Mário de Andrade. A partir do cenário em que ela foi produzida, a Chácara de Sapucaia, em Araraquara – doada à Universidade Estadual de São Paulo (Unesp) –, da seleção do material do IEB e da Biblioteca Pública, cartas de Mário de Andrade enviadas a intelectuais brasileiros – como os poetas Carlos Drummond de Andrade e Manuel Bandeira e o folclorista Luís da Câmara Cascudo –, e de registros das pesquisas feitas pelo escritor sobre lendas brasileiras, o evento buscou reproduzir o ambiente que originou Macunaíma.

Também fizeram parte do evento mesas-redondas com sociólogos, antropólogos e jornalistas. A parte musical – indispensável, se pensarmos que Mário de Andrade foi também um grande musicólogo – marcou presença nas vozes de Beatriz Azevedo, com seu Cabaré Antropofágico, Marlui Miranda, musicista pesquisadora de hábitos e ritmos de índios e seringueiros da região da Amazônia, e Cida Moreyra, que cantou as modinhas brasileiras descobertas pelo autor em suas pesquisas sobre o Brasil. O projeto incluiu também um dia de visita à Chácara de Sapucaia.