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Teatro

A muitas mãos

 

Cada um a seu modo, os grupos encaram as implicações do fazer teatral e o desafio da criação coletiva no século 21

 

De acordo com dados da Cooperativa Paulista de Teatro (CPT), estima-se que existam cerca de 600 grupos de teatro só no estado de São Paulo atualmente. Como se pode deduzir, as opções estéticas são muitas, e os nomes mais conhecidos da cena – entre eles, Os Satyros, Grupo Galpão, Teatro da Vertigem, Cemitério de Automóveis ou CPT – se mostram responsáveis por grande parte da produção teatral brasileira. No entanto, embora os números hoje representem a forte tendência da criação coletiva, esse método de trabalho não é exatamente novo. Ainda que boa parte das trupes date do final dos anos 70 e começo dos 80, a organização em grupo já havia conquistado levas de profissionais ligados ao teatro muito antes disso, seja por questões conceituais, seja por razões financeiras. Um dos primeiros grupos de que se tem notícia, o Teatro Brasileiro de Comédia (TBC), surgiu em meados do século passado, em 1948, fundado pelo italiano Franco Zampari. De lá saíram nomes como Cacilda Becker, Tônia Carrero, Fernanda Montenegro, Paulo Autran e Sérgio Cardoso. O rol de diretores também impressiona: Adolfo Celi, Ruggero Jacobbi, Ziembinski (vindo do grupo carioca Os Comediantes), Maurice Vaneau, e Gianni Ratto. “O TBC era, inicialmente, apenas um espaço para abrigar os grupos amadores”, escreveu o crítico de teatro Sabato Magaldi no canal de teatro do site do Ministério das Relações Exteriores (www.mre.gov.br). “Ao verificar-se a inviabilidade econômica da iniciativa nesse esquema, organizou-se uma companhia profissional, que aproveitou os melhores atores desses grupos.” Ainda segundo o crítico, autor de, entre outros, Panorama do Teatro Brasileiro (Global Editora,1998), a premissa da geração TBC era a implantação de um teatro de equipe, em que todos os envolvidos recebiam o mesmo tratamento.

O TBC não só consolidou uma renovação estética no conceito de espetáculo no Brasil, que antes privilegiava espetáculos humorísticos destacando um ator principal, mas também originou outros grupos, como a Companhia Nydia Lícia/Sérgio Cardoso, a Companhia Tônia/Celi/Autran, o Teatro Cacilda Becker e o Teatro dos Sete. Em sua última fase, já no final dos anos 50, o TBC alterou a própria dinâmica, confiando as encenações aos brasileiros Flávio Rangel e Antunes Filho, e o repertório passou a privilegiar dramaturgos nacionais. Um deles, Gianfrancesco Guarnieri, escreveu Eles Não Usam Black Tie, em 1958, que veio a se tornar um dos grandes sucessos de outro grupo teatral pioneiro na cena brasileira: o Teatro de Arena, fundado em 1953, sob a direção de Augusto Boal.

Ainda no final da primeira metade do século 20, um conjunto de criadores começa a escrever uma nova página da história do teatro em grupo no País. Em 1958, um jovem estudante de direito da Faculdade do Largo São Francisco, José Celso Martinez Corrêa, agita a cena do teatro amador num grupo dentro do Centro Acadêmico XI de Agosto. O impacto é tão forte que três anos depois, em 1961, o agitador abre as portas do Teatro Oficina. O autor, diretor e ator Fauzi Arap relembra a época: “Os grupos existentes então, o Arena e o Oficina, eram caracterizados por um ideal político de transformação do mundo, havia a ilusão de que isso poderia ser conseguido a curto ou médio prazo. Era o que pautava um pouco o repertório deles e a forma de atuação. Além disso, parecia evidente aos grupos que logo uma grande transformação social viria, e eles sentiam a obrigação de verbalizar essa transformação”.

Hoje, quando se observa a quantidade de grupos existentes, é possível dizer que o exemplo do TBC foi o pontapé para o desenvolvimento de diversos processos de criação teatral. “O panorama teatral de forma geral, hoje, nãosó no que diz respeito aos grupos, é muito caótico”, afirma o ator e diretor de teatro Fauzi Arap. “Tenho dificuldade de definir um sistema de leitura do que existe. São muitas cabeças e muitas possibilidades.” Ainda segundo o diretor, a despeito desse “caos”, vale afirmar que o teatro tem muito a ganhar com esse método coletivo de criação. Um benefício que se mostra num comprometimento maior com a qualidade das montagens. “Trata-se de um tipo de atuação que possibilita que o ator não se veja apenas como um objeto, uma peça em um jogo de tabuleiro”, explica Fauzi. “Isso permite que ele possa discutir e pensar realmente em todo o processo. Sem dúvida o trabalho grupal, quando não mascara uma liderança forte, é mais criativo e democrático.”

Mas, se, por um lado, a criatividade e a democracia aparecem como características comuns aos grupos de hoje, por outro, o caos detectado por Fauzi tem muito a ver com o que ele chama de uma “liberdade anárquica”, na qual cada um tem a própria perspectiva e estética, propostas distintas e olhares que ampliam o mosaico. “No Teatro da Vertigem, por exemplo, percebo, pela trilogia inicial [composta dos espetáculos Paraíso Perdido, O Livro de Jó e Apocalipse 1,11], a existência de uma questão religiosa por resolver”, analisa. “Já no caso do Cemitério de Automóveis, como o Mário Bortolotto [dramaturgo, escritor e figura central do grupo] é um autor muito fecundo, mesmo que inúmeras vezes tenha montado textos adaptados de livros de pessoas que ele admira, sinto que o grupo existe em torno da obra dele.”

 

A pesquisa, o homem e sua miséria

Dentre os vários grupos que formam o atual cenário de produções em São Paulo, a Revista E entrevistou os paulistanos Os Satyros, Pia Fraus, Teatro da Vertigem, o CPT de Antunes Filho, o mineiro Grupo Galpão, e o Cemitério de Automóveis, de Mário Bortolotto, surgido em Londrina, no Paraná, com a incumbência de dar resposta à pergunta: por que esses grupos fazem teatro hoje?

Ivam Cabral, fundador de Os Satyros junto com Rodolfo García Vázquez, explica que para o grupo o teatro serve como uma espécie de instrumento de protesto, se não especificamente contra um regime de governo ou o domínio de uma elite pouco responsável, ao menos para alertar o homem contemporâneo de sua condição. “O teatro que nos interessa é aquele que aborda temáticas que servem para a reflexão. Estamos muito voltados a uma experiência crítica do homem e da sociedade.” Como exemplo dessa filosofia, Ivam cita um dos grandes sucessos do grupo, a montagem Filosofia na Alcova, baseada na obra do Marquês de Sade, de 1990. “Vivemos numa sociedade capitalista na qual os valores são detonados a todo instante, e a gente passa por tudo isso e faz de conta que não vê, que não sabe ou não quer saber. Só que, de repente, percebemos que um autor como Sade há mais de 200 anos já falava sobre isso. Por isso ele nos interessa.”

Já o Teatro da Vertigem tem como eixo central a pesquisa e a investigação. “Nós começamos como um grupo de estudos e esse continua sendo o norte do trabalho”, conta Antônio Araújo, diretor da trupe. “Outra coisa que se mantém é o que chamamos de processo colaborativo, no qual a gente cria uma peça na sala de ensaio, sempre convidando um dramaturgo para escrever com a gente. Ou seja, é a partir da relação entre os atores, o dramaturgo e o diretor que se constrói o trabalho.” Por fim, o diretor coloca entre os pilares do trabalho do grupo o desejo de “ocupar” cada vez mais a cidade com seu teatro. Entre outros motivos ligados à concepção de cada peça, esse desejo de dialogar com a metrópole terminou por levar Paraíso Perdido a ser encenada numa igreja católica, O Livro de Jó num hospital e Apocalipse 1,11 num presídio.

Para Antunes Filho, coordenador do Centro de Pesquisa Teatral (CPT), sediado no Sesc Consolação há 22 anos, a pesquisa e a sala de ensaios também formam o núcleo de onde parte toda a criação do CPT. Na evolução da forte marca que o grupo imprime ao teatro desde montagens como Macunaíma (1978), até o mais recente O Canto de Gregório (2004), a criação coletiva ganhou força a partir de 1997 com o início da série Prêt-à-Porter, atualmente na sexta edição, na qual os próprios atores assumem a função de dramaturgos e diretores das cenas. Antunes se insere no trabalho, inclusive nos créditos, como coordenador geral. “Aquilo que você pensava quando era criança, ser artista de teatro, aquele sonho, quando você entra no teatro profissional te leva a procurar um papel, um produtor etc.”, conta Antunes. “Aqui não. Aqui você pode ser sempre criança. É livre. Faça. Quero ver.” O CPT forma seus atores no que se convencionou chamar de método Antunes. Vale dizer que, se por um lado existe a liberdade, por outro é forte o impulso do diretor para atingir um teatro absolutamente particular. “Houve um método Antunes porque eu quis inaugurar um. Precisei disso para poder fazer espetáculos como Medéia. Feita essa parte, posso partir para uma coisa mais fantasiosa. Posso sair desse psicologismo, dessa coisa mais ou menos prosaica e alçar vôos mais estranhos e extravagantes.”

Uns optam pela abordagem político-ideológica, outros usam a fragilidade do homem como fonte de inspiração, e há os que têm como matéria-prima o bem-estar que o ser humano é capaz de conquistar. Arte a serviço da felicidade? Pode ser essa a definição. “A gente está neste mundo para ser feliz, por mais que nossa mente seja um pouco desajustada. Apesar de alguns desejos incompatíveis com a condição humana, como não envelhecer e viver para sempre, sou uma pessoa muito positiva”, conta Beto Andreetta, da Pia Fraus. “É uma das principais razões para eu fazer teatro. Está tão dentro de mim, é a minha maneira de estar no planeta.”

 

Vitrine de novidades - Projeto do Sesc Consolação desempenha a tarefa de reunir grupos, estudiosos e público para discutir as artes cênicas

O Reflexos de Cenas, do Sesc Consolação, lançado em agosto de 2000, tem como idéia promover encontros entre artistas, público, profissionais e estudiosos para refletir sobre as artes cênicas: teatro, dança, dança-teatro e performances. Ao longo desses quatro anos foram mais de 100 encontros, cerca de 160 grupos participantes e um público superior a 7 mil pessoas. A palavra de ordem é observar e discutir a secular prática do fazer teatral.

Para organizar a reflexão foi criado um sistema de trabalho no qual, ao todo, são apresentadas 20 cenas de trabalhos em que o processo de criação, a pesquisa e a metodologia utilizados são discutidos com o público e convidados, com a mediação de profissionais especializados. Em 2002 um novo módulo foi agregado, o Cenografia em Debate, que propõe uma troca de experiência entre profissionais ligados às artes cênicas e o público sem se restringir ao processo criativo. Depois de 100 encontros, Reflexos de Cenas tem boas histórias para lembrar, muitas passagens ilustres para contabilizar e firma-se como um importante capítulo da vida teatral paulistana. Nesses quatro anos, diversas universidades, importantes escolas de teatro e consagrados grupos participaram dos encontros, entre eles a Cia. do Latão, Grupo Lume (foto) e Grupo Tapa. Artistas e diretores internacionais também já marcaram presença, como Jan Ferslev, do Odin Teatret, da Dinamarca. O projeto consagra o Sesc Consolação como um dos mais importantes pólos de teatro de São Paulo. Se a idéia inicial era dar voz a quem produz artes cênicas e ao público, o resultado superou as expectativas: o artista saiu do palco e o público deixou a platéia para se encontrar em outro espaço, um importante “terceiro lugar”.

 

Trombones e ornitorrincos - Não há década perdida para o teatro em grupo brasileiro

As décadas que se seguiram à da criação dos grupos Arena (1953) e Oficina (1961) foram período fértil para outras iniciativas coletivas em teatro. A professora de Artes Cênicas da Escola de Comunicações e Artes (ECA) da USP, Silvia Fernandes, analisa esse período no livro Grupos Teatrais Anos 70 (Editora da Unicamp, 2000): “O espetáculo O que Você Vai Ser Quando Crescer?, que estreou em São Paulo no dia 10 de julho de 1974, trouxe uma característica que se transformaria em tendência no decorrer da década de 70: 'criação coletiva do Royal Bexiga’s Company’, um grupo cooperativo de teatro [formado pelos alunos da Escola de Arte Dramática Jandira Martini, Vicente Tuttoilmondo, Eliana Rocha e Ney Latorraca]”. Ainda segundo a professora, a partir daí outros conjuntos vieram a fazer parte da história do teatro em grupo no País. Entre eles, o Asdrúbal Trouxe o Trombone, de onde saiu toda a “geração TV Pirata” – Regina Casé, Luiz Fernando Guimarães, Patrícia Travassos e Evandro Mesquita, para citar alguns –, o Teatro do Ornitorrinco, que revelou o diretor Cacá Rosset, e o grupo Ventoforte, de Ilo Krugli.

 

Ação entre amigos - Diretores contam como iniciativas amadoras deram origem a grupos profissionais

Foi uma necessidade de se expressar teatralmente.” Assim se refere o dramaturgo e escritor Mário Bortolotto, figura central da trupe do Cemitério de Automóveis, criado em 1982, à origem do grupo: “A gente era um bando de moleques, tinha uma banda de rock e passava o dia na biblioteca lendo muito. A gente queria era se expressar, só. Fazíamos teatro no Grupo da Secretaria de Cultura de Londrina (Paraná), mas os textos que eram encenados não nos agradavam muito. Então a gente fundou um grupo e eu passei a escrever os textos”. Também em 1982, outro grupo entrava em cena, o mineiro Galpão. O embrião surgiu de uma oficina com dois diretores alemães do Teatro Livre de Munique, que vieram ao Brasil passar duas semanas, acabaram ficando três meses e decidiram montar um espetáculo. Nove atores participaram desse processo. No fim da temporada, cinco componentes resolveram continuar o trabalho. “Ação entre amigos” é a maneira como o diretor do grupo, Eduardo Moreira, parodiando o título do filme de Beto Brant de 1998, define os primeiros anos do Galpão. “Sempre fomos muito irmanados, principalmente no começo. Nossa vontade era criar um grupo experimental com a proposta de desenvolver uma linguagem. Nosso núcleo de trabalho é até hoje a montagem de espetáculos, mas o propósito sempre esteve associado à idéia de estudar e isso foi amadurecendo.”

Fundada em 1989, em São Paulo, por Ivam Cabral e Rodolfo García Vázquez, Os Satyros também se originou da necessidade de um teatro “essencialmente experimental”, como define o site do grupo – por mais que Ivam não aprecie o termo. “É muito vago, qualquer coisa é um experimento. Por isso a gente adotou a expressão teatro crítico”, esclarece. “Quando nós começamos a trabalhar, nos interessava muito uma pesquisa que quebrasse com a noção do palco italiano [estilo convencional de palco, no qual a platéia fica de frente para ele]. Dessa forma, começamos com trabalhos que buscavam outra relação entre palco e platéia.” O exame rigoroso também está por trás da criação do Teatro da Vertigem. “Tínhamos o desejo de realizar uma investigação teórica e prática da física clássica, o estudo do movimento a partir desses princípios, fazendo uma ponte com o movimento expressivo do ator”, explica Antônio Araújo, um dos diretores. “Pesquisamos durante alguns meses e, a partir do material desenvolvido, pensamos em construir um espetáculo. Foi aí que a gente começou a montar o que veio a ser o Paraíso Perdido, o primeiro espetáculo do grupo, que marca o início do Vertigem.”

Ainda na década de 80, o encontro de dois criadores num projeto educacional deu início à companhia teatral Pia Fraus. “Eu trabalhava com uma cantora que fazia um trabalho de arte e educação em teatro”, conta Beto Andreetta, idealizador do grupo junto com Beto Lima. “Ela vendeu um projeto de educação para a prefeitura de Belo Horizonte, para trabalhar nas escolas da rede pública. O Beto Lima participou por uma semana, depois eu cheguei, assim nos conhecemos. Um tempo depois disso, foi ele que veio para cá e fizemos O Vaqueiro e o Bicho Frouxo nosso primeiro espetáculo juntos. Na época o nome escolhido para o grupo foi Beto e Beto e Companhia. Tempos depois viramos Pia Fraus.”