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Democratização da cultura

 

Walnice Nogueira Galvão

 

A professora titular de teoria literária da Universidade de São Paulo (USP) Walnice Nogueira Galvão, estudiosa da obra de Guimarães Rosa e Euclides da Cunha – sem deixar de “acompanhar tudo o que está acontecendo na indústria cultural”, como ressalta –, foi a convidada da reunião de pauta da Revista E deste mês e falou sobre os assuntos que atraem seu interesse. Entre eles a forma como o Brasil atua no campo das políticas culturais e qual o papel da literatura – ela deve divertir ou educar? A seguir os melhores trechos da conversa:

 

Tenho me dedicado ao longo dos anos especialmente a Guimarães Rosa e Euclides da Cunha, dois autores que nunca se esgotam. Terminei agora um livro sobre Guimarães Rosa, no qual reuni os ensaios e artigos avulsos que escrevi nos últimos anos. Muito antes, tinha preparado a edição crítica de Os Sertões, que levou nove anos. Nesse tipo de trabalho, uma coisa puxa a outra: pesquisando os jornais que noticiaram a Guerra de Canudos, percebi que não havia ainda uma boa edição do livro. Não tinha a menor intenção de me dedicar a isso e até gostaria que outra pessoa se encarregasse, mas como isso não aconteceu tive de fazer eu mesma. Depois, mexendo com a correspondência de Euclides da Cunha, descobri mais 100 cartas, que juntei ao acervo dele e publiquei. Até aí as iniciativas foram minhas. Então a Companhia das Letras me pediu para preparar uma edição atualizada, com notas e estudo introdutório, contendo as reportagens que Euclides da Cunha mandou para o jornal O Estado de S.Paulo como enviado especial à Guerra de Canudos. No meio disso tudo, fui encarregada por uma editora francesa de preparar a edição crítica de Grande Sertão: Veredas. Para o trabalho, organizei uma equipe de umas 30 pessoas. Está terminado e entregue, mas não saiu até hoje porque houve problemas com os direitos autorais. Entre Guimarães Rosa, Euclides, crítica literária e cultural, tenho 22 livros publicados.

Tenho curiosidade de saber o que se passa fora da esfera da alta cultura, em que esses trabalhos se colocam. Além disso, gosto de escrever também sobre cinema, sobre música popular, sobre exposições. No mês passado tive a sorte de pegar um festival de cinema árabe em Paris, no qual o Iraque foi o país homenageado. Assisti a filmes de vários gêneros, ficções longas, ficções curtas, documentários etc., vindos de todos os países árabes que se possa imaginar. Foi quando percebi que as mulheres árabes dirigem muitos filmes, e, enquanto na maioria dos países a luta pela emancipação feminina se dá por meio da literatura, lá ocorre pelo cinema. Já publiquei vários artigos a respeito. Também escrevi sobre Harry Potter, livros e filmes. Quase tudo é comandado pela curiosidade mesmo, que me faz ler um grande número de best-sellers, só para saber o que os outros estão lendo. Foi assim que li até dois livros de Paulo Coelho.

 

A literatura deve agradar ou educar?

Desde Roma, quando Horácio, no primeiro século da era cristã, disse que a literatura deve ser dulce et utile, até hoje, os estudiosos lidam com esse dilema. O grande álibi de quem escreve para agradar – e da maioria dos programas de televisão, filmes e novelas – é: “nós damos o que eles querem”. Mas o que essas pessoas escondem é que elas não só dão o que “eles querem”, como também moldam o gosto. Por exemplo: Hollywood tem feito cada vez mais filmes que infantilizam o público. Eu posso gostar, mas preciso ter a noção de que o cinema e a literatura devem também me ajudar a entender as coisas complicadas desse mundo que nos cerca, e não só as simples. Quero receber  entretenimento e diversão, mas não só isso: quero também reflexão, raciocínio e discussão. Se você começa a “dar só o que eles querem”, entra no mecanismo de rebaixar as obras cada vez mais. É o contrário da famosa frase de Oswald de Andrade: “Um dia a massa comerá o biscoito fino que eu fabrico”. Ele nunca se dispôs a escrever pior porque era para a massa, pelo contrário. E se eu sou capaz de gostar de Guimarães Rosa, qualquer pessoa também será, basta ter educação para isso. Quem tem filhos sabe, eles não querem ir a exposições e não escutam música clássica, só querem saber de rock. Se você insiste, quando acaba essa fase de gostar de rock para contestar, eles passam a apreciar as coisas às quais foram expostos o tempo todo pelo tipo de educação que receberam. A meu ver a cultura pode “pegar”, mas é um trabalho lento, demorado e implica o processo de democratização. Se não lutarmos para democratizar o acesso à cultura, ela piorará cada vez mais, pois aí está a todo vapor a indústria cultural para canibalizar a cultura e transformar as obras de arte em mercadoria.

Essa tarefa caberia à escola, desde o maternal. Colocar música clássica para os bebês ouvirem, habituando os ouvidos e os olhos a coisas que não sejam diretamente mercenárias. No primário já poderiam mostrar outras obras e discutir se a criança gosta ou não, o que é ou não mercenário, qual o objetivo dessa obra. A escola deveria desempenhar um papel preponderante, mais até do que a família. A empreitada é tão vasta que apenas o Estado – para quem o lucro, ao contrário das empresas, não é o objetivo – poderia comandar o processo.

 

Políticas culturais

Mal se percebe que há uma política cultural brasileira no

exterior. O Ministério das Relações Exteriores importa-se mais com negócios, pouco se interessa por essa área, que é importantíssima. Ao dar cursos em vários países, comecei a perceber que Portugal era muito atuante em matéria de política cultural, sendo que seus professores concorrem na mesma área que nós, literatura brasileira e portuguesa. Portugal tem 10 milhões de habitantes, o país inteiro é menos povoado que a cidade de São Paulo, e mesmo assim  mantém 160 leitorados (professores financiados pelo governo que dão aula durante dois anos no exterior, recebendo em dólar) no mundo todo, enquanto o Brasil tem 40. Essa comparação com Portugal permite avaliar o interesse de nosso País pela cultura. E vejam que não estou comparando com a França ou a Alemanha. Para ingressar na carreira de leitor eles fazem um curso de seis meses e um concurso sério em Lisboa, ao passo que os brasileiros são nomeados não se sabe como. Mas, para falar de políticas culturais, e no País, ninguém melhor do que o próprio Sesc, que há muitos anos efetua um trabalho notável em todos os campos, do mais erudito ao mais popular, e dá uma lição de democracia ao cobrar preços baixos, aumentando a possibilidade de acesso a um número amplo de cidadãos.