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Ficção Inédita
Escola Modelo

O nome igual ao de tantas outras. Modelo, a escola em seus portões, na bandeirola esvoaçante que ladeava a outra bandeira, esta verde e amarela com estrelas no céu de anil e uma frágil exortação. Cerimônia de hasteamento todos os dias, e só assim parecia justificar-se a existência de um símbolo cívico num lugarzinho entranhado no esquecimento como aquele. A Escola Modelo era casinha branca e azul, com um largo pátio coberto servindo para recreação, jogos, festividades. Todas as crianças estudavam ali. Era a única escola. Entre uma e outra curvas da serra, onde os invernos castigavam, brotava a cidade, e na denominação cabia muito folgada, lugarejo, povoado subalterno, afastado das coisas urbanas dignas desse nome. Ruas nem bem calçadas, as principais forradas de paralelepípedos. Os caminhos que levavam à escola vinham bem-cuidados, com gerânios nos canteiros, mas as chuvas faziam ali um verdadeiro estrago. Ia-se, seguia-se o tempo sem outra intenção, a gente dali diariamente diminuta, miúda, diariamente diária. Luisinho já fazia dois anos de estudante e aprendera as primeiras letras, orgulho do pai lavrador que só sabia assinar seu nome, o a maiúsculo arredondado, inchado, Avelino, e o resto mais fluente, de Jesus. A curva do s era indisciplinada, mas compreendia-se a intenção. Tinha construído a casinha de três cômodos num mutirão, para os lados da Derrubada, e a mulher agora tranqüilamente engravidava feito relógio, sem tempo perdido. Mas Luisinho tinha sido o primeiro. Agora em fevereiro começava novo ano letivo, o sol abrasava durante o dia, mas as crianças vinham cedo, cantavam o Hino Nacional sob a sombra de um enorme ipê que crescia no quintal vizinho, e tocavam para as salas de aula. Luisinho era aluno de 1ª série, cheio de si, vidrando os olhos no mapa do Brasil que pendia da parede feito um ímã. Conhecer tantos lugares! Este onde vivemos nem se acha no mapa, só se sabe estar aqui, neste cor-de-rosa. E nós, menores que o visível, entre casas pobres e ruas e lavouras, acreditando ser um pouquinho. Mas, a professora dizia, é de pouquinhos como este aqui que se faz o mapa do país. A gente é muito, feito pedra em alicerce. A professora dizia, no primeiro dia de aula. E dos olhos de Luisinho pouco a pouco se descolava aquela impossível grandeza, Rio Oiapoque e Lagoa dos Patos, Rio Javari ao Arquipélago de Fernando de Noronha, ali ladeando uns nomes esquisitos, Rio Courantyne, Rio Putumayo, lá na pontinha aquele engraçado de Chuí. Reparou no jeito de gesticular, na forma de falar, no arredondado de dizer dooois, a professora - tinha chegado de fora, ela contava, e esperava que os alunos lhe contassem as belezas daquele lugar, que ela tinha muita vontade de conhecer. De onde veio? Ah, imaginem só, do Rio de Janeiro. E todos assombrados: do mar? Da praia? Ninguém compreendia. Veio por quê? Ela dava de ombros. Viram o Rio de Janeiro pela televisão, alguns parentes também contavam, as belezas eram tantas, as ondas derrubando-se nas praias, aqueles morros acesos à noite, faróis e luzinhas, a imagem de Jesus Cristo de um tamanho maior do que se acredita. Bem no alto mais alto de uma montanha. O Rio de Janeiro estava sublinhado importante no mapa. Uma nuvenzinha de tristeza correu o céu, foi em favor da professora, que logo pediu que se abrissem livros e cadernos de gramática. Mas a idéia não largou Luisinho, a idéia das mãos firmes bem-cuidadas da professora - e reparou: como é bonita. No outro ano a dona Firmina da alfabetização era uma chata, vivia o tempo a ralhar, a querer diferentes as coisas. E agora esta magrinha e moça, esta suave dona Margarida, um olhar esverdeado e comprido, lá longe. Luisinho teve vontade de segurar suas mãos. Achou a professora com jeito de quem estava no lugar errado. E desenhava uma florzinha no canto da página, simbolizando: dona Margarida. Tiveram aulas de português. História. Matemática, complicado demais. Meio-dia, estômagos reclamando e a gente lembrando da mãe em casa e do almoço na mesa. Todos correndo depois da campainha, fim, primeiro dia de aula, desabalados, alegres. Pensando bem, é barata a alegria - modéstia de existir pequenino, qualquer botão de flor um furacão. Em grupos de três ou quatro as meninas iam faceiras, mais calmas e jeitosas, reparando aqui e ali, trocando histórias curtas de pé-de-ouvido. Na sala de aula vazia ficava um vazio maior, a professora dona Margarida filtrando um pouco do mundo (tão pouco) pela janela entreaberta, a rua de chão onde as crianças, a serra verde e pedra se acabando acolá. As bandeirinhas estremecendo, o sol excitando as cigarras que azucrinam. Fosse Luisinho um narrador de história, com a ciência de cada coração, confirmaria - a dona Margarida lembrava-se de um cantinho de floresta que se via de uma outra janela, no bairro longe do Jardim Botânico, naquela sua cidade anterior imensa do Rio de Janeiro. Misteriosa, inventava uma lágrima que se desfazia num sorriso de pensar: bobagens, o que passou, passou, não adianta chorar outra vez as mesmas lágrimas. Com essa idéia apanhou a bolsa na mesa, recolheu os livros e trancou-os no armário, apagou o giz do quadro-negro. Luisinho cismou o dia naquilo. O mistério do outro. Que será que essa moça chora fingindo que ri? Teimou apaixonado que não haveria de esquecer o rosto ovalado e os olhos verdes, até reparou que a boca era assim comum, nem grande, nem pequena, e guardou-a consigo na memória. Na capa do caderno de matemática, que agora apanhava para a lição, um beija-flor se congelava na fotografia. As asas multicores, tudo são, podem ser, tons do verde dos olhos dela. Mas vêm as contas, a aritmética. E o Rio de Janeiro, hem? Ela veio de lá. Possível que tenha nascido lá, e veio bater neste esquecimento - vai ver, por isso mesmo de esquecer. Quem sabe veio fugindo de pensamentos. Vinte e sete menos dezoito. A continha armada, algarismo sob algarismo, aqui as dezenas - a primeira de nome Margarida que aparece cá para estes lados. Dizendo dooois assim sonoro, redondo, ressoando uma lua inteira no coração de quem ouviu. A semana passou exata. Um pouco de chuva na quinta-feira, foi tudo, o céu voltou a se animar e secou as poças que haviam sobrado. A cidadezinha só falava da professora dona Margarida. Chegara coisa de três ou quatro dias antes do começo das aulas para ajeitar o lugar onde ia morar: uma casa bonita, de propriedade do seu Vitalino. Alugou. E veio sozinha, sem família e sem companhia, moça independente, foi logo conhecer as poucas lojas, o mercado, as quitandas. E depois quis conhecer a Igreja de Nossa Senhora do Rosário - isso tudo a gente já sabia bem, detalhes mesmo, as roupas boas que usava a Margarida, sapatos de pisar chão encerado. Finda a primeira semana de trabalho, resolveu-se pelo sol, sempre sozinha foi vista a tomar os lados do Rio Pequeno, cabelos presos, toalha a tiracolo. As mulheres e os homens curiosos em vê-la em seus trajes de banho, por motivos distintos. Luisinho bandeou-se para lá com os amigos: a professora foi tomar banho de rio! Devagar, a professora dona Margarida escolheu um remanso, numa curva em que o rio se fazia um tanto mais fundo, e revelou-se num maiô branco inteiro. Luisinho disse a si mesmo - sereia, e não sabia que aquilo eram requintes de poesia. A beleza redundava no segredo. Segredo, havia algum. Margarida apanhou uma pedrinha da beirada d’água e estudou, estudou, tristeza sem lógica, a moça era o antípoda do resto. Tudo sorria, menos ela. Sentou-se sobre uma pedra maior, com os pés mergulhados no raso, e o rosto caiu-lhe entre as mãos em concha. Foi-se o primeiro mês, escondendo em seus recantos a solidão de alguns, enaltecendo o que de resto cabe ser enaltecido, manhãs douradas, tardes vermelhas, revoadas de cada cor que se pense - os pássaros em suas reuniões imensas. Ouviam-se notícias do Rio de Janeiro no noticiário da TV, no dia seguinte eram comentários: dona Margarida, soube? E ela, misteriosa, apenas dizia que sim, é mesmo, muitas chuvas por lá. Enchentes, o povo transtornado, gente perdendo suas casas e pertences, gente perdendo até a vida, rebocada pelas águas imundas. E Margarida no pequeno de suas aulas diárias, geografia, ciências. Arranjara umas botas de borracha para os dias de chuva, mas o sapato vinha numa sacola e era trocado assim que os pés pisavam o seco da escola. De resto, estava sempre tão só. Mas, como era fácil a novidade do sonho, Luisinho passava as aulas decorando, examinando, aprendendo, analisando o sorriso que ela distribuía por hábito, mas que não escondia a tristeza por baixo. Até que ele decidiu: isso é forma de cada um ser. A professora é triste, acabou-se, não tem discussão, e sendo triste ela é talvez até um pouco feliz, mesmo que de uma felicidade ao contrário. Foi o que ele concluiu, mas agarrou-se num resto de dúvida - será? E foram-se o segundo e o terceiro mês. Maio já terminava, delicioso, de frios e calores ligeiros, e era dia de segunda-feira. Uma inquietude com sabor de véspera de tempestade arrancara Luisinho da cama antes da hora, sobressaltado. Ele se vestiu para a escola quando o sol ainda não esquentara seus dedos, seus braços, e quis uma xícara de café. Preto. Foi, esperando, caminhando de olhos abertos a fim de não perder a novidade - qual novidade? Ele se perguntava. Foi pela rua ainda muito cedo, ali adiante na casa do colega convidaram-no para entrar, recusou num gesto, as sobrancelhas franzidas. Ia algo aborrecido, contrariado, e duas vezes, uma por estar, outra por não compreender. Fez hora caminhando sem sentido até o outro lado da cidade e depois até o Rio Pequeno, quis atirar longe uma pedra maior e não pôde com ela, xingou e arrependeu-se. Cheio de raiva por coisa nenhuma. Mas finalmente era hora da aula. O pátio da escola ainda estava vazio, Luisinho tinha de esperar pela chatice do Hino Nacional, mas isso todos os dias! Impaciente, balançava as pernas curtas no banco, assoviava qualquer coisa. As crianças vinham chegando, duas, três, dez, logo o pátio transformou-se cheio de risos e gritinhos, o vozerio agudo, mas Luisinho, carrancudo, nem queria conversa. Lá na esquina viu o passo resolvido da professora dona Margarida. Vindo, de calças cor de café-com-leite e camisa branca, os cabelos soltos, a bolsa a tiracolo, uma pasta sob o braço esquerdo. O ventinho manso jogando as mechas para lá, para cá. No portão esperavam-na outras professoras, dona Glória da 2ª série, dona Amélia da 4ª. Luisinho espiava, muito contrariado, remoendo no peito uma dor esquentada e sem nome. Enfim, as professoras alinharam em filas suas turmas, por ordem de tamanho. Ouviram do Ipiranga às margens plácidas. Luisinho ainda se embaralhava naquela poesia complicada. Umas palavras! Plácidas. Brado retumbante. Dona Margarida explicava, explicava o significado, mas Luisinho não tinha jeito de lembrar. Foi então que ele chegou. Fulguras, ó Brasil, florão da América, da mesma esquina apareceu, como seguisse os passos da Margarida. Iluminado ao sol do Novo Mundo. Margarida, de costas, não podia ver, mas as sílabas começaram a morrer em seus lábios, como se ela própria esquecesse o hino. Num espanto, virou-se e viu. Entre outras mil, és tu, Brasil, ele usava uns óculos escuros, que tirou, e ao mesmo tempo parava, a poucos passos do portão. Aí Margarida foi segurar as mãos dele, e o sol súbito brilhou num cantinho de lágrima que só Luisinho viu, lá de seu lugar na fila. Não se ouviu mais dela. Uma semana depois, dona Eulália assumiu a turma da 1ª série primária, e Luisinho a olhar o mapa cor-de-rosa e amarelo, verde e marrom, uns nomes de São Félix do Xingu, Aruanã, Santo Antônio do Içá, Santana do Livramento - ali, adormecido, revisitando às vezes a idéia do mundo no pequeno de um sonho qualquer.

Adriana Lisboa é autora, entre outros livros, de Um Beijo de Colombina (Rocco, 2003)