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Comportamento
Intelectual pop

Ele discorre sobre a Guerra do Iraque, o desempenho da equipe brasileira nas Olimpíadas e Michael Jackson com a desenvoltura do especialista em cada um desses assuntos. O psicanalista Contardo Calligaris adora o consultório e tem uma bem-sucedida carreira acadêmica, mas está longe do tipo intelectual de gabinete. Quer mesmo é falar sobre tudo. Nem por isso se aplica a ele aquela máxima de que quem fala sobre muita coisa, na verdade, sabe quase nada. O ponto de intersecção entre cada um dos mais diferentes assuntos abordados em sua coluna semanal no jornal Folha de S.Paulo ou o que discute nas inúmeras palestras e aulas que dá mundo afora é o olhar de terapeuta. “A psicanálise é minha especialidade”, diz. Seu objeto de estudo é basicamente o comportamento do homem contemporâneo, esteja ele no caderno de política, de esportes ou de cultura. Prestes a lançar seu oitavo livro, Cartas a um Jovem Terapeuta (Editora Campus), Contardo Calligaris concedeu depoimento exclusivo à Revista E. A seguir, os principais trechos.

“Tornei-me um cidadão do mundo por puro engano [risos]. Pode parecer um pouco ridículo, mas, se eu fosse dar um conselho para as pessoas, seria que vivessem onde nasceram. Eu deveria ter vivido em Milão, porque nasci lá. Teria, mesmo assim, tido sorte; pois, apesar de não se tratar de uma das cidades mais interessantes, é um lugar com muita vida cultural, animado e no coração da Europa. Seria provavelmente mais complicado se tivesse nascido em um vilarejo rural. A única boa razão para viver em um lugar é justamente a de se ter nascido nele. Nesse caso, não há dúvidas. Uma pessoa que nasceu em São Paulo vive aqui, não precisa de muitas explicações. Qualquer movimento migratório é de alguma forma potencialmente sem fim, porque sempre se viaja atrás de um sonho que, obviamente, nunca se realiza, porque é da própria natureza da fantasia ela não se realizar. Assim, não há por que a viagem parar. Quem sai de onde nasceu é exilado para sempre, não existe um porto definitivo, apenas uma série de destinos possíveis. Quem sai de sua cidade ou país se condena também a uma saudade permanente, não apenas do lugar de onde saiu inicialmente - isso se resolveria voltando para casa -, mas também do último local em que viveu. Esse sentimento é garantido, fatídico e permanente - e pode se multiplicar, pois é possível sentir saudade de muitos lugares.


Desconforto
Era especialmente desconfortável ser italiano no pós-guerra, ainda mais filho de resistente, que era contra aquilo que tinha se estabelecido, mas não era comunista, o grande sonho da maioria dos que queriam estabelecer outra coisa. Portanto, eu me sentia completamente sem lugar. Não podia dizer que tinha perdido a guerra, porque quem a perdeu foram os fascistas, nem que havia ganhado, porque os vencedores eram os americanos e ingleses. Não fazia verdadeiramente parte do grande projeto político do momento, que foi abortado, mas que era o comunista. Eu sentia um grande desconforto em relação a minha identidade nacional. Não no sentido de querer negar, me sentia identificado por muitas coisas com a cultura italiana, mas tinha dificuldade de convivência com as circunstâncias do país. Nos anos 50 e 60 começa literalmente a época do milagre italiano e foi um momento de extrema vulgaridade nacional; quero dizer com isso que foi o momento em que triunfaram os valores mais estupidamente materialistas, e isso me causava grande antipatia. Certamente tudo influenciou minha saída de casa cedo. Então me apaixonei por uma canadense que vivia na Inglaterra, fui passar o verão lá e não voltei. Meu pai me trouxe de volta, mas 15 dias depois juntei dinheiro para comprar uma passagem de trem, não até Londres, o que era muito caro, mas para Genebra, onde nos encontramos. Voltei a Milão no ano seguinte para terminar o colegial. Assim que acabei os estudos, comecei a trabalhar. Fui para Roma, atrás também de uma outra paixão e lá comecei traduzindo romances policiais do inglês para o italiano e depois virei fotógrafo. Só que meus pais queriam que eu voltasse a estudar. Mas eu estava casado e ela era uma modelo norte-americana de bastante sucesso, ganhava muito bem, já naquela época. Eu não podia continuar vivendo com ela, sendo sustentado pelo meu pai. A condição que impus para cursar a faculdade foi estudar fora. Assim me matriculei na universidade em Genebra [Suíça], que não era muito longe. A única razão para eu escolher Genebra foi ter sido lá o lugar onde me encontrei com a minha namorada canadense, quando fugi de casa. Não havia outro motivo! Eu não tinha a menor idéia de como seria a universidade em Genebra. Dei sorte, foram anos maravilhosos, com professores inesquecíveis. Lá fiz duas graduações, filosofia e psicologia. Depois de ter terminado comecei a trabalhar como professor e foi então que, no meio disso, decidi que estava na hora de fazer uma análise. Nunca havia feito terapia e achei que aquele era o momento. Encontrei um terapeuta em Paris. Passei a viver três dias em Genebra e quatro em Paris. A psicanálise acabou me interessando cada vez mais e, então, tive de optar entre continuar seguindo uma carreira acadêmica ou ingressar na psicanálise de outra forma. Casei com uma francesa, tivemos um filho e fiquei em Paris por cerca de 20 anos, quando comecei a sentir uma enorme insatisfação com a cidade. Foi quando o Brasil entrou na minha vida, e completamente por acaso. Eu tinha publicado um livro sobre psicanálise e havia uma tradução brasileira. Então fui convidado a fazer conferências na Argentina e no sul do Brasil. Começaram a surgir mais e mais convites, e acabei me estabelecendo aqui no fim dos anos 80, quando casei com Eliana, minha atual mulher. O Brasil me atraiu em vários sentidos. As platéias brasileiras eram muito interessantes e era muito atraente a idéia de sair da Europa e viver em uma das Américas. Sinto-me muito mais americano - pela história do continente como um todo - do que europeu. Hoje vivo entre Nova York e São Paulo, mas cada vez mais minha vida vem sendo estabelecida aqui. Depois de ter rodado e aportado em várias cidades do mundo, me dou conta de que é aqui onde estou demorando por mais tempo.


O mundo pela psicanálise
Com a coluna que publico semanalmente na Folha de S.Paulo, acabo escrevendo sobre uma variedade de assuntos, como observador do mundo contemporâneo. Mas o vasto repertório não significa que eu não seja especialista em nada. Sou psicanalista e tudo que escrevo e observo tem essa veia. A psicanálise não se restringe ao próprio mundo e eu evito ficar limitado por ele. Procuro, por meio dos textos, desatar os nós, desconstruir os fatos e analisar as muitas facetas dos acontecimentos. Se, depois de fazer isso por anos, tenho uma visão otimista ou pessimista do mundo? Nem uma, nem outra. Sou um apaixonado. O valor da vida está justamente em nossas experiências, na intensidade das emoções que elas nos despertam, sejam ou boas ou ruins. Se perco alguém querido, quero viver o luto. Se me sinto bem, quero desfrutar esse prazer. Cada experiência forma a nossa história, é o que forma o ser humano, por isso só não vale essa ditadura da anestesia, que procura evitar o tempo todo o contato com tudo que há de profundidade no ser humano, seja alegre, seja triste.”