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Entrevista
Marília Pêra

A atriz fala das mulheres incríveis que levou para o palco, como a estilista francesa Gabrielle “Coco” Chanel, e confirma a volta às novelas

Quando Marília Pêra sobe ao palco do Teatro Faap para interpretar a estilista francesa que inventou o tailleur, contribuiu para a liberação feminina e virou mito, o público atônito vê se descortinar um mundo extraordinário e glamouroso. A atriz desfila imponente e dispara, com voz grave, os controversos e, por vezes, arrogantes pontos de vista da personagem sobre a vida, o papel da mulher e a utilidade dos homens. Porém, vale destacar, a figura atrevida do palco é Chanel. A diva, que coleciona atuações antológicas, como sua Carmen Miranda ou Dalva de Oliveira, na vida real opta pela discrição: “Gosto de observar as pessoas, e é preciso estar discreta para isso”, conta. Ela diz se sentir confortável em poder tomar café em boteco e ir ao supermercado e garante que não procura ser brilhante quando está em público. “Em geral não tenho nada a dizer”, revela. “Fico do lado de atores e diretores muito elegantes e inteligentes, mas sou calada, quase tímida.” Nesta entrevista exclusiva concedida à Revista E, no camarim, enquanto se preparava para encenar Mademoiselle Chanel mais uma vez, a estrela falou sobre fama, liberação sexual das mulheres e, claro, sobre televisão e teatro.


O que a atraiu a fazer uma peça com uma personagem como Coco Chanel? Trata-se de uma ligação da Marília atriz com a questão da moda ou é porque Chanel foi uma mulher ativa e importante no contexto das conquistas femininas?
Eu nunca pensei em fazer Chanel, não imaginava. Na verdade nem a conhecia muito bem. A peça estava nas mãos da Fernanda Montenegro há muitos anos e eu não tinha me interessado. Depois fiquei sabendo que Maria Adelaide Amaral escreveu essa peça sobre Chanel havia 14 anos, um texto que passou também pelas mãos de Tônia Carrero e Irene Ravache. Mas nunca imaginei fazer. Acontece que há um ano e meio recebi o telefonema de um autor brasileiro que mora nos Estados Unidos falando sobre um texto de que eu iria gostar muito. Fui encontrá-lo e ele disse que era sobre Chanel. Disse a ele que não poderia fazer porque Maria Adelaide tinha escrito um texto sobre ela, e tudo mais. Ele lamentou e disse que gostaria muito que eu fizesse. Enfim, fiquei com o texto na mão, mas falei que não adiantaria ler, já que não poderia ser feito. Tempos depois, conversando com um amigo, contei esta história para ele, que me perguntou como estava a peça da Maria Adelaide, e eu não sabia. Ele ligou para ela e descobriu que a Fernanda não iria mais fazer, daí voltou a me procurar e me perguntou por que eu não faria a peça. Ele trouxe o texto para eu ler e eu devolvi o do outro autor. Quando li o texto da Maria Adelaide percebi que era a cara do Jorge Takla [diretor do espetáculo]. Foi total acaso. Depois, lendo Chanel, interpretando, estudando, vejo que ela é muito diferente do que eu já fiz na minha vida, é uma mulher mais dura, forte e determinada, quase morreu muitas vezes, foi rejeitada pela família, perseguida e sobreviveu. Ele é uma pessoa muito diferente da Carmen Miranda e da Dalva de Oliveira [personalidades interpretadas por Marília em outros espetáculos], que eram mais delicadas, sucumbiram aos 50 e poucos anos e morreram. Chamo a Chanel de touro bravo, uma de minhas filhas disse que eu pareço um bicho quando entro em cena. É a Chanel, ela tem isso diferente de mim, estou aprendendo com ela a ser um pouco mais forte.

Existe algo que una esse elenco de mulheres que você já levou para o palco?
Todas eram geniais, cada uma em seu estilo. Além delas eu colocaria a Elis Regina, é a primeira em que eu penso. São mulheres revolucionárias que mudaram o comportamento do Brasil ou do mundo. A Chanel modificou a mulher até sexualmente. A mulher era toda reprimida com espartilhos e vários panos, e Chanel cria uma mulher mais livre e sensual. Todas elas arriscaram a vida, deram saltos mortais sem rede.


Chanel se ligou a um nazista em determinado momento de sua vida. Isso aparece na peça?
Aparece. Não dá para falar tudo sobre a peça porque ela dura uma hora e vinte. Um monólogo, as meninas apenas desfilam, é puxadíssimo. Fala-se um pouco de tudo. É impressionante porque ela teve muitos homens e fala-se desse (do nazista). Nós nunca saberemos a verdade desses fatos. Como ela foi uma mulher que fez um sucesso extraordinário - realmente a primeira estilista do mundo -, imagine a quantidade de inveja que havia em volta. Como ela se relacionou também com um oficial alemão, muitas pessoas quiseram que essa passagem fosse marcada na história dela, o relacionamento com um nazista. Alguns falam que ela própria foi nazista. Não posso defender nem acusar, eu não sei. O que sei é que ela teve muitos homens e, me parece, casos com mulheres também. Ela ia para a cama com quem a encantasse. Era muito viva, não sei se teria necessidade de ser oportunista durante a guerra. Mas duvido da história, que, em geral, é contada pelos vencedores e pela imprensa. A verdade é a verdade de cada um.


É também nessa contradição que está a riqueza de uma personagem, não? Por exemplo, a vida de um monge deve ser inconveniente para a dramaturgia.
Não sei... Que caminhos essa pessoa traçou até ser um monge? Quais são seus pensamentos? Todo gênio é contraditório e aberto para o mundo, é difícil julgar ou defender as pessoas. Carmen Miranda quase foi assassinada porque fez sucesso nos Estados Unidos, na primeira vez em que ela veio ao Brasil foi vaiada, diziam que ela havia se vendido aos norte-americanos. Quando a Dalva se separou do Herivelto Martins, tinha dois filhos e muitos amantes, e foi tachada como uma vagabunda que não tinha apreço pelos filhos. A opinião pública morre de inveja e quer matar aquela pessoa. A Chanel resistiu, voltou aos 71 anos, reabriu a Maison Chanel, falaram mal dela, mas fez grande sucesso até os 88 anos. Conseguiu driblar o destino trágico de uma época em que se a mulher fosse sexualmente liberada era apedrejada até a morte. Chanel escapou.

Por meio da moda, Chanel ajudou na questão da sexualidade feminina. Pode-se dizer que, hoje, o mundo vulgarizou isso?
É difícil. A minha geração foi a que liberou [a mulher], mas vejo as mulheres de minha idade, ou mais jovens, que querem simplesmente se relacionar com um homem e amar. A mulher tem a necessidade de dizer que pode, que também tem o direito, é o caminho para a mulher ser mais feliz sexualmente. E, no amor, a sexualidade feminina é muito diferente da masculina. Às vezes a mulher precisa se expor um pouco para ser mais feliz sexualmente...


Já ouvi pessoas dizerem que no espetáculo você não interpreta Chanel, mas sim a encarna. Isso para você é um elogio?
Eu tenho a emoção muito à flor da pele e isso me deixava bastante frágil, eu perdia a voz, me machucava, chorava. Fui aprendendo a ser mais racional, a utilizar a técnica, a respiração. Enfim, a desenvolver um trabalho mais intelectual para me proteger. O meu trabalho não é uma incorporação, evidentemente meu coração está sempre ali batendo e chega antes de mim, mas eu sei o que estou fazendo, em nenhum momento estou possuída ou incorporada em cena. É tudo extremamente racional, embora minha emoção seja violentíssima. Mademoiselle Chanel gostava sempre que alguém estivesse apaixonado por ela, tinha algo de sedução. Ouvir que é uma incorporação é um elogio, mas não é, e a cada dia eu retiro e acrescento algo em relação a isso, um trabalho emocional. Há uma disciplina. Quando fiz a Carmen Miranda buscava aquelas mãos e os olhos. Sem querer você pode cair em uma imitação, mas buscava captar a alma e a humanidade dela a partir de meu jeito de ver o que estava lá. A irmã de Carmen me dizia que eu não me parecia com a ela, mas era ela. Eu também não me parecia com Dalva de Oliveira, mas me tornava parecida, não tenho nada da Chanel, mas, igualmente agora, passo essa impressão. Pode ser pela dedicação, pelo estudo e pela pesquisa, mas tenho meu ponto de vista e ele é mutante como o teatro. Eu inventei uma postura para ela, que, às vezes, questiono, retiro e volto a colocar. Existem poucas imagens em movimento de Coco Chanel. Passei a andar como as modelos que ela ensinou a desfilar, e dizem que é igual. Mas não vi nenhuma foto dela, é uma autoridade que o ator vai ganhando com o tempo de dar a sua impressão, e isso fica muito difícil quando o personagem realmente existiu.

Essa impressão você aprimora com o tempo?
Eu estudei muitos anos para ser bailarina, me sustentei muitos anos assim. Como trabalhei bastante com dança, aprendi a observar a coreografia, decorar a forma. Antes de fazer qualquer personagem, fico sabendo tudo sobre a vida daquela pessoa, mas preciso saber principalmente como ela anda, fala, gesticula, canta, enfim, o desenho dela. Trabalho muito com a forma, o desenho para mim é fundamental. Assim como a voz. Chanel me pediu um tom mais grave, com Carmen e Dalva era mais agudo. Esses detalhes são importantes para qualquer ator, mas a maioria se preocupa mais com o que eu chamo de recheio, o que está dentro, eu crio a forma e depois vou jogando o recheio.


Você acha que é acumulação? Existe, por exemplo, um pouco de Dalva ou Carmen na Chanel?

Digo sempre que Juliana [personagem vivida por Marília na minissérie O Primo Basílio, da TV Globo, de 1988, adaptada por Gilberto Braga do livro homônimo de Eça de Queiroz] é prima de Perpétua [do filme Tieta, de 1996, dirigido por Cacá Diegues e adaptado do livro de Jorge Amado Tieta do Agreste]. Fica difícil separar completamente. A diferença é que Perpétua foi casada e teve filhos, e Juliana nunca teve um homem. Mas elas são muito próximas. Eu sou muito crítica me observando. Carmen Miranda não tem nada a ver com Dalva de Oliveira, mas Carmen e Chanel têm um ego em comum - apesar de Carmen ter o coração mais fraco e a alma mais delicada. Quando se chega à idade em que eu cheguei é preciso cuidado. Com o tempo que eu tenho de profissão é difícil não repetir o que você já fez, tem de ficar atenta para não fazer o mesmo personagem a vida inteira. Mas é impossível fugir totalmente porque sou eu. Eu tento compor os personagens, sou muito inquieta, uma rotina em geral me incomoda, fico entediada. Tenho uma profissão privilegiada porque posso fingir que sou muitos personagens, posso ficar brincando de ser outras pessoas porque sei que sou a mesma até no palco. Em um jantar ou uma festa eu não sou brilhante, em geral não tenho nada para dizer, fico do lado de atores e diretores muito elegantes e inteligentes, mas sou calada, quase tímida, essa é a “Marilinha”.


Existe o lado complicado de estar na mídia? Você sai normalmente para tomar um café na esquina?
Saio, porque eu faço pouca televisão. Agora vou fazer uma novela [na Globo, no horário das 19 horas] e as pessoas vão me reconhecer, mas quando se faz uma carreira mais no teatro ou cinema as pessoas demoram para reconhecer você. Vim em um vôo hoje com a Regina Duarte e o Marcos Caruso, as pessoas vinham correndo para tirar fotos com a Regina e só depois olhavam para mim e diziam: “Ah, você também...”. Isso porque ela é muito conhecida pela televisão. Ando por todos os lugares, tomo café em boteco, vou ao supermercado, gosto de andar pelas ruas. Outro dia estava procurando um apartamento para minha filha e um rapaz falou: “Oi, Maria Pêra”. Eu não dei atenção e uma moça corrigiu: “É a Marília Pêra”. Mas foram apenas duas pessoas, e eu devo ter passado por umas 5 mil. Teve uma moça que contou que havia visto em uma entrevista que uma vez eu tinha sido confundida com a Fernanda Montenegro na rua. Ela disse que não se enganava de musa... era uma mulher engraçada.


Você acaba conseguindo retirar dessa, digamos, convivência popular alguns elementos para compor personagens?
A observação sempre está ligada em tudo, até quando estou aqui dando esta entrevista. Pelo olhar ou pela voz as pessoas podem me reconhecer. Mas se eu puder estar incógnita, prestando atenção, isso é para mim um exercício de vida muito mais prazeroso. Gosto de observar as pessoas, e é preciso estar discreta para isso.


Qual personagem no universo teatral você gostaria de fazer e ainda não fez?
Há vários que eu gostaria de ter vivido e não vivi. Alguns deles não dá mais. Por exemplo, tenho paixão por Yerma, de García Lorca, mas agora não tenho mais idade para fazer. Há muitos outros que, às vezes, nem conheço, o teatro é um veículo muito dadivoso, você pode ir envelhecendo e continuando. Existe sempre um personagem interessante que você pode interpretar, a memória, voz e capacidade de interpretação têm de estar bem. Mas é muito mais dadivoso que o cinema ou a televisão. Na TV você tem de estar lindinha ou você se torna aquela velha engraçada. Agora eu vou fazer uma personagem que se chama Vó Doidona com o Luís Gustavo, que será o Vô Doidão, um casal hippie. Tudo isso tira o compromisso de estar lindinha.


Você faz ginástica?
Faço. Sempre estou caminhando, fazendo dança, ioga, meditação. Estando em cena tenho de apoiar meu corpo em alguma forma de exercício para manter o ritmo, é um veículo dadivoso, mas que exige muito. Vamos ficando mais velhos e não dá para nada muito atlético, a coluna dói [risos]. Mas o exercício é necessário, teatro não é para qualquer um.


O que gera alimento para o próprio teatro? Observação, leitura?
É observação, leitura, música, dança, pessoas e estar aberta para ouvir. A minha manicure foi ontem à minha casa e me contou tantas coisas... Ter os olhos abertos para o que está em volta é importante. Além da imaginação.


Qual personagem foi o maior desafio, aquele que a levou à extrema perfeição?
Extrema eu não diria, porque sou muito crítica para isso. Mas acho que Chanel é a minha personagem mais difícil. Houve uma época em que eu achava que era a Dona Margarida, de Apareceu a Margarida, um monólogo que fiz. Mas Chanel é mais complicado. Adorei vários trabalhos. Em A Vida Escrachada de Joana Martini e Baby Stompanato eu era uma vedete, amei fazer. Fala Baixo, Senão Eu Grito, da Leilah Assumpção, também gostei muitíssimo. Fazer Dalva de Oliveira e Carmen Miranda; a Sueli, de Pixote, fiquei muito feliz com o resultado. O diretor é muito importante, um mau diretor pode atrapalhar fundamentalmente o ator, assim como um bom diretor é muito confortável - isso aconteceu em Chanel com o Jorge Takla.