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Êxtase violento

"Baratinadas!”. Essa foi a palavra que o cineasta Rogério Sganzerla usou para resumir o estado de espírito com o qual gostaria que as pessoas saíssem do cinema depois de assistir a O Signo do Caos (2003), última de suas criações e que tem estréia prevista para setembro. O termo também foi o último dito em uma entrevista (concedida ao jornal Folha de S.Paulo, em outubro de 2003) antes de sua morte, em 9 de janeiro de 2004. E “baratinar” foi o que ele sempre quis com seu cinema - o que poderá ser conferido pelas novas gerações na Mostra Rogério Sganzerla: por um Cinema sem Limites, realizada pelo CineSesc do dia 21 a 25 deste mês. (Veja filmes comentados no boxe O Melhor de Todos.) Mas, também por isso, colecionou desafetos, bateu de frente com a ditadura militar e acabou entrando para a história como um cineasta marginal - termo que ele nunca usou para designar o próprio trabalho, tampouco para tratar de si. Foi também “baratinando” que Sganzerla rompeu modelos e mostrou como se une o sofisticado ao popular em cinema, tornando-se um dos responsáveis, junto com Júlio Bressane, pelo movimento - na falta de melhor termo - que mais revolucionou a produção nacional desde o Cinema Novo. Este último capitaneado por Glauber Rocha - com quem, aliás, criou uma relação de respeito, mas cheia de conflitos. O Bandido da Luz Vermelha, filme de 1968, considerado sua obra-prima, era, antes de tudo, uma carta de intenções de um jovem de 22 anos que, nascido em em Joaçaba, uma pequena cidade de Santa Catarina, chegava a São Paulo para discordar dos mestres, dar cartaz ao espúrio e tocar em algo realmente novo. “Conheci Rogério antes de ele fazer O Bandido...”, conta Helena Ignez, viúva do cineasta e atriz que atuou em vários de seus filmes. “Eu morava no Rio de Janeiro e no grupo ao qual pertencia, de pessoas do Cinema Novo, já se comentava muito sobre um menino que fazia um grande sucesso como crítico, no jornal O Estado de S.Paulo. Quando fomos apresentados, ele tinha já a idéia de me convidar para fazer o filme. Ele falou que queria do meu papel ‘um personagem bem moderninho, com uma minissaia e uma botinha’.” A descrição se referia ao que o cineasta esperava de Janete Jane, personagem interpretada pela atriz no filme. Helena não resistiu ao convite: “Topei de cara e talvez por já ter essa experiência com Glauber [com quem também foi casada], me identifiquei de imediato com o trabalho que estava sendo feito, algo muito acima da média, senti que ali nascia um filme fantástico. Tanto eu quanto Paulo Villaça e Luiz Linhares [que interpretam respectivamente o Bandido e o Delegado Cabeção] sabíamos que estávamos fazendo algo de novo, que aquela experiência era absolutamente nova”.


“Udigrudi” e antropofagia
O impacto do surgimento de Sganzerla no cenário cinematográfico gerou entusiasmo, mas também ciúme. Segundo o escritor Luiz Carlos Maciel, Glauber Rocha não demorou a inventar o termo “udigrudi” para “sacanear o pessoal do Rogério Sganzerla e Júlio Bressane”. Isto é, o cinema underground e crítico do Cinema Novo, que começava a dividir as atenções. “A palavra é horrível, manifesta uma ignorância não só do inglês como do português também”, analisa Maciel. “Por isso diz-se que a ‘tradução’ foi uma tentativa de Glauber de ridicularizar o movimento. Ele quis reduzir o underground, principalmente no cinema, porque o pessoal desse grupo na época era uma geração que o vinha contestando. Embora Bressane e Sganzerla fossem meio filhos do Glauber, eles queriam questionar seu poder paterno. E Glauber se sentia sacaneado por aqueles fedelhos.” Essa opinião é partilhada por outros intelectuais. Segundo Helena Ignez, uma tese da Universidade de Sorbonne, na França, sobre O Bandido da Luz Vermelha traz um depoimento do cineasta Geraldo Veloso esclarecedor sobre o assunto. “Geraldo foi à primeira exibição do filme e conta o que aconteceu na época, que aquele talento extraordinário e muito menos condicionado que todos foi difícil de engolir pelo grupo do Cinema Novo. Ou seja, não houve muita abertura por parte do Cinema Novo, que detinha o poder, e também por parte do Itamaraty”, afirma a atriz. Mas Rogério, por sua vez, seguia pouco interessado no que já existia e centrava-se na ruptura. Diferentemente do que o Brasil vinha experimentando até então em matéria de “críticas ao sistema”, Sganzerla pretendia chacoalhar a poeira escondida embaixo do tapete sem recorrer ao ufanismo. “Se o Cinema Novo era nacionalista, o chamado cinema marginal, do fim dos anos 60, buscava inspiração na antropofagia de Oswald de Andrade”, escreveu o crítico Inácio Araújo no jornal Folha de S.Paulo. “Seus referenciais eram outros: Jean-Luc Godard e a nouvelle vague francesa; Orson Welles e o moderno cinema americano; e as chanchadas da Atlântida. Tratava-se de deglutir a influência estrangeira e responder criativamente.”


O doce e o amargo
No entanto, ter abraçado um cinema que tirava as provas do lixo e levava o indigesto para as telas lhe custou caro. Os prêmios e a atenção que marcaram o lançamento de filmes como O Bandido da Luz Vermelha, Mulher de Todos (1969), Sem Essa, Aranha (1970) ou Nem Tudo É Verdade (1986) não garantiram os recursos necessários, a ponto de ele ter de comprar com dinheiro próprio as latas de negativos para rodar O Signo do Caos. “Uma certa amargura foi se tornando até mesmo um traço da personalidade dele em virtude direta das dificuldades e das sabotagens das quais foi vítima durante a vida toda”, conta Helena Ignez. “Acho que isso inclusive chegou a deixá-lo doente. Essas mágoas, que não recomendo a ninguém guardar, o entristeceram muito, principalmente porque, sendo ele quem era e tendo a consciência dos filmes que fez, sabia que não teve o apoio necessário.” Joel Pizzini, que dirigiu Elogio da Luz (2003) - documentário sobre Sganzerla feito em parceria com Paloma Rocha, filha de Glauber Rocha, a pedido do Canal Brasil -, concorda que, principalmente em seus últimos anos vida, o cineasta adquiriu uma imagem de pessoa distante e solitária. “Sua urgência de filmar o fazia sair filmando com o que tivesse nas mãos, era uma necessidade de se expressar tempo todo. E tudo isso fez com que ele não tivesse uma carreira estável. O cinema dele é muito particular, tem uma função muito formadora, é um cinema de ponta. É difícil a assimilação por parte do mercado. Então, essas dificuldades todas o tornaram uma pessoa um pouco amarga”, diz Pizzini. “Eu mesmo tinha essa imagem dele, mas ao começar a fazer o documentário, vi que ele era uma pessoa muito, doce, afetuosa e dedicada à família. Foi uma surpresa.” O documentarista sempre foi fã e admirador da obra de Sganzerla: “O Bandido da Luz Vermelha é meu filme de cabeceira”. Por isso viu no convite para filmar a trajetória do cineasta uma oportunidade de revelar não apenas o talento do criador, mas também a importância que ele teve para a formação de um cinema brasileiro. “Ao contrário do que muitos imaginam, ele era extremamente generoso e preocupado com a função civilizadora do cinema”, afirma. “Valorizava a tradição, o aprendizado, a lição dos grandes mestres e pensava o cinema permanentemente. Realizou filmes seminais, além de O Bandido da Luz Vermelha, como Mulher de Todos, e fez experimentações radicais com Helena Ignez em Sem Essa, Aranha e Copacabana, Mon Amour (1970), que revolucionaram a arte de interpretar e o imaginário sobre o urbano brasileiro.” Outro registro importante citado pelo pesquisador é a radiografia da passagem mítica de Orson Welles pelo País, na qual o cineasta brasileiro metaforiza a condição libertária do diretor norte-americano em filmes como Nem Tudo É Verdade e Tudo É Brasil (1997). Ao abordar o último filme, Pizzini é ainda mais contundente: “Em seu ‘antifilme’ O Signo do Caos, Sganzerla, em ritmo de jazz, tira o cinema do ‘quarto de brinquedos’ - como ele costumava dizer. O Júlio Bressane fala, com propriedade, que o cinema de Sganzerla é sofisticado e popular ao mesmo tempo e que isso poderia servir de modelo para um projeto viável e coerente de cinema no Brasil”. Segundo Helena Ignez, o universo de Sganzerla ainda tem muito a ser explorado. Além do ciclo do CineSesc - que ela considera “um momento de reflexão muito importante” -, e da estréia de O Signo do Caos em setembro, um roteiro inédito deixado pelo cineasta, Luz nas Trevas, será rodado a partir do início de 2005. “Existem trabalhos de Rogério para ser terminados ou retomados que podem seguir por anos - restauração, montagens e filmagens de roteiros extraordinários e extremamente bem indicados. Não são fáceis, mas podem resultar em filmes muito bons, mesmo sem o gênio dele.”


O melhor de todos
Ciclo de filmes realizado pelo CineSesc exibiu algumas das obras obrigatórias de Rogério Sganzerla para aqueles que querem saber mais sobre o cinema brasileiro


Mulher de Todos (1969) - “Estou satisfeito porque não fiz ‘o filme da minha vida’”, disse Sganzerla na época do lançamento. “Tentei correr o risco óbvio da total improvisação. Quis aprender a filmar sem nenhum roteiro, escrevendo à medida que filmava, aproveitando diretamente a realidade, os atores e recursos disponíveis.” Helena Ignez define a produção como “um filme que nós não vemos há mais de 25 anos e que veio com todos os banhos de cores originais, um trabalho lindíssimo”. A cópia que poderá ser vista no ciclo foi encomendada pelo próprio CineSesc.

Nem Tudo É Verdade (1986) - O filme cita o mítico It's All True (É Tudo Verdade), que Orson Welles veio filmar no Brasil, mas acabou não concluindo. Sganzerla costumava dizer que “o melhor caminho para o cinema moderno é Eisenstein com Orson Welles”. O “colega” norte-americano era referência para ele e aparece no filme como um carnavalesco vivido por Arrigo Barnabé.

Sem Essa, Aranha (1970) - “'Sem essa, aranha' quer dizer ‘corta essa, não dá’. Esse filme devia passar nas escolas de comunicação. Não tem nada melhor nos anos 70”, recomendou Sganzerla em sua última entrevista, concedida ao jornal Folha de S.Paulo em outubro do ano passado. O filme inspirou a música Qualquer Coisa, de Caetano Veloso, que no refrão diz: “Sem essa, aranha/Nem a sanha arranha o carro/Nem o sarro arranha a Spaña”. Aranha é o personagem interpretado por Zé Bonitinho.

O Bandido da Luz Vermelha (1968) - Grande sucesso de crítica e público de Sganzerla, o filme marcou o início do que viria a ser chamado de cinema marginal, uma oposição ao Cinema Novo, mas que, nem por isso, deixava de dialogar com a obra de Glauber Rocha. “A Paloma Rocha [filha de Glauber e co-diretora do documentário Elogio da Luz, sobre Sganzerla] imaginou um filme chamado O Bandido em Transe”, conta Joel Pizzini. “Há pontos de conexão, resguardados os estilos distintos de cada filme. O Rogério até utiliza um tema afro do Terra em Transe numa cena final no lixão em O Bandido. “Há as diferenças estilísticas, mas a fome pelo absoluto é a mesma.”

HQ (1969) - “Enquadrando ‘signos recorrentes’”, como define o diretor Joel Pizzini (autor do documentário Elogio da Luz), o curta-metragem de 1969 aparece entre as obras formadoras do caráter artístico de Rogério Sganzerla. Realizada em parceira com Álvaro de Moya, considerado um dos pioneiros da história em quadrinhos no Brasil (ele está presente na seção Encontros da Revista E de julho de 2004), o curta já mostrava a grande influência que as HQs teriam sobre o cinema “30 anos antes de Kill Bill”, como lembra Helena Ignez.