Sesc SP

Matérias da edição

Postado em

Educação
O X da questão

Entre as recordações do tempo de escola, muitos carregam uma lembrança pouco agradável: os dias de prova de matemática. A tensão tomava conta da sala de aula. Os que haviam estudado temiam o “branco” na hora H, os que não - eternos esperançosos de um milagre - só pensavam no choque ao receber a nota. Até mesmo o professor da disciplina acabou entrando para a memória como uma figura misteriosa, alvo de desafeto, temido e respeitado numa hierarquia quase militar. Lembranças do tempo de criança para alguns, pesadelo diário para outros que estão na escola hoje. No entanto, nada disso é intrínseco à matemática. O que ocorreu foi a sedimentação de mais de 100 anos de um modelo de ensino anacrônico - datado do século 19 - que, associado a uma metodologia criada no final dos anos 50, resultou numa didática cujo único objetivo parece ser separar os “bons” dos “ruins”. Os métodos usados no ensino da matemática desde meados do século passado nasceram com um objetivo bem claro: a guerra nas estrelas. Isso mesmo. Em 1957, quando os russos lançaram sua primeira espaçonave, o Sputnik, o governo norte-americano sentiu a necessidade de intervir diretamente no ensino a fim de vencer a guerra espacial. Criou-se, então, em 1961, a chamada matemática moderna, um movimento que passou a usar a escola para fazer surgir futuros cientistas. “O mundo todo, especialmente o Brasil, foi atacado por essa praga”, afirma Antônio José Lopes, professor-pesquisador do Centro de Educação Matemática (CEM) - entidade sem fins lucrativos fundada em 1983 e voltada à assessoria e consultoria especializada em educação matemática para escolas, delegacias de ensino e secretarias de educação. Na forma, a nova visão aproximou o mundo da matemática escolar do universo da matemática das ciências, mais formal, que lida com noções abstratas, estruturas e problemas tão complexos quanto específicos. Na sala de aula, a metodologia terminou por simplesmente associar o ensino ao esforço, à memorização compulsória e à repetição sem sentido. “Isso fez com que a maioria dos alunos ficasse no meio do caminho”, explica o professor. “A matemática ficou desinteressante. E, como esse ensino se mostrou desprovido de significado - era a ciência pela ciência e a matemática pela matemática -, ele relegou a último plano a relação da matéria com aplicações práticas e reais, e ainda com a cultura, o prazer e a história, ou seja, a matemática virou um conjunto de regras sem sentido.”


O que é ser inteligente?
Com o passar do tempo, a matemática, justamente por ter se tornado um “bem” para poucos, adquiriu um valor equivocado. Ou seja, sempre se diz que o indivíduo que domina a matéria é “bom”. Por outro lado, os que têm dificuldade são vistos como alunos com problemas cognitivos. No entanto, decorar as regras e os teoremas para garantir uma boa nota na prova não significa necessariamente assimilação do conteúdo. O que indica que os resultados das provas não provam nada. “O aluno aprende sem saber o que está aprendendo”, esclarece Kátia Cristina Stocco Smole, autora do livro A Matemática na Educação Infantil: a Teoria das Inteligências Múltiplas na Prática Escolar (Artmed Editora, 1996). “É um acúmulo de informações que não interferem de forma alguma em seu jeito de pensar. É aquela pessoa que parece saber tudo de porcentagem, mas quando vê algo com 60% de desconto não consegue discernir se a loja não teve antes de aumentar o produto em 70% para conseguir promover aquela liquidação.” Ainda dentro da batalha que divide os inteligentes dos nem tanto, segundo a autora, trabalhos desenvolvidos com as escolas pelo Grupo Mathema, centro de pesquisa e assessoria na área de ensino da matemática que ela coordena junto com a professora Maria Ignez de Souza Vieira Diniz, mostram que é muito raro encontrar uma criança ou um jovem que simplesmente não consiga compreender o conteúdo. “De modo geral, o que acontece é que é preciso achar o jeito adequado para esse aluno aprender”, afirma. Porém, uma vez que o aspecto interessante da matemática, aquele que faz o indivíduo sentir-se sujeito de seu pensamento, tem faltado às aulas, “os alunos se afastam e passam a achar que o problema está com eles”, observa o professor Antônio Lopes. “Isso cria uma relação de amor e ódio, e a matemática acaba sendo utilizada para separar os aptos dos não-aptos.”


Ensino voltado para a realidade
Em razão desse resultante desacordo entre o indivíduo e uma fonte de conhecimento que poderia ser explorada de modo mais natural, a partir dos últimos 20 anos os métodos tradicionais passaram a ser questionados e os governos pressionados a assumir oficialmente que, se havia alguém que não era bom em matemática, definitivamente não eram os alunos. Foi quando surgiu um esforço coletivo para a criação da educação matemática. “O objetivo é resgatar o significado no ensino da matemática”, explica Lopes. “E a primeira orientação é que a disciplina precisa ser direcionada à preparação do indivíduo para resolver problemas. Função da matemática escolar.” Segundo ele, o movimento, criado pela comunidade de educação matemática, formada por cerca de 15 mil professores filiados à Sociedade Brasileira de Educação Matemática, interferiu nos Parâmetros Curriculares Nacionais (PCN) aprovados em 1997, que atualizaram o ensino nas escolas do Brasil. Mas ainda há muito a ser feito. “Se analisarmos os novos PCN para o ensino de matemática, da educação infantil até o ensino médio, há diretrizes que soam perfeitas, mas não adianta estar só no papel, o professor não pode ficar sozinho”, ressalta Kátia Smole. “Ele precisa ter condição de pensar sobre o ensino e querer mudar.”


Didática criativa
Um dos aliados dos educadores para a obtenção de melhores resultados nas salas de aula pode ser conquistado vasculhando-se a própria história da matéria. Poucos alunos - e, infelizmente, nem todos os professores - sabem, por exemplo, que a matemática é a única disciplina universal, presente em todos os currículos escolares de qualquer cultura e em qualquer país. Isso garantiria uma discussão bem animada na escola. Além disso, interessaria muito ao aluno saber também que o mundo como o conhecemos hoje foi “formatado”, em certos aspectos, matematicamente. E esse conhecimento está na base de praticamente todas as ciências, assim como das artes. Se pensarmos que a compreensão e as transformações do mundo se dão por meio da arte e da ciência, pode ficar mais divertido procurar explorá-las - olha a matemática aí de novo. Outro ponto curioso é que a matemática é parte integrante do patrimônio cultural da humanidade, assim como uma obra do pintor Pablo Picasso, uma peça do compositor Beethoven ou um texto do escritor William Shakespeare. “Assim como assistir a Romeu e Julieta pode levar uma pessoa a refletir sobre uma série de coisas - como o desenvolvimento humano, por exemplo -, a matemática também permite outras leituras do mundo, da cultura e da história do homem”, lembra o professor Lopes. O pesquisador também chama a atenção para o fato de que o não-domínio da matemática implica a formação de indivíduos pouco ativos na sociedade. “Não é possível exercer a cidadania sem dominar a língua ou certos procedimentos matemáticos”, diz. “Uma pessoa que não saiba disso é presa fácil local ou globalmente, ou seja, de governos ou de outros indivíduos. A matemática ajuda as pessoas a ser capazes de tomar decisões, avaliar situações, enfim, de tornar a vida mais fácil. Ela tem um valor utilitário muito forte e não conhecer isso significa ser um cidadão pela metade.”


O homem que ensinava a calcular - O escritor e professor Malba Tahan é figura importante no movimento de popularização da matemática no Brasil e no mundo
“Ele era uma figura muito interessante. Desde pequeno tinha tendência para ser escritor”, diz o professor doutor em educação Pedro Paulo Salles referindo-se a Malba Tahan (foto), escritor e educador de quem é sobrinho-neto. O famoso professor de matemática, autor de uma obra de 120 livros - entre literatura e livros didáticos -, na verdade se chamava Júlio César de Mello e Souza e não era árabe, como o pseudônimo leva a pensar. “Ele tinha uma aluna com o sobrenome Tahan, que quer dizer ‘moleiro’ em árabe”, conta Salles. “E Malba era o nome de um oásis. Então a tradução seria ‘o moleiro de Malba’.” Fascinado tanto pelas letras quanto pelos números, Malba Tahan contrariou o desejo do pai e em vez de se tornar militar foi ser professor. A matemática foi a disciplina escolhida, mas, inquieto e visionário, ele sabia que o modo como ela lhe tinha sido ensinada não conquistaria as futuras gerações. “Ele se preocupou em criar uma metodologia diferente”, continua o pesquisador da obra do tio-avô e também professor no Departamento de Música da Escola de Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo (ECA-USP). “Ele criticava muito os professores que tornavam a matemática uma matéria difícil, chamava-os de algebristas.” Seu objetivo passou a ser, então, tornar-se disseminador de uma matemática natural, simples e prazerosa - o que conseguiu com sucesso, conquistando lugar definitivo num hall que conta ainda com nomes como Euclides Roxo, contemporâneo seu, e Ubiratan D’Ambrosio. Entre suas contribuições para a popularização da matemática encontram-se preceitos que se comprovam, hoje, imprescindíveis ao ensino de qualidade da matéria. Ele foi um dos primeiros a falar em uma metodologia centrada na resolução de problemas que remetam os alunos a vivências mais concretas, com possibilidades de aplicação no mundo real. Também tinha a preocupação de fazer uma abordagem histórica da disciplina e de utilizar jogos no processo de aprendizado. Outro grande feito foi ter conseguido unir a matemática à literatura. Seu exemplo mais famoso nesse sentido é O Homem Que Calculava (Editora Record), escrito em 1938 e que até hoje, 66 anos e mais de 50 edições depois, continua na lista dos mais vendidos, com tradução em mais de dez idiomas.

Matemática nota 10 - Projeto do Sesc Santo Amaro resgata o prazer e o aspecto lúdico da disciplina
Você sabia que Leonardo da Vinci, aquele que pintou a famosa Mona Lisa, era também um matemático? Ou que sem a roda - inventada na pré-história e que, antes de tudo, tem uma forma geométrica (e geometria é conteúdo da matemática) - o homem provavelmente ainda seria obrigado a caçar a própria comida? Essas e muitas outras questões são abordadas pelo projeto Nem Mais Nem Menos - Qual É a da Matemática?. Idealizada pela equipe de técnicos do Sesc Santo Amaro, a programação, composta de exposições, teatro, música, contadores de histórias e mais uma série de outras atividades, vai desvendar os mitos em torno do assunto. A apresentação do projeto chama a atenção para o fato de que “adultos e crianças têm uma imagem da matemática como algo parecido com um bicho-de-sete-cabeças. Uma matéria apenas para mentes superiores, inacessível à maioria dos cidadãos”. Por isso, professores, pesquisadores e artistas foram convidados a, cada um a sua maneira, contribuir para a mudança dessa imagem (confira o processo de elaboração do projeto no P.S. desta edição, página 74). Um dos pontos altos do projeto é seguir a orientação de matemática para todos, democratizando suas atrações, voltando-as para o público de todas as idades - crianças, jovens, adultos, terceira idade. Com isso, o projeto não só servirá para espantar o medo de quem ainda está na escola como também dará uma chance para os mais velhos fazerem as pazes com a matemática. “Eu acho que essa exposição do Sesc vai marcar história”, comenta a professora Kátia Cristina Stocco Smole, do Grupo Mathema, que prestou assessoria técnica ao evento. “E digo isso por várias razões, entre elas pela ousadia e sensibilidade que o Sesc teve de, uma vez detectado que existe um problema, dar sua contribuição para resolvê-lo. Se me perguntassem o que eu diria para quem tem problemas com matemática, eu responderia: ‘Visitem a exposição’.” Ainda segundo a professora, outro ponto importante está na forma escolhida para abordar a questão. “O projeto não é uma aula de matemática, mas nem por isso é vazio de conteúdo. Ao contrário, as pessoas que passarem por lá irão aprender diversas coisas, vão certamente gostar de vencer os desafios da geometria, de brincar com o tempo e de entender como é que se calcula o volume das coisas; é uma ótima chance de vivenciar muitas áreas do conhecimento matemático.” O Nem Mais Nem Menos vai se espalhar por toda a unidade para envolver os visitantes. Enfim, lá a matemática não vai deixar ninguém de fora.