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Ficção Inédita
Gente famosa

Por Marcelo Coelho


Depois dos 50 anos - e dona Elza tinha bem mais que isso - é difícil não ter topado com alguém famoso, pelo menos uma vez na vida. Não digo na fila do banco, ou dentro de um ônibus; mas na ponte aérea, por exemplo, ou num shopping, já me aconteceu de encontrar, nos últimos quatro ou cinco anos, pelo que eu me lembro... Cito os nomes? Numa fila do aeroporto de Salvador, em silêncio, o Gilberto Gil. Sentado num banco, na sala de embarque em Congonhas, o Telê Santana (mascava chicletes como um doido, o olhar perdido, como se assistisse a um jogo sem bola, sem jogadores, sem campo, sem nada); e, num vôo para o Rio, tomando suco, pernas esticadas num jogging, a Elba Ramalho. Não é um estouro, mas não está mal em matéria de encontros com celebridades, eu acho. Dona Elza nunca tinha encontrado ninguém. A mãe dela, lá pela década de 40, tinha estado no Rio de Janeiro, era a capital da República, era o tempo dos cassinos, havia a Política da Boa Vizinhança, e no salão de um grande hotel, ou melhor, dentro do elevador de um grande hotel, a mãe de dona Elza deu de cara com dois atores de Hollywood. O César Romero e o Tyrone Power. O César Romero depois virou o Coringa no seriado do Batman. “Já o Tyrone, esse... morreu moço”, a mãe de dona Elza contava. Isso foi há muito tempo, e dona Elza agora fazia o retrospecto da própria vida - os filhos formados, ela sozinha, num apartamento pequeno (mas jeitoso, e quem precisa de mais espaço, nessa idade?), as amigas que umas já tinham morrido, e enfim, essa lacuna, essa interrogação, que claro não a assaltava o dia inteiro, mas lhe vinha à memória sempre que ela folheava (todo dia, então) as revistas de ricos e famosos, a Caras, por exemplo, e afinal todos esses artistas de novela estão aí dando sopa, indo em boates, restaurantes, caminhando, mostrando a casa, fazendo compras, às vezes aliás tão mal-arrumados, como é que alguém sai por aí usando uma roupa dessas, e ninguém imaginaria que a Irene Ravache ou a Beatriz Segall, para citar alguns nomes ao acaso, estivessem assim meio à vontade, até que sim, claro que imaginaria, na casa delas, por que não, mas que aparecessem assim na foto, como é que a própria revista não cuida dessa normalidade toda? E o estranho, para repetir mais uma vez, é que dona Elza nunca tinha encontrado ninguém famoso na vida. Puxou pela memória. Nem aquele apresentador do Baile da Saudade, que parecia o Cuoco, mas era um outro; ou o músico que tocava marimba no Almoço com as Estrelas; muito menos aquele que tinha feito o pai da namorada naquela novela da Eva Wilma, e nem aquele que era marido da Eva Wilma, antes dela ter casado de novo: nenhum desses ela tinha encontrado nunca. O John Herbert. Foi aí que aconteceu a coincidência. Dona Elza tinha pensado no John Herbert justo aquele dia quando abriu a porta do elevador e... Era o John Herbert. Parecia assustado. Sempre teve um pouco esse jeito assustado, aliás. Era um galã e tanto. Continuava bem, dona Elza reconheceu o rosto na hora, respirou fundo - aquele minutinho de silêncio que parece acontecer mais na cara das pessoas, na boca meio aberta de surpresa, do que num tempo contado de relógio, aliás num elevador não dá tempo, nem de ver, nem de falar, nem de pensar num minuto, quando abriu a porta do elevador ele estava lá e dona Elza perguntou.
- Você não é o...?
O nome fugiu da cabeça, estava na ponta da língua, o John Herbert não disse nada, o elevador parou, ele desceu no sexto andar, dona Elza se olhou no espelho, sem expressão, o elevador parou no sétimo, dona Elza entrou em casa.
- O John Herbert.
Era esse o nome. Incrível como estava conservado. E o que estava fazendo no prédio? Não que a excitação fosse muita, mas não deixava de ser um acontecimento; dona Elza se sentou no banquinho da cozinha e procurou pensar com calma no episódio. Se ele estava no elevador, isto é, se o John Herbert estava no elevador, ou melhor, se o John Herbert já estava no elevador, quando dona Elza abriu a porta do elevador no térreo, então é que ele estava vindo do subsolo, isto é, da garagem. O John Herbert deixou o carro na garagem, entrou no elevador, aí dona Elza entrou no térreo, os dois subiram no elevador e cada um parou no seu andar, ele no sexto, ela no sétimo. Muito provável então que, para ter entrado no prédio pela garagem, o John Herbert (a conclusão chegou com uma luz de incredulidade para dona Elza, e essa luz tornava tudo ao mesmo tempo mais real), o John Herbert morava ali no prédio; porque em geral só moradores têm acesso ao subsolo. Difícil que ele estivesse apenas visitando alguém no prédio e entrasse pela garagem - embora isso possa acontecer: é só avisar o porteiro, ou o zelador, que o senhor Fulano de Tal vai entrar com o carro na garagem, eles abrem a garagem, e naturalmente o senhor John Herbert dá uma buzinadinha, estaciona na vaga, pega o elevador e assim por diante. A hipótese deveria ser investigada. Naquela tarde ainda, dona Elza foi falar com o zelador. Um homem já de certa idade, o senhor Moreira. Se ele sabia quem estava morando no 61. O apartamento estava há muito tempo sem inquilino, mas tinha tido mudança na semana passada, uma mulher solteira, mocinha, parece que estuda medicina. Dona Elza perguntou sobre o pai dela, quem sabe? O senhor Moreira de fato tinha visto alguém, mas não se lembrava direito, um senhor de nome estrangeiro.
- John Herbert?
Os óculos do senhor Moreira eram grossos, estavam quase sempre embaçados, como se tivesse acontecido algum tipo de raspagem de gesso ou de retoque de tinta branca em algum muro do condomínio, eram daquele tipo de lente que aumenta os olhos das pessoas, e não é que o senhor Moreira ouvisse mal, mas a gente sabe como é esse pessoal de prédio, nem sempre entendem direito o que a gente diz, ainda mais se o nome é estrangeiro; dona Elza tinha esperança que o nome do ator de novela fosse reconhecido pelo senhor Moreira - afinal, era do tempo dele: um seriado com a Eva Wilma, uma novela, ele tinha de se lembrar, não é preciso tanto estudo para isso, mas o senhor Moreira era do tipo turrão, dos que não dizem se sabem ou se não sabem; ficou remexendo as contas de luz e de condomínio que estavam ali junto com a correspondência na guarita, procurando o que há de mais certo no caso, que é o documento escrito - o papel - que registrará oficialmente o nome real do condômino, seja do proprietário, seja do inquilino, do 61: mas era um nome difícil, estrangeiro, longo, impronunciável (quem sabe John Herbert fosse o nome artístico) e o senhor Moreira não se arriscou a ler aquilo em voz alta, mostrou a conta de luz para dona Elza, que estava sem óculos, não conseguiu ler nada.
- John Herbert?
Voltou para o apartamento; aquilo não tinha muita importância. Deixou a água fervendo para fazer um café. O telefone tocou; antes que desse tempo de atender, desligaram. Em cima do sofá, a revista Caras estava aberta com os óculos em cima. Mania que ela tinha de deixar os óculos fora da bolsa, aí na hora que a gente mais precisa... Pegou os óculos. Ia guardar na bolsa. Uma foto grande na revista chamou sua atenção.
- Prima Laíra?
Uma prima de segundo grau, lá de Ourinhos. O que estava fazendo na Caras? Era ela, sem dúvida, num longo azul, bolsa prateada numa mão, na outra mão a taça do brinde - a prima Laíra em pleno aniversário do Fábio Júnior. O pai dela era primo da mãe de dona Elza. Trabalhava numa revendedora da Chevrolet em Ourinhos; dona Elza tinha passado umas férias lá quando era criança. O que tinha a ver com o Fábio Júnior, dona Elza não sabia nem podia acreditar. Foi procurar no caderninho o telefone da prima. - Tanto tempo que não falo com ela. O número estava riscado. Dona Elza fazia isso de tempos em tempos, quando achava que não valia mais a pena guardar ali o nome da pessoa; ou a recordação dela, se tivesse morrido. - Prima Laíra? A foto era igualzinha. A água do café estava fervendo. - Nem sei por que tomo café nessa hora. Dona Elza começou a ouvir um barulho no apartamento de baixo. Móveis arrastando. Alguém pregando quadros. - Não é hora de fazer tanta bateção. Foi reclamar pelo interfone. Não atendiam. O senhor Moreira devia ter saído. O barulho aumentou. Dona Elza quis ligar a televisão. Mas de uns tempos para cá o aparelho andava dando problemas. Às vezes a transmissão é que ficava ruim; culpa da antena do prédio. Ou era o controle remoto que parecia sair do lugar: um botão que você aperta e desregula tudo. Ou então a reforma no apartamento de baixo: alguém fura a parede, acerta num encanamento, num cabo, dá problema no prédio inteiro. A TV não ligava. As vozes vinham cada vez mais altas do apartamento de baixo. Um som de música. Como se estivessem dando uma festa. - No meio da reforma? Não é possível. Dona Elza chamou o elevador. Demorou para chegar. Estava parado lá na cobertura. Quando chegou, estava lotado. Um senhor de cabelo branco - brilhantina? - deu um passo atrás. - Boa noite, Dona Elza. Que é isso, cabe sim. Está indo para a festa? Ela não teve tempo de responder. A voz, pela voz reconheceu: era o... Ia perguntar quando o elevador parou no sexto. Aquela atriz de novela, a... recebia os convidados. No salão iluminado e branco, onde casais dançavam com leveza, dona Elza viu, de longe, prima Laíra sorrindo e conversando com uns parentes. Não era fácil acreditar naquilo tudo. Dona Elza quis ir embora, quis chamar o elevador; mas quando olhou para trás não havia mais nada.

Marcelo Coelho é autor de Noturno (Editora Iluminuras) e Jantando com Melvin (Editora Imago)