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Cultura II
Brega para uns, popular para outros

A indústria cultural promove, a crítica torce o nariz e o público consagra - mas, afinal, qual é o limite entre o cafona e a arte?

Estádios lotados, sucesso no rádio e na televisão, capas de revistas, fama e, conseqüentemente, dinheiro - fortunas, em muitos casos. Como se sabe, não são todos os músicos que conseguem deitar-se sobre esses louros de glória. Os que conseguem imediatamente sentam no banco dos réus de um tribunal em que júri e juiz atendem pelo mesmo nome: crítica. E as condenações são recorrentes - mesmo que nem sempre a justiça prevaleça. Ao mesmo tempo que o “bom gosto” torce o nariz para certas duplas sertanejas e cantores românticos, os números mostram que a vendagem de álbuns e o sucesso não necessariamente estão atrelados às regras que a crítica cria e defende (basta pensar na quantidade de discos de ouro distribuídos a profissionais que atuam nessas categorias musicais). Acrescente ao cenário unanimidades da MPB regravando sucessos controversos - como Maria Bethânia, que decidiu entoar, com seu estilo personalíssimo, o hino romântico É o Amor, da dupla-sensação sertaneja Zezé Di Carmargo e Luciano -, e a polêmica se completa. Parte dos fãs, intelectuais e estudiosos da canção questionaram a atitude da intérprete, que teria cruzado a linha e sucumbido à facilidade da música brega. É justamente sobre essa questão de classificação que se apoiou o evento Popular ou Brega?, realizado pelo Sesc Ipiranga em maio (ver boxe). Ao reunir compositores, cantores, instrumentistas, críticos e pesquisadores musicais para discutir esses rótulos e refletir sobre o preconceito que eles carregam, procurou lançar nova luz a uma polêmica que acompanha a história da música popular brasileira. “Originalmente, o termo ‘brega’ começou a ser usado no Nordeste, onde a palavra é um sinônimo para zona de prostituição”, explica o crítico musical Carlos Calado, que participou da discussão como mediador de alguns debates. “Assim o termo acabou denominando a música excessivamente romântica e ingênua, que geralmente é ouvida nos bordéis. Já no Sudeste do País, ele passou a ser usado com uma boa dose de preconceito social e moral, como sinônimo de música cafona, de mau gosto.” Mas por que a palavra ganhou conotações tão fortes? O músico Zeca Baleiro, um dos artistas participantes do evento no Sesc, ao narrar sua experiência pessoal com a canção popular, ou brega, aponta uma certa adolescência presunçosa que, disfarçada de intelectualidade e apuro de gosto, ainda insiste em permear alguns discursos. “Márcio Greyck, Antônio Marcos, Gordurinha, Golden Boys, Nilton César e Paulo Sérgio eram presenças constantes nos nossos showzinhos caseiros”, conta o músico, relembrando as brincadeiras que fazia com amigos na infância. “Todos artistas da música popular, a grande música popular brasileira. Tudo era bom de cantar, tudo era legítimo. Depois ganhei pêlos, algum conhecimento e presunção, e passei a negar meu amor por esses artistas. Não era de bom-tom.” Baleiro diz que só depois, “já adulto e mais bem-resolvido”, é que decidiu se tornar defensor da produção desses artistas. “Provocador, cantei Odair José e Reginaldo Rossi em shows, incorporei cantores de churrascaria em shows performáticos, saí em defesa da genuína música popular, a música das ruas, bares e rodoviárias.”


Cafona também é chique
Tentar estabelecer uma fronteira que divida a música popular da brega pode se tornar uma tarefa interminável. Seria um ponto de partida o dito popular “gosto não se discute”? Discute-se, sim, mas a prudência aconselha não julgar. “Há tanta oferta por parte da indústria cultural que muita gente fica sem saber que produto escolher nessa imensa prateleira”, analisa o músico Chico César, também presente nos debates do Sesc Ipiranga. “Pior ainda: há mesmo quem não saiba do que gostar e aí delega suas escolhas aos cadernos de entretenimento ou variedades. É quando se torna mais cômodo entregar-se a rótulos do tipo ‘in’, ‘out’, ‘chique’, ‘cult’, ‘descolado’, ‘nada a ver’, ‘cafona’ ou ‘brega’. É óbvio que essas expressões trazem sempre uma forte carga de julgamento apriorístico, preconceito mesquinho e preguiça mental. E, não raro, pelas mãos de alguém da área dita ‘chique’, algo tido como ‘brega’ pode passar também a ser considerado ‘bacana’. É o poder de opinião de um grupo social sobre o resto. E a renúncia do gosto.” A confusão é tanta que parece ter chegado ao ponto de alguns produtos bregas serem consumidos intencionalmente só para criar uma certa vanguarda retroativa. “Tem gente que não gosta das canções de Peninha, Odair José ou Fernando Mendes, ou diz que não gosta, e passa a gostar ou fingir para si mesmo que gosta depois que elas são gravadas por Caetano Veloso”, continua Chico César. O cantor finaliza com uma questão: “O que aconteceria se a canção Amor I Love You, interpretada por Marisa Monte, fosse cantada por uma artista menos chique do que Marisa?” Segundo estudiosos, a resposta está num campo cujo conhecimento foge à maioria dos fãs: o da técnica musical. O professor Celso Favaretto, da Faculdade de Educação da USP, doutor em filosofia e autor de Tropicália: Alegoria Alegria (Ateliê Editorial, 1996, 2ª edição), acredita que a música brega pode ser, sim, chamada de música ruim se olharmos do ponto de vista dos arranjos, da harmonia e até mesmo da interpretação. A mesma Amor I Love You, interpretada por Marisa Monte, pode ter sido beneficiada ao ter recebido uma produção mais apurada - independentemente de a letra conter ou não uma singeleza quase brejeira. “Claro que uma mesma letra na boca de uma cantora como Marisa Monte e na de algum cantor brega são duas coisas completamente diferentes”, analisa Favaretto. “Os cantores de determinados tipos de música ruim sabem por que a música deles é ruim, porque é pobre e fácil”, conclui.


Diálogo simples e direto
Abelardo Barbosa, o velho guerreiro Chacrinha - considerado patrono de toda e qualquer manifestação artística “popularizável” -, imortalizou a frase “Quem não comunica, se trumbica”. Na máxima, Chacrinha deixava claro, com seu estilo bufo, que para ele o valor de qualquer arte estava na maestria do diálogo nítido e direto. A televisão brasileira como a conhecemos hoje deve muito do seu sucesso onipresente a esse ensinamento. E muitos artistas - vários chegaram ao auge no período em que o apresentador estava no ar - defendem essa característica do brega como grande segredo de sua força. O cantor Odair José, autor de sucessos como Uma Vida Só (mais conhecida como Pare de tomar a pílula) e que participou do evento do Sesc, é um deles: “É preciso procurar entender os objetivos que o artista está tentando alcançar com o seu trabalho, sem uma posição preconceituosa. Existe o compositor que trabalha dentro da simplicidade e outro que faz uma pesquisa mais elaborada, sem no entanto ser dotado de mais talento. Para quem é do ramo, fazer o simples pode ser muito mais difícil do que fazer o complicado”. A cantora Jane, da dupla/casal Jane & Herondy, que se apresentou no Sesc Ipiranga durante a realização do evento Popular ou Brega?, concorda e arremata: “Nós, do meio, sempre fazemos questão de dizer que o mais difícil é fazer o simples bem feito”. Já o cantor Falcão, também presente no evento e que tirou proveito da institucionalização do brega - estética que invadiu até a vanguardeira MTV -, prefere partir do ponto comum a tudo o que é produzido no Brasil em matéria de música: a nacionalidade. Segundo ele, a partir daí o importante é que a música seja boa para quem está ouvindo, e não para quem está criticando: “É deverasmente tênue e, no mais das vezes, indefinível, a linha que separa a chamada música popular brasileira, vulgo MPB, da chamada música brega”, teoriza Falcão, não sem antes provocar com o uso, digamos, livre da língua. “Sendo que, a meu ver, não há distinção nenhuma, o que existe são rotulações conforme o gosto musical das diversas classes sociais. O certo é que tudo é música, tudo é popular e tudo é brasileiro. Nossa música e toda a nossa cultura, assim como a civilização brasileira como um todo, são bonitas porque são diversas, heterogêneas, fazem parte dessa geléia geral, graças a Deus.”


O que é de gosto... Ao contrário da mídia, que sempre procura estabelecer distinções entre refinado e popular, ou brega e chique, os músicos preferem deixar os preconceitos de lado e defender a diversidade de estilos e gostos

O que acontece é que a música piorou muito no mundo inteiro, mas não temos que levar a culpa por isso, e sim os governos. Povo que não tem acesso à cultura não desenvolve a sensibilidade. Eu sou uma prova de que se pode perfeitamente cantar a Bachiana nº 5, de Villa-Lobos, improvisar um tema de bossa-nova do Maurício Einhorn ou cantar uma canção romântica como Não Se Vá, porque a voz é a mesma. Tendo técnica, é só mudar o registro das cordas vocais.
Jane Moraes, da dupla Jane & Herondy


A música que eu faço anseia ser ouvida por todo mundo, o delegado e o delinqüente, o ateu e o crente, o grã-fino e a ralé. A música popular é para todos. O destino da canção é o coração do povo, acredite o mundo ou não.
Zeca Baleiro

Sendo a MPBrega a trilha sonora da alma e do sentimento do povo, digamos, mais popular, não deixa de haver um certo, às vezes até descarado, preconceito contra essa manifestação musical. Isso, inclusive, podemos provar com um só exemplo: quando Caetano Veloso grava Fernando Mendes ou Peninha, eles se transmutam, imediatamente, de brega para chique.
Falcão

O que existe, na verdade, é o bem-feito e o que não é. Quem não consegue opinar e ver dessa maneira não está qualificado profissionalmente a criticar o trabalho de quem quer que seja. Pois muitas vezes o mau gosto não está na falta de acordes modernos e textos líricos, mas sim na falta de uma inspiração única.
Odair José

Os artistas percebem o arejamento e a porosidade proporcionados pela música popular. E, felizmente, lançam mão dessas possibilidades. Contribuem, assim, para mostrar como são frágeis as fronteiras entre uma coisa e outra, e que às vezes ambas são a mesma ou pelo menos não são assim tão diferentes.
Chico César


Repertório variado - Evento discute rótulos e preconceitos na música brasileira
O projeto Popular ou Brega?, realizado pelo Sesc Ipiranga de 20 a 23 de maio, analisou o preconceito com que é tratada uma parcela da música popular produzida a partir dos anos de 1970. A programação, composta de shows e mesas-redondas, reuniu nomes como Zeca Baleiro, que dividiu o palco com Odair José e Paulo Diniz; Chico César, em apresentação com Falcão e Jane & Herondy; e contou com o debate MPB X Brega, realizado por artistas e críticos. “Chegue ou não essa discussão a alguma conclusão definitiva, o projeto já trouxe em si um gesto bastante revelador”, avaliou o jornalista Carlos Calado, que mediou o encontro. “O simples fato de dois nomes consagrados da MPB atual, como Zeca Baleiro e Chico César, dividirem o palco com compositores e intérpretes tão emblemáticos da música tipicamente popular e brasileira, como Odair José, Paulo Diniz, Falcão e Jane & Herondy, demonstra que os artistas encaram essa questão de outro modo.”